Cultura
é uma palavra que não aparece na Bíblia. Basicamente, sua raiz indica o cultivo
de algo, o que ganhou uma conotação mais ampla – hoje abrangendo praticamente
as atividades humanas mais variadas, desde a produção de conhecimento e arte, a
hábitos de vida de uma sociedade.
Não
é tarefa simples avaliar a cultura por um prisma cristão. Para complicar,
vivemos uma cultura em transição, devido às mudanças com viés tecnológicas,
globalização, relativismo, entre outros fatores. Outro problema se levanta ao
constatarmos que, uma vez que a cultura afeta quem somos, ela afeta nossa
maneira de pensar e de entender as coisas. E se a cultura influencia nossa
interpretação, o que isso representa para o estudo da Bíblia?
Quando
se lida com a hermenêutica, definida aqui de maneira simples, como ciência que
trata da interpretação de textos, as implicações são mais profundas: podemos
interpretar a Bíblia objetivamente ou estaríamos condicionados pela cultura a
uma interpretação determinada, incapazes de entender o sentido original da
Bíblia, o qual sempre nos escapará? Afinal, a cultura é um ponto de partida ou
seremos, por assim dizer, reféns dela, limitados ao seu escopo?
Em
realidade, a cultura, longe de ser algo estanque, é o que fazemos dela. Logo, é
possível uma transformação da cultura, a partir da transformação de quem está
inserido nela. Isso é significativamente diferente de afirmar que componentes
culturais são imprescindíveis para a construção teológica, posição que os cristãos
liberais adotaram desde cedo, pela maneira como enxergam o fenômeno
revelação-inspiração: apenas como um contato místico, sem transmissão de
conteúdo objetivo. Logo, os próprios escritores bíblicos, na visão dos
liberais, são condicionados pela cultura – que dizer então dos intérpretes das
Escrituras! A conclusão: afirma-se que o evangelho muda a cada geração, porque
sua compreensão estaria sempre comprometida…
Sustentar
que a Bíblia não pode ser compreendida senão à luz da cultura é uma afirmação
que pressupõe um entendimento pós-moderno da hermenêutica. Antigamente, se cria
em neutralidade – alguns até defendiam que a Bíblia deveria ser seguida, sem
necessidade de qualquer interpretação. Não penso que isso seja possível;
afinal, toda leitura pressupõem uma interpretação. Ao mesmo tempo, a admissão
de que nossa compreensão é condicionada pela cultura pode levar a uma
relatividade do entendimento. Isso cairia na teologia liberal, sem dúvida.
O
que fazer? Muitos teólogos e filósofos falam de aproximação cultural. Isso se
dá pela compreensão da intentio operis
(intenção do texto, conceito proposto por Agostinho), que é soberana sobre a
intenção do intérprete. Todo intérprete não pode ultrapassar as ideias do
texto. Para compreendê-lo com clareza, deverá estudar o sentido que ele possuía
aos seus primeiros leitores, perfazendo um jogo de aproximação que libertará o
texto de mal entendidos. Na verdade, o intérprete pode mudar suas
pressuposições hermenêuticas em contato com a obra (segundo parte da teoria de Gadamer).
Como
isso se dá no estudo da Bíblia? Estudá-la acaba levando à assimilação de
princípios hermenêuticos da própria Bíblia. Dito de outra forma: a Palavra de
Deus nos transmite conceitos sobre como interpretá-la. Pensadores pós-modernos gostam de nos lembrar
que somos humanos, com conhecimento limitado. Mas isso não nos impede de
conhecer a verdade de modo essencial, embora não de modo onisciente. Deste modo,
não precisamos nos calar diante dos desafios que a cultura levanta na área da
hermenêutica.
Na
história do movimento adventista, têm havido muitas mentes brilhantes que não
souberam responder aos desafios da cultura. Originalmente, os adventistas
entenderam que foram chamados para ser o remanescente de Deus nos últimos dias.
Sua função era transmitir as últimas verdades ao mundo no contexto do juízo
iminente. O conceito de remanescente surgiu do estudo das profecias e está
ligado à identidade adventista. Seria complexo e estranho haver teologia
adventista sem a noção de remanescente. Os últimos a proporem isso acabaram
levando a resultados no mínimo questionáveis.
Steve
Daily o fez e hoje é pastor de uma congregação que é uma espécie de adventismo
aberto a outros cristãos (seja lá isso o que for...), na qual até se fala em
línguas! Fritz Guy fez o mesmo e hoje sua teologia se tornou liberal em muitos
pontos (evolucionismo teísta, homossexualidade, etc). Fica claro que uma
interpretação bíblica que assimile aspectos liberais e admita que a cultura
deve nos ajudar na construção do pensamento teológico jamais poderá sustentar
que somos o povo remanescente. Aliás, não poderia haver um remanescente, porque
não existiriam verdades únicas a serem transmitidas. A cada geração, a verdade
muda, porque a interpretação muda – tal é a cilada da teologia liberal!
Gosto
do espírito de Gerard Hasel: ele “questionou” a tradição adventista não para
propor algo definitivamente novo, que alguns gostam de honrar como se todo
novidade acadêmica significasse intrepidez e discernimento. Hasel pesquisou
embasado na Bíblia, revisando pontos importantes da argumentação adventista.
Sua proposta significou um retorno radical à Bíblia. Obviamente, há outros
eminentes estudiosos adventistas, anteriores e posteriores a Hasel, comprometidos
com o espírito dos pioneiros. Eles contribuem em suas respectivas áreas. Além da
erudição especializada, cada adventista, obreiro ou membro, é desafiado a
crescer em suas compreensão bíblica, construindo sobre o alicerce dos
pioneiros. Na atualidade, esse talvez seja o maior desafio intelectual do
movimento adventista: reformar a cultura com a mensagem das Escrituras.
Infelizmente,
o que não desenvolvemos no pensamento teológico, copiamos de outros, que, por
sua vez, sustentavam sua teologia mais com base na filosofia do que na Bíblia.
Isso passou a ocorrer talvez a partir da década de 30 ou 40, continuando a
ocorrer até hoje. Assim se descaracterizou o adventismo, fazendo dele quase a
mesma colcha de retalhos que é o mundo evangélico.
Sei
que é difícil para adventistas que vivem em um contexto mais tradicional
enxergar esse fato e recebo muitas perguntas nesse sentido. Mas meus amigos na
Europa e nos Estados Unidos, fora a literatura especializada, conhecem a
probante dificuldade de um adventismo dividido pela cultura. Já é hora de
voltarmos ao projeto dos pioneiros.
Voltando
à ideia de remanescente, não só a Bíblia advoga o conceito, como nossos
pioneiros – praticamente todos eles – criam que fazíamos parte de um
remanescente com uma mensagem distintiva. Além disso, como afirmado antes,
todos os nossos pioneiros criam que o movimento adventista era o remanescente
da profecia - inclusive, Ellen G. White. Se houve um engano, teríamos um
problema mais sério: como um profeta pode ensinar algo (de forma consistente,
ao longo de décadas) que seja um erro?
Além
deste aspecto, do ponto de vista da efetividade, não vejo como poderíamos fazer
a diferença nos tornando apenas mais um grupo evangélico dentre outros! Afinal,
os dados mostram que o movimento adventista mais cresce nos lugares onde se
mantém a visão tradicional de um remanescente: onde quer que a teologia liberal
tenha se disseminado, a igreja estagna e tende ao ecumenismo. Vide Alemanha.
Claro
que apenas manter aspectos tradicionais sem nos posicionar em relação a
questões contemporâneas é insuficiente. Temos de alcançar uma geração com o
evangelho eterno, oferecendo as respostas bíblicas às perguntas atuais, não nos
acomodando com os velhos enfoques.
Aqui
vale repensar sobre o paradigma distorcido que importamos do mundo evangélico:
se o mundo mudou, temos que mudar para conseguir evangeliza-lo. Ora, o mundo ter mudado, não constitui
novidade em absoluto: ele sempre muda! A pergunta é: mudar junto com ele (mudar
quanto à essência) seria realmente necessário? Isso não nos levaria a
relativizar a fé? Como podemos representar a Deus para a cultura na qual nos
achamos inseridos se não temos uma identidade singular, e somos apenas mais um
grupo que vive em seu gueto confortável?
Um comentário:
E o que dizer de culturas, onde a postura é abertamente contra os princípios bíblicos, como os canibais? Parece-me que em casos como esses, fica muito claro que o evangelho pressupõe mudança de vida, rompimento com a cultura, pois está explícito na Lei Moral. A grande questão é quando situações não estão registrada no texto sagrado (em que pese o EP tocar neles... por isso, muitos não reconhecem a autoridade profética nesse ponto), e a questão envolve interpretação dos princípios como vc bem colocou. E satanás é astuto nisso. Entra em jogo o "isso não tem nada a ver"; "todos estão fazendo", e por último, o tiro de misericórdia: "faz parte da nossa cultura". Como se a Bíblia devesse dizer cada coisa que podemos ou não fazer; neste caso, onde estaria o livre arbítrio e o pior, a inteligência humana e capacidade de argumentação, análise e interpretação? O interessante é que muitos que gritam pela adequação à cultura, quando mostramos que muitos princípios adventistas estão de acordo com a cultura, imediatamente respondem: "não seguimos tradições humanas"! Em outras palavras, é a rebelião aberta, rebeldia consciente, que está fazendo com que muitos relativizem a fé, esquecendo que o caminho é estreito e difícil, mas é o que leva à salvação; enquanto que o caminho largo, onde todos estão andando, é o que leva à perdição!
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