quinta-feira, 24 de maio de 2012

O CORAÇÃO VAZIO DA FÉ


Discutir evangelismo no contexto pós-moderno tornou-se um exercício dialético e missiológico dos evangélicos norte-americanos. Não que a discussão seja de todo desnecessária; apenas alguns de seus contornos se mostram equivocados. A preocupação válida é básica: a busca por um modelo de evangelização para o século XXI implica não só na sobrevivência da verdadeira vocação na igreja, mas serve de termômetro para se avaliar a identificação dos cristãos com o desejo de Jesus: salvar o perdido.
Vale ressaltar que outros segmentos cristãos demonstram a mesma apaixonada preocupação com a questão da evangelização – e outros equívocos igualmente flagrantes. Entre os cristãos católicos, talvez mais do que há 50 anos, a missão vem ganhando destaque. Infelizmente, sob fundamentos fajutos e pouco confiáveis.
O artigo Cristianismo é uma questão de coração, assinado por Salvatore Martinez, presidente da renovação carismática italiana, é sintomático no quesito non sense: seu cristianismo apresenta, ao menos, dois problemas notáveis.
O primeiro, refere-se a apoiar-se em tradição insípida, extra-bíblica e, portanto, despida do poder que acompanha a verdadeira pregação bíblica. O conceito que perpassa todo o texto de Martinez admite o papel preponderante de Maria como exemplo dos cristãos que querem seguir a Deus de todo o coração, ao mesmo tempo em que ela aparece intimamente associada com Jesus. Senão, vejamos: “O coração de Jesus, que é o Espírito Santo, é o coração de Maria.” Ao tornar Maria a pedra de toque da experiência e uni-la inseparavelmente a Jesus, numa fusão que confunde seus papeis, a defesa de uma evangelização mariólatra desmantela a ênfase cristã, que admite uma renovação espiritual sim, mas oriunda e direcionada pela palavra de Deus.
Porém, o artigo falha em outro ponto igualmente crucial. A religião é nivelada a mera questão de coração, como se segue: “A Palavra de Deus é palavra de amor escrita para os homens; ela se adapta, natural e sobrenaturalmente, mais ao coração do que à mente.”
Obviamente, a contraposição entre mente e coração não é bíblica, porque muito do que a Bíblia atribui a coração englobaria o que chamaríamos de mente. Martinez acaba se contradizendo ao enfatizar acertadamente que é “o coração que pensa, que relê, que concebe projetos, que toma decisões, que assume responsabilidades, que encara desafios, que procura a fraternidade. É o coração que desempenha o papel central na nossa vida exterior e encarna a plenitude da vida espiritual e material juntas.” Ora, se esse é, de fato, o papel do coração, não estaria englobando o que em nossa cultura atribuiríamos a mente – ações como “pensar”, “reler”, “conceber projetos”, “tomar decisões”, “assumir responsabilidades”, etc? Vale lembrar: para a nossa cultura, coração representa sentimentos, afetos; para a cultura judaica, coração inclui vontade, decisão, a totalidade da vida. Afinal, qual das definições o autor defende? Se a ocidental, porque faz uso logo abaixo de uma concepção mais abrangente, próxima à bíblica? Se a oriental, qual a razão do falso dilema “coração”/”mente”?
Reduzir a religião à dimensão do coração e privá-lo dos domínios da razão (mente), parece-me trair a essência da fé cristã, que lida com persuasão, evidências e fatos concretos. Nunca a religião se pretendeu um estado mental próximo a um regozijo irrefletido, uma emoção embriagante e sem fundamentos seguros. Não seria promover um esvaziamento da fé afirmar que ela independe de fatos, principalmente daqueles que se acham atrelados indelevelmente ao drama bíblico, ou mesmo à experiência cristã ao longo da História?
Toda discussão para evangelização perante nossos desafios é relevante desde que se apoie na Bíblia e em um modelo de racionalidade cristã autêntico. Do contrário, cristianismo perderá seu diferencial no mercado pós-moderno, tornando-se uma névoa de espiritualidade banal entre outros sopros momentâneos que balançam as folhas das árvores de nossos dias…

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