sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

DANÇA, TRANSE E O QUADRO PROFÉTICO


Dançar compulsoriamente, até os pés sangrarem em carne viva ou – mais trágico – até morrer por exaustão. O que parece ser um absurdo à primeira vista, constitui-se em uma das mais enigmáticas epidemias da Europa Medieval . Em entrevista à revista Galileu[1], John Waller, historiador da Universidade Estadual do Michigan, comentou sobre sua pesquisa a respeito da epidemia de dança surgida em 1518 na França e que rendeu-lhe a publicação de um livro sobre o assunto[2]. A seguir, algumas observações relevantes sobre a matéria:

1. A acusação implícita de que a fé fomenta histeria: esta é uma tônica das revistas “científicas” brasileiras – a desqualificação da fé, retratada como um elemento da irracionalidade primitiva, totalmente impertinente dentro da mentalidade pós-industrial. A verdade é que há fés e fés. A fé cristã é originalmente racional (Rm. 12:1). Sua racionalidade, não obstante, difere do racionalismo grego, que foi resgatado no Humanismo e tornou-se anticlerical e ateísta como seguimento da revolução iluminista. A razão, na concepção cristã, tem seu lugar e, quando santificada, é útil para refrear as emoções corrompidas pelo pecado e investigar os dados providos pela Revelação divina dentro de limites humanos. O Deus da Bíblia fornece evidências para crermos – sejam evidências intrínsecas (relacionadas à crença em si) ou evidências relacionais (quando não podemos entender, e ainda assim somos convidados a crer porque Deus é confiável e merece que O sigamos).

Pelo fato de que não se fazer diferenciação entre os divergentes tipos de crença, a entrevista dá-se a entender que todo tipo de fé resulte em histeria, descontrole em massa e distúrbios relacionados. Note a declaração de Waller: “Os atingidos pela epidemia de 1518 ocupavam um ambiente de fé que aceitavam a ameaça da praga divina, posseção ou feitiço. Eles não tinham a intenção de entrar em estado de transe, mas suas crenças sobrenaturais tornaram isso possível.
[3] O historiador olvida que nem toda crença que aceite o sobrenatural produza as condições para que se repita o que viu na praga de 1518.
A religiosidade medieval fundiu elementos cristãos a um misticismo pagão, criando superstições infundadas (ridículas até!). Temos de que nos situar, no entanto, e perceber que, se o cristianismo católico-medieval assumia estes caracteres, já estamos vizinhos da Reforma. Não muito tempo depois do episódio da dança, chegaram a Wittenberg os profetas de Zwickau, fanáticos religiosos que professavam um cristianismo místico, com direito ao pacote “transe/visões/rejeição da Bíblia”. A influência deste movimento na comunidade forçou Lutero a voltar de seu refúgio para combater o fanatismo e reparar a ordem, mediante a apresentação da mensagem bíblica. O que aconteceu neste episódio nos ajuda a diferenciar não só posturas, mas as próprias bases de cristãos orientados pela Bíblia e de grupos místicos (sejam cristãos ou nãos).

2.O perigo de que o misticismo cristão volte a influir na experiência cúltica em círculos cristãos-adventistas: Observe este trecho da entrevista: “[…] os cultos modernos de possessão realmente lançam uma luz sobre o que aconteceu em 1518, já que estudos mostram que as pessoas estão mais propensas a experimentar um transe dissociativo se já acreditam em possessão espírita. As mentes podem ser preparadas, por meio do aprendizado ou exposição passiva, a transitar por estados alterados [de consciência].[4]” Que, de certa forma, o misticismo continue se imiscuindo com a espiritualidade moderna ninguém pode negar; que este processo afete um número crescente de cristãos, está claro; agora, que esta tendência incidirá sobre adventistas, é uma questão de tempo. [5] Mesmo agora, podemos ver o processo em andamento por alguns fatores: (1) Um número cada vez maior de adventistas faz uso da música evangélica (seja através de consumo de material fonográfico, DVDs ou de dowloads; pela frequência a shows gospels; pela utilização de músicas cristãs contemporâneas em cultos regulares, eventos em internatos e instituições, momentos de devoção familiar ou particular, etc.); consequentemente, (2) mais e mais passamos a conceber a música cristã como os evangélicos o fazem, ou seja, formada por letra religiosa e música popular. Se continuarmos a nos aproximar de outros grupos cristãos no que se reporta à adoração, experimentaremos os mesmos fenômenos de transe e possessão que há muito fazem parte da rotina cúltica de tais grupos. Será que no final, muitos adventistas também serão dançarinos compulsórios? Eis algo que deve nos preocupar.

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[1] John Waller, “Erupções de histeria em massa continuam a acontecer”, em entrevista cedida à revista Galileu, nº 211, Fevereiro de 2009, pp. 16 e 17. De agora em diante, Erupções.
[2] John Waller, “A time to dance, a time to die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518”, (Cambridge: Icon Books, 2008).
[3] John Waller, “Erupções”, p. 17.
[4] John Waller, “Erupções”, idem. Waller fala especialmente no caso de religiões afro, mas a inclusão de certos ramos do Pentecostalismo nesta descrição me soa evidente.
[5] Ver o que Ellen White fala sobre o movimento da “Carne Santa” e como isto iria se repetir entre os adventistas do sétimo dia no futuro em Mensagens Escolhidas, (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1986), 2º ed, vol. 2, pp.35-39.

UM ÚLTIMO OLHAR SOBRE ITAJAÍ....

Do Morro da Cruz: a cidade pela última vez

De novo o eco da chegada. As paredes brancas, cobertas de manchas de mofo, envolviam um ambiente vazio. Nada de roupeiros, cama, sapateira. Tudo já se encontrava embalado em plásticos-bolhas, desmontado e esperando o motorista do caminhão de mudanças dar a partida. Nada mais de cozinha, escritório ou sala também.

Era uma quinta-feira. No domingo, eu e minha esposa já havíamos recebido nossa segunda despedida, com direito a uma saída entre amigos da igreja, a uma pastelaria. "Você vai mesmo, professor?", perguntava de tempos em tempos a Aninha, uma das alunas muito queridas que tive. Poderia citar tantos outros alunos queridos, mas, certamente, eu me esqueceria de um ou outro e acabaria sendo injusto. Mas aprendi com todos eles. Exercitei tolerância, cresci na maneira de transmitir conhecimento, pude orar em lares (em muitos dos quais me deparei com famílias que jamias teriam adentrado em uma igreja Adventistas), garimpei talentos (através de programas culturais e religiosos realizados na capela do colégio), além de passar momentos agradáveis e únicos.

Tendo trabalhado por quase três anos no Colégio Adventista de Itajaí (CAIT), fiz grandes amigos entre os colegas de trabalho: Lú (fiquei devendo, não fui um bom "Santo Antônio"), José (peixeiro de carteirinha), Jean (o homem que fala literalmente o que pensa!), o Júlio (que fala sem pensar!), Marcos (meu amigo, o filósofo do basquete), Míriam (a percepção em pessoa), Aline (nossa pastora), Fran (vai "bombar", amiga), Mônica ( "Meu Pai-drive"), Norma (tia Norma, para os íntimos), Soraia (pau-para-toda-obra), Célia (e o IAP?), Milene (pequena e valente), Emerson (Fiti), Emerson (cantor-tesoureiro), Welson (meu amigo e orador oficial do nono ano), Neia (seu nome ficou assim por causa do acordo ortográfico, mas ainda "te miro"), Lúcia (o ser mais "de bem com a vida"), Talita (você não estava na mala...), Tia Dete (uxi, uxi), Cris (que também deu seu último olhar sobre Itajaí), Cibele (sempre prestativa), Maristela ("Tás tola, nêga?"), Corina (da galerinha mais ou menos), Eude (nossa mãe), Sonir (de um coração generoso como poucos), Janaína (sabe aquele formulário que tinha de preencher...), Eveline (até que enfim acertei seu nome!), Evelise (meu nome é diário... o resto você já sabe!), Sandra (vou sentir falta de seu bom humor!), Fábia (um doce!), Ely (sempre dedicada e amiga), Liliene (nossa amiga entusiasmada), Rúbia (outra falha do "Santo Antônio") e Lilian (amiga, "estou sentindo" que vai dar casamento). Enfim, amigos, espero que o Pr. Marcos receba a mesma recepção, carinho e companheirismo que vocês me deram!

Obrigado, Itajaí. Entrei na cidade de um jeito. Acompanhei o colégio crescer. Conheci várias congregações com líderes fantásticos. Convivi com distritais inspiradores. Conheci até o que é passar por uma enchente! E, depois de tudo isto, eu sou outro. Mais uma vez, obrigado!

....E OS PRIMEIROS OLHARES SOBRE JOINVILLE

Com pistolas fora do coldre fictício, o grupo espreitava, esperando aqueles que seriam emboscados. Nosso Corsa preto estacionou em sua garagem. Descemos com as malas. Os meninos se esqueceram da brincadeira de polícia e bandido (ou seja lá como chamam hoje) e passou a olhar o casal recém-chegado a Joinville.

Minha esposa ficou passando o aspirador por todo o carpete e logo voltei, escoltando o caminhão de mudanças. Agora, nosso novo lar seria naquele condomínio próximo ao centro da cidade. Demoramos algo como dois dias para ajeitar os cômodos, desfazer as caixas, lavar louças e roupas e deixar as coisas em ordem. Dois dias estressantes, como sói acontecer em qualquer mudança.

Aos poucos, vou conhecendo a cidade, a maior de Santa Catarina, ainda que conserve características agradáveis de cidades menores, como tranquilidade e beleza. Alie-se estas características às opções de lazer, cultura e serviços de assistência médica; sem dúvida, Joinville é um excelente lugar para se morar.

Ainda que longe de grandes amigos feitos em Itajaí, sempre se pode olhar prospectivamente, esperando que novos relacionamentos surjam e se firmem com o tempo. Aliás, o ministério exige este tipo de disposição otimista e alta adaptabilidade a novas situações. Nada é estável, em certo aspecto, mas se a estabilidade existe, pelo menos nos planos emocional e conjugal deve estar presente. Como digo a minha esposa, por mais mudanças que tenhamos ao longo de nosso ministério, sempre teremos um ao outro.

Enfim, cá estou, acostumando-me com períodos alternados de sol intenso e chuva copiosa, com novos desafios num colégio muito bem estruturado e esperando as bênçãos que Deus derramará em meu lar e através da minha vida.

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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O PEDIDO DOS CRISTÃOS A BARACK OBAMA


De acordo com a Agência Ecclesia, 34 Líderes de denominações cristãs (protestantes, anglicanos, ortodoxos and many more), ligadas ao Conselho Mundial das Igrejas (entidade ecumênica), escreveram ao recém-empossado presidente norte-americano, o democrata Barack Obama.

O pedido expresso na missiva corresponde ao sentimento daqueles cristãos, que se definem "encorajados pelo compromisso de reavivar a esperança no país e no mundo"; por enquanto, a dimensão do pedido se restringe ao combate à pobreza e por melhores condições humanas na América do pós-Bush. Todavia, dá para imaginar o que a influência de cristãos ecumênicos engajados e de mãos dadas com o Vaticano irá fomentar no quadro de mudanças promovidas pelo governo "messiânico" de Obama...

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

CATÓLICOS E LUTERANOS: MAIS PRÓXIMOS DA UNIÃO?


Desde a década de 70, Luteranos e Católicos promovem um diálogo mútuo, com intenções ecumênicas, o que tem rendido alguns documentos expressando pontos doutrinários comuns entre as duas tradições. Em parte, este entendimento parece divergir do princípio Sola Scriptura adotado por Lutero, que consiste em tratar a Bíblia como regra de fé e única autoridade para determinar a crença cristã. Sutilmente, as denominações envolvidas procuram se unir em pontos que as suas respectivas tradições compartilham, sem considerar, mediante estudo da Bíblia, em que aspectos seus credos precisam ser corrigidos e alinhados com a doutrina bíblica.

Isso nos faz imaginar o que o próprio Lutero diria se estivesse vivo e presenciasse as condições do diálogo entre seus confrades e os católicos. Basta nos lembrar de que, na época de Lutero, um de seus mais próximos colaboradores, Felipe de Melancton, foi duramente combatido por irmãos luteranos e até repeendido pelo próprio Lutero, por ter se mostrado, em mais de uma ocasião, "flexível" demais em diálogos (não espontâneos, mas convocados pelo imperador do Sacro Império Germânico) interdenominacionais. Talvez os luteranos contemporâneos deveriam ser chamados de "filipinos", por uma questão de justiça...

Seja como for, o papa Bento XVI parece satisfeito com o rumo do diálogo com os "filhos pródigos da Igreja Mater" (assumo o risco pela autoria da expressão). O tópico que o diálogo aborda é o da justificação pela fé, o mesmo que impulsionou o jovem doutor Lutero a pregar contra os abusos romanos em pleno século XVI, quando acender uma fogueira para um herege era uma atividade que não demandava muita burocracia. Em 31 de Outubro de 1999(mesma data em que Lutero colocou suas 95 teses no castelo de Witenberg, ato-símbolo da Reforma na Alemanha, em 1517), um documento fora assinado por católicos e luteranos, expressando sua crença comum na justificação.

Que ninguém entenda isso como uma confissão de mea-culpa da parte Católica! Ontem, diante de uma delegação filandesa representando interesses ecumênicos, Bento XVI expressou seu desejo da união do corpo de Cristo: "A Igreja é este Corpo místico de Cristo e é guiada continuamente pelo Espírito Santo; o Espírito do Pai e do Filho. Só baseando-se nesta realidade encarnacional se poderá compreender o caráter sacramental da Igreja como comunhão em Cristo." Esta declaração do pontífice, que aparece no site Zenit, revela o próximo passo: uma união, baseada na compreensão da universalidade do corpo de Cristo, um re-aproximação que apela para a unidade da igreja.

Os movimentos ecumênicos adotam João 17 como sua oração de cada dia, esquecendo-se que a unidade da igreja não passa por cima dos alicerces da igreja, os quais se constituem de facetas da Verdade revelada, em torno da qual os que aceitaram a pessoa de Jesus devem se unir; sem esta Verdade bíblica, toda tentativa de união não chega a formar o corpo de Cristo - ora, Cristo não é outro do que Aquele que se acha revelado; rejeitar a revelação, em detrimento de manter as tradições religiosas, é distorcer o Cristo!

Percebe-se igualmente nas entrelinhas do depoimento papal a doutrina católica da igreja como depositária dos sacramentos, abrindo a porta para outras ideias nocivas, como as indulgências, a intercessão dos santos, a infabilidade papal, etc. Tais dogmas têm em comum a ênfase nos méritos pessoais que tanto o Senhor Jesus, como algumas pessoas (os santos) alcançaram, e que se encontram acessíveis à comunidade dos crentes, através de sua administração feita pela igreja. Por isso, a Igreja Católica é uma denominação essencialmente sacramental, em que os sacramentos se definem não apenas por símbolos da Graça, mas rituais que igualmente servem de conduto para a Graça (ou seja, rituais que operam a salvação, paradigma teológico que nega a exclusividade da obra de Cristo!).

Só nos resta aguardar para ver os efeitos do diálogo entre católicos e fili...quer dizer, luteranos e o impacto disto sobre os cristãos em geral.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

SORTE OU PROTEÇÃO DIVINA?

Infográfico publicado pelo Estadão

"Sorte divina" foi como o governador de São Paulo, o tucano José Serra, defeniu o horário em que ocorreu o desabamento do templo-sede da Igreja Apostólica Renascer em Cristo. Os fiéis deixavam o prédio às 18:50 no último domingo, porque se iniciar uma outra reunião. Haviam entre 400 (Estadão) e 600 (G1) pessoas presentes, mas a capacidade do templo é de 2000 pessoas - e, de fato, esta seria aproximadamente a quantidade de fiéis, caso o desabamento se desse em horário posterior ou alguns minutos antes, durante o primeiro culto. Consequentemente, o número de vítimas (que chega a 9 mortos até o presente e 93 feridos) seria maior.

Sem dúvida, a trajédia não ter sido maior se deve a um fator divino; não meramente à "sorte", porém ao cuidado de um Deus amoroso, que se importa com indivíduoc. Independente de eu compactuar ou não com as crenças da Igreja Renascer, acredito que o Senhor cuida de todas as Suas criaturas, especialmente dos sinceros, que, dentro da luz que possume, o servem de todo o coração.

domingo, 18 de janeiro de 2009

MUITA POEIRA, POUCO VALOR

POLINIZAÇÃO DO PÓ


Faz horas que em vão busco respirar.
Como um lactente suga o peito,
Abro a boca e, através da sucção do ar,
Por hora dou um jeito.

Este é o mundo de pó, tudo nele o é
– Há pó desde o mármore à ardósia!
Não rias quando o pisas; sob teu pé
Dorme a carne antes rósea.

Eu mesmo, extradito para o pó,
Noto anseios rotos, são trapo,
Cada um por vez mais só.

Mas apalpo promessas que consolem:
Tem Deus sobre o pó em que escapo
Viva empapada em pólen.

domingo, 11 de janeiro de 2009

MÚSICA: UM ECTOPLASMA

Assisti recentemente, e sem muita expectativa (atitude que recomendo ao leitor, sob o risco de decepção profunda), ao filme "O som do coração" (do diretor Kirsten Sheridan, EUA: 2007 , distribuído pela Warner Bros. Pictures). A todo instante, a música é retratada na história como entidade externa, a qual o pequeno prodígio Evan (Freddie Highmore) é capaz de "sentir". A música conecta o garoto de 11 anos com seus pais desconhecidos, ambos músicos. O próprio menino desenvolverá rapidamente (e de forma um tanto forçada) suas aptidões musicais.

O filme ajuda a dar uma idéia generalizada, ainda que grosso modo, sobre como a música é concebida na mentalidade de nosso período histórico. Há uma aura mística em torno da Música enquanto arte - por isso, os artistas falam de sua produção como se uma força sobre-natural os arrebatasse, envolvesse suas capacidades e condicionasse o que eles compõem e produzem.

Em "O som do coração", Evan assume o pseudônimo de August Rush (título original da produção) e tenta, como músico de rua, "captar" a vibração que ele ouve, reproduzindo a música recebida através dos ruídos rotineiros de uma cidade grande. Ele não é um artista consciente, mas uma espécie de conduto para materializar a música que chega ao seus ouvidos.

Se a Música, ou qualquer outra expressão artística, é uma força natural, sentida apenas por aqueles que teriam dons especiais, o artista não pode ser responsabilizado por aquilo que produz, moralmente falando. Afinal, de fato ele apenas está expressando algo que não criou. Nesta visão, a Arte não vem de uma deliberação criativa, de um ser-humano que, por ser à imagem de um Deus Criativo, possui a habilidade de criar cultura (o que é a concepção teísta tradicional); pelo contrário, a Arte não é a autonomia da expressão, mas sua impossibilidade. O homem deixa de ser livre para criar e passa a ser um fantoche sob o controle de energias impessoais que o usam.

A produção artística é reflexo dos valores do homem, os quais variam com sua cultura (estando inclusos a nacionalidade, o regionalismo, a educação, a experiência pessoal, a prática religiosa, etc.). A arte não transcende os valores do artista. Com isto, é preciso que se preste um esclarecimento: acredito na influência de seres transcendentes. É possível que estes seres cooperem com o homem e o orientem na forma como produzem a Música e a Arte em geral.

Isso pode se dar em vários níveis. Os salmos, por exemplo, são hinos inspirados, nos quais vemos a destreza de compositores hebreus aliados ao fenômeno bíblico da Inspiração. Os hinários cristãos refletem valores religiosos profundos, sem, contudo, possuir o mesmo nível de contribuição sobrenatural que os salmistas recebiam (ou seja, os hinos podem ser inspiradores, mas não inspirados no sentido técnico, reservado aos profetas que agem sob o comando do Santo Espírito).

Para compositores e artistas (no sentido não pejorativo) cristãos, a Música depende de experiência pessoal com Deus, o que não fica reservado para o momento da produção; o Senhor deve moldar, através de Sua Palavra, a vida do artista, para que, compondo ou fazendo qualquer outra atividade humana, ele viva como um filho de Deus. Sua Arte é fruto dele, em cooperação com a Divindade. Assim fica devolvido o espaço à criatividade do ser feito à imagem de Deus. A música se torna fruto desta criatividade, devendo ser julgada pelo seu valor moral. Não resta mais espaço para aquela Filosofia estranha da Modernidade, mediante a qual a Música (assim como as demais artes) é vista como um tipo de ectoplasma.


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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

AS NARRATIVAS ESTRATIFICADAS




Certa vez, Harold Bloom disse: "Shakespeare lê você mais completamente do que provavelmente você o lê." O crítico literário americano estava expressando a incrível habilidade do bardo inglês de expor em suas peças a psique humana, de forma perceptível diferentemente, de acordo com a profundidade de cada leitor.
Para exemplificar melhor o que tenho em mente, talvez não devesse recorrer a Shakespeare; bastava falar dos desenhos animados. É patente que, de uns dez anos (ou mais) para cá, os produtores da Disney-Pixar e Dreamworks (apenas para citar duas das mais relevantes fábricas de fantasia) perceberam que além de entreter crianças, teriam de cativar os pais. Assim, os desenhos animado deixaram há muito de ser "coisa para crianças".
Tome Bee Movie - a abelinha como exemplo. As sequências bem boladas, o visual fantásticos e os personagens bonachões certamente entretém as crianças, mesmo as bem pequenas (de, digamos, uns quatro anos). Um adulto, assistindo ao mesmo filme, perceberá temáticas em outras camadas, estranhas à compreensão infantil. O filme se encaixa na atmosfera da cultura pós-moderna, com sua ética de unir seres diferentes dentro de um propósito comum, a emancipação dos oprimidos, a luta idealista para salvar a comunidade (fonte de identidade), etc.
Tanto em Shakespeare como nas animações, há estratos que nos permitem compreender a narrativa geral em diferentes graus de aprofundamento, sem prejuízo do tema principal. A presença desta característica, em obras diversas, sejam literárias, cinematográficas, plásticas ou de quaisquer outras naturezas, constitui o que me aprouve chamar de narrativas estraficadas (i.e., dividas em estratos, camadas, níveis de compreensão diferentes).
Quero propor que a Bíblia seja encarada como uma, aliás, como a principal narrativa estratificada. Nas Escrituras encontramos orientação para os simples e para os eruditos, e isto não apenas devido à diversidade presente nos livros que formam o cânon; mesmo um livro bíblico, tratado individualmente, apresenta os tais estratos.
Veja o material de Salmos, para fins de modelo do que apresentei antes. Há séculos, os salmos, poemas devocionais hebraicos musicados e amplamente usados na liturgia do santuário israelita, têm influenciado a devoção popular, pela sua linguagem que apela ao emocional. No entanto, as coisas não são simples como a primeira vista as percebemos.
Em cada salmo, há intrincados jogos literários, recursos sofisticados e uma teologia profunda, centralizada em Deus: ora na Sua atuação poderosa, protegendo Seu povo de guerras, honrando seu rei (caracterizado como ungido pelo próprio Deus e símbolo do Messias) ou legislando para ele regras justas, ora recebendo o devido reconhecimento por parte de Israel, que recorre a Ele nas crises pessoais ou nacionais, e O louva pelo Seu poder Criador e Redentivo.
Sobretudo, até nos multifacetados estratos vemos a condescendência divina: Sua verdade é compreensível e se acha moldada numa linguagem capaz de atingir os símplices, sem deixar de ser desafiante aos doutos.


domingo, 4 de janeiro de 2009

MARIANA E A TARTARUGA

Mariana: felinos (de pelúcia) sim, quelônios, não!

Neste final de ano, pude visitar minha família em São Paulo. E nisto, conheci Mariana. Ela é minha prima mais nova (26 anos mais nova, para ser exato), filha do único tio homem que tenho. Durante uma visita à minha avó, brincamos bastante com a Mariana.

Minha esposa levou-a no colo para passear. Somente no percurso é que uma fobia da pequena foi detectada: ela não teve um encontro lá muito amistoso com a tartaruga da nossa tia, que fica no quintal. Ao ver o pequeno réptil, Mariana já esboçava o choro na voz.

Em outro momento, Mariana tentou deixar a sala, na qual a família se reunia e fazer sua excursão solo pelo quintal. Com medo de que descesse sozinha a escada que dá acesso ao pátio, começaram a botar medo no bebê, fazendo lembrar que estaria no reduto de uma fera impiedosa e ágil – a tartaruga!

Não é incomum os adultos manipularem as crianças colocando nelas medos irreais, apenas para levá-las à obediência imediata. Se o método é correto ou pedagogicamente justificado, isto pode ser questionado. No entanto, fico nos resultados que advertências engendradas acarretam sobre o relacionamento de pais e filhos, a medida em que estes crescem descobrindo a mentira (bem intencionada) daqueles.

Em algum, momento Eva pode ter imaginado que Deus lhe mentira paternalmente (cf.: Gn. 3). Seu Criador poderia estar até bem intencionado – Sua advertência sobre não comer da fruta da árvore da vida visava Sua proteção. E, como uma adolescente que descobre que os princípios dos pais eram infundados, Eva resolveu agir de acordo com o novo conhecimento adquirido via serpente.

Neste ponto, nós podemos constatar a diferença entre as “mentirinhas” que os pais em geral contam para proteger seus filhos e o procedimento divino: o Senhor não pode mentir. Ele está inevitavelmente atrelado à Verdade por Sua própria natureza. Deus nos fala abertamente sobre as consequências de nossas escolhas (Dt. 30:19 e 20). Nosso Criador lida com a equação de liberdade sobre responsabilidade, que, quando bem resolvida, resulta em felicidade.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

À ESPERA DE UMA NOVA AURORA


“ – Aqui é a boca do lixo.” Meus olhos verificavam a acuidade da descrição, enquanto os pés seguiam. Eu e meu pai procurávamos uma livraria sebo na Rua Aurora, no centro de São Paulo.

Durante o caminho, passamos por maltrapilhos dormindo no chão, usando sacos de lixo como travesseiros e tendo ao lado cães, de forma semelhante às crianças que dormem com animais de pelúcia. O cheiro nauseabundo impregnava cada esquina, em meio ao frescor da manhã. Mas a Rua Aurora ainda era mais suja. O lixo humano ali grassa a cada metro quadrado. Prostitutas tomam café em bares. A pornografia irrompe em cada vitrine. Os cortiços deixam à mostra as roupas estendidas perto da janela.

Se fazer um inventário da miséria e sujidade é possível durante o dia, imagino que deixar de fazê-lo à noite torna-se impossível!

Achamos finalmente um sebo, dobrando a esquina em uma das travessas da Rua Aurora. Uma rápida sondagem mostrou-me que não havia nada ali de meu especial interesse. “O outro sebo saiu da Aurora”, informou o dono da livraria que visitamos. “O rapaz teve de vender. Ele começou a misturar livros com material pornográfico. Daí não deu certo.”

Deixamos a Rua Aurora para trás e voltamos a caminhar, em direção à Luz, passando pela Santa Ifigênia, paraíso da tecnologia barata. São Paulo é vasto. Todavia, a vastidão não pode encobrir a minúcia das vidas sem direção, dos antros sem solução social, onde as almas se vendem para sustentar não somente existências físicas, bem como sufocar o vazio de seus espíritos sem Deus.

Felizmente, isso não é tudo! Deus fez taxativamente a promessa de legar àqueles que O amam “um novo Céu e uma nova Terra” (Ap. 21). A ilegalidade, a falência da moral sem o apoio da transcendência, a criminalidade dos costumes pervertidos e tudo o mais será substituído, não nas muitas ruas Auroras que se encontram nas principais metrópoles da Terra somente; todo o mal humano deixará sua presença em nossos próprios corações. Nascerá uma nova aurora, a começar em cada mente. Quando a Aurora Eterna chegar, continuaremos caminhando para a Luz da presença pessoal de Deus. E o melhor: podemos sentir isso agora, através da comunhão com Aquele que é a Luz do Mundo (Jo. 8:12).

ANO NOVA, LÍNGUA NOVA

Se a ideia será bem sucedida, dependerá de acordos internacionais e suas consequências, mas que a mudança têm nos impedido, mesmo a curto prazo, de dormir tranquilos, isto lá é verdade!

A frase acima causará estranheza em qualquer pessoa alfabetizada (faltam um acento agudo e dois tremas) . E isto se deve, como todos devem saber, à nova Reforma Ortográfica, tão divulgada, e nem por isso menos estranha.

De todas as classes, os escritores são aqueles que encaram as mudanças na forma de escrever com maior desconfiança. Lembro-me de Bilac, saudosista diante da nova grafia de "lágrima" (na época, o poeta se acostumara a escrever "lágryma", sendo que via as letras "g" e "y" como duas lágrimas elas mesmas. Isso pode soar piegas para nós, mas daqui para frente nos defrontaremos com nossos próprios pieguismos, porque, seja por costume ou gosto, veremos alterações aonde não gostaríamos que nada fosse mexido).

Não adianta argumentarmos, a esta altura, que uma reforma ortográfica será incapaz de unificar a Língua Portuguesa, desenvolvida de forma tão independente dentro dos países que formam a comunidade de seus falantes (experimente ler qualquer coisa escrito no português de Portugal, por exemplo; a impressão para um brasileiro será a de estar diante de um outro idioma...). Claro que agora quaisquer argumentos contrários ao acordo se acham fora de questão.

Uma reforma ortográfica não para (assim mesmo, sem o tal do acento diferencial, que já deve estar na estação da Luz, junto às outras peças do Museu da Língua Portuguesa); por isso, aqui no Questão de Confiança, a palavra de ordem é resignação, seguida de outra, a saber adaptação. Nosso odisseia consiste em continuar postando, agora em uma nova língua, que na verdade é a mesma, mas repleta de mudanças significativas - que só tempo (além do uso) dirá se foram adequadas ou disfuncionais.