terça-feira, 14 de julho de 2009

VERDADE EM CARIDADE: A DOUTRINA SOCIAL DO PAPA BENTO XVI PARA O MUNDO GLOBALIZADO - parte 2



Mais uma vez se combate o relativismo, que leva a noção de equivalência entre as culturas, o qual atrapalharia o “verdadeiro diálogo cultural”. Além disto, o relativismo elimina a possibilidade de transcendência na experiência humana. E, acertadamente, a crítica de Bento XVI atinge o cerne do dilema do homem pós-moderno: acrescentaríamos que, se não há transcendência, o homem não possui nenhuma certeza quanto à validade de suas ações. Somente Deus, Absoluto e transcendente, serve de parâmetro para as ações e saberes da humanidade. Daí que o relativismo pós-moderno só pode conduzir a uma incerteza existencial e epistemológica.

O papa se engaja com a causa anti-abordo, rejeitando a mentalidade anti-natalista, a prática da eutanásia, e promovendo a liberdade religiosa (negada pelo Catolicismo durante séculos). Claro que as causas elencadas são genuinamente cristãs e sua base histórica se acha veiculada com a crença em uma criação divina. Ratzinger reconhece que “[…] O homem não é um átomo perdido num universo casual, mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou.”[1]

Como evolucionista teísta que é, o papa admite ter Deus dirigido a evolução e que, em algum momento, dotou aquela criatura surgida de formas inferiores de uma alma imortal[2]. Claro que tal conceito distorce a narrativa Bíblica do Gênesis, além de rebaixar a humanidade. Remetendo ao dom da verdade sobre nós, o terceiro capítulo apresenta a impossibilidade de se “identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de ação social”, sendo a identidade humana (“a verdade acerca de nós mesmos”) “primariamente ‘dada’”, “recebida”. “Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenômenos sociais e na construção da sociedade.”[3]

Em outro lugar, o atual pontífice já declarou que a origem do mal é um fato que “permanece obscuro”; quanto ao episódio de Gêneses, “Podemos adivinhar[a origem do mal], não explicar; nem sequer podemos narrá-lo como um fato junto a outro.”[4]

Neste ponto, reaparece a compreensão equivocada sobre as origens, a qual afeta o entendimento sobre o surgimento do pecado: primeiro, o dogma do pecado original (pelo qual somos culpados pelo pecado de Adão), o que contraria a culpa individual (Ez. 18:20). Pecado original existe – mas não no sentido de culpa por procuração ou mesmo culpa hereditária; a Bíblia nos fala de um ato histórico cometido por um Adão histórico, a partir do qual a humanidade herdou a condição corrompida (Rm. 5:12), a infecção do curvato em se, no dizer de Lutero. Segundo, nota-se o descrédito com a narrativa bíblica, sendo que ela sequer merece ser considerada histórica. Claro que se torna impossível entender a doutrina bíblica do pecado com o obstáculo formado pelos dois fatores mencionados.

O capítulo termina louvando o dom do trabalho e retomando considerações sobre a necessidade de desenvolver o princípio de caridade em verdade no campo econômico: “Não devemos ser vítimas dela [da globalização], mas protagonistas, atuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade.”[5]


Preocupações sociais e ecológicas: o que há por trás delas?

Sob o título “desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, ambiente”, Bento avalia em seu quarto capítulo a mentalidade ocidental hedonista e procura restaurar o conceito de matrimônio; para o papa alemão: “[…] torna-se uma necessidade social, e mesmo econômica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do matrimônio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa.”[6]

O desenvolvimento econômico recebe também atenção do líder católico, que propõe uma economia mais humana, na qual a ética deixe de ser um mero adjetivo, para se tornar real e atrelada ao homem, feito à imagem de Deus.

A seguir, ele trata das preocupações ambientais, enfatizando uma acepção adequada do mundo físico como obra divina que revela algo de seu autor (Rm. 1:20). O que alguns cristãos do segmento reformado chamam de “mandato cultural” aparece na carta – a obrigação dada a Adão de zelar pela criação, a qual se impõe a nós, orientando a interação entre homem e natureza (Gn. 2:15). Aliás, vale lembrar que justamente tal percepção impede que o homem chegue a “considerar a natureza um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela.” Por um lado, se evita que a natureza seja posta acima do homem, e, por outro, que se vise a “completa tecnicização”[7].

Em suma, preservar a natureza ganha status de problema moral da sociedade. Bento tem atualmente levado isto a sério, levantando a bandeira ecológica, a ponto de o Vaticano participar neste ano de iniciativas como “A hora da Terra”[8]. Parece-nos que o senso de oportunismo motiva os recentes pronunciamentos ecológicos do papa – afinal, um maior número de pessoas se une em torno desta causa, o que dá ao Vaticano a oportunidade ímpar de prover uma liderança espiritual do movimento que rompe fronteiras no século XXI.

No quinto e mais importante capítulo da encíclica Caritas in Veritates, o sucessor de João Paulo II menciona a alienação que isola indivíduos e povos, ou seja, faz-se referência à própria dificuldade de amar. A superação disto passa pela adoção de uma visão metafísica do relacionamento com as pessoas; longe de baixar guarda ao relativismo, Bento enfoca um relacionamento genuíno, que “encontra um decisivo esclarecimento na relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina”, remetendo-nos ao texto de João 17:22 [9].

Deve haver diálogo e troca de pensamento entre crentes e não-crentes, incentivada pela ação eficaz da “caridade na sociedade”, a qual, por seu turno, surge do colóquio entre fé e razão. A Caritas in Veritates admite cooperação entre povos diferentes (princípio da subsidiariedade) como forma de nortear a globalização. A cooperação deve ocorrer em níveis econômicos, mas também culturais. Isto sem abrir mão das bases cristãs, na luta contra o relativismo (e um enfoque novo é dado ao tema, no escopo da educação).

No ponto alto deste documento, o papa Bento XVI faz a afirmação mais ousada, quando constata que os efeitos da crise econômica mundial requerem “a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial”, a qual “deverá regular-se pelo direito, ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade, estar orientada para a consecução do bem comum, comprometer-se na realização de um autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade na verdade.” Bento assinala igualmente que esta Autoridade precisaria contar com um reconhecimento universal [10].

Que outra Autoridade seria esta, senão a própria Igreja Católica, que, inclusive ofereceu aos Estados Unidos seus serviços de “Autoridade moral”[11]? As pretensões do Catolicismo não mudaram. Sabemos que em breve a “ferida mortal”, desferida por Napoleão (em 1798), será totalmente sanada; a besta (símbolo do poder da igreja romana) reviverá e com admiração “a terra inteira [seguirá] a besta” (Ap. 13:3-4, BJ).

No último capítulo são feitas novas ponderações sobre a globalização e se comenta sobre questões de bioética. A visão naturalista do homem é criticada, à luz do pressuposto de uma alma imortal – o qual contraria claramente o ensinamento bíblico (Gn. 2:7; Sl. 115:17; Ec. 9:5,6,10; Hb. 9:27). Outro contra-senso aparece na evocação de Maria, e das expressões de louvor associadas com ela.

Conclusão

Sem dúvida, os adventistas concordam que “verdade em amor” faz falta no mundo. Os cristãos têm um amplo campo de atuação social que precisa ser retomado. Entretanto, questionamos a falta de base bíblica e distorções do livro cristão que foram cometidas para dar suporte a algumas alegações do papa Bento XVI. Sobretudo, percebemos um sentimento reinante na encíclica de autopromoção de uma espiritualidade politizada, que se eleva como autoridade mundial, nos moldes daquilo que se viu no Ocidente durante a Idade Média. Mais do que nunca, o estudante das profecias pode reconhecer que o “tempo está próximo”.


[1] CIV.
[2] O mesmo conceito se acha expresso por Dinesh D’Souza, em A verdade sobre o Cristianismo: Por que a religião criada por Jesus é moderna, fascinante e inquestionável (Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2008), p. 167.
[3] CIV.
[4] Para ler a declaração completa, bem como seu contraponto: Douglas Reis, “Pecados nada originais”, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2008/12/pecados-nada-originais.html.
[5] CIV.
[6] Idem.
[7] Ibidem. Para entender como a visão cristã da natureza contribuiu para o desenvolvimento da ciências, confira: Nancy R. Pearcey e Charles B. Thaxton, A alma da ciência: fé cristã e filosofia natural (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2005).
[8] Ver: (a) Douglas Reis, A hora da Terra: a hora da profecia? disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2009/03/hora.html; (b) idem, O Vaticano na escuridão, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2009/03/o-vaticano-na-escuridao.html.
[9] CIV.
[10] Idem.
[11] Ver Douglas Reis, Auxílio listra: serviço de autoridade moral, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2008/04/auxlio-lista-servios-de-autoridade.html.

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