sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O DOM PROFÉTICO NO LIVRO DE NÚMEROS



Ao longo do Antigo Testamento, percebe-se a comunicação de Deus com Seu povo por intermédio dos profetas, o que ocorreu em ocasiões de maneiras diversas (Hb1:1). Todavia, o profeta sempre é reconhecido como aquele que fala pelo divino, sendo que em a terminologia bíblica inicial fala que o espírito do Senhor veio sobre a pessoa, enquanto a terminologia mais tardia é “veio a mim a Palavra do Senhor”.[1] Basicamente, os profetas comunicavam a Palavra de Deus para situações presentes, confrontando o pecado de Israel, mas também intercediam pelo povo diante de Deus.[2]
Apesar de associar-se profetas aos livros que o escreveram ou aos livros históricos, encontramos exemplos e manifestações proféticas no Pentateuco. Aliás, é justamente no Pentateuco que ocorre a primeira menção à palavra “profeta” (Êx 4:16). No livro de Números, o qual narra a travessia do povo de Israel até Canaã, em continuação aos episódios referidos no livro de Êxodo, em meio a sua variedade de temas e gêneros literários[3], há passagens que abordam o tema do dom profético. Nesse artigo, analisaremos brevemente algumas referências a profetas em Números, focando três narrativas distintas: (1) O episódio em que Deus repartiu seu Espírito sobre os líderes de Israel (Nm 11), (2) a controvérsia envolvendo Moisés e seus irmãos (Nm 12) e, finalmente, (3) a chamada “perícope de Balaão” (Nm 22-24).
Em virtude do limite de espaço, faremos considerações pontuais sobre os três episódios, focando no que o livro de Números ensina sobre o dom de profecia. Ao fim, apresentaremos o resumo de nosso estudo, juntamente com um esboço de uma possível teologia de Números sobre o dom profético.

O Espírito Repartido

O contexto de Números 11 trata de uma crise que enfrentava a liderança de Moisés. A queixa, fomentada por estrangeiros entre o povo (Nm 11:4), estava relacionada a razões dietéticas (Nm 11:4-6). Diante da pressão popular (Nm 11:10), Moisés queixou-se com Deus e mostrou a exaustão que sua responsabilidade lhe causara, a ponto de admitir que não tinha condições de continuar liderando sozinho o povo, preferindo a isso a própria morte (Nm 11:14-15). Após atender a demanda do povo de forma miraculosa, Deus decidiu repartir o Espírito dado a Moisés entre outros setenta líderes, que passaram a profetizar, o que fizeram apenas nessa ocasião (Nm 11:24-25). O contexto sugere que “houve distribuição tanto qualitativa como quantitativa do espírito do Senhor.”[4]
Curiosamente, duas autoridades que faziam parte do grupo, Eldade e Meldade, também profetizaram, fazendo-o no meio do acampamento (Nm 11:26), razão de despertar-se os ciúmes de Josué (Nm 11:29), o jovem auxiliar de Moisés. Ciúmes ou zelo, nesse caso revela que Josué deseja que Moisés continue sendo o único líder.[5] Obviamente, era um zelo fora de lugar.[6] A resposta de Moisés indica uma disposição não de monopolizar os dons divinos, mas de vê-los livremente atuando na comunidade (Nm 11:29).

Desavença entre Moisés e seus irmãos

Uma nova crise atinge Moisés em Números 12, desta vez com um caráter familiar. Seus irmãos passaram a criticá-lo em decorrência da etnia de sua esposa (Nm 12:1-2). Para sanar a questão, Deus convocou os três irmãos e, em defesa de Seu servo, explanou a diferença entre Seu contato com os profetas e a maneira como se relacionava com Moisés (Nm 12:6-8).
O termo profeta (nabi), que aparece no verso 6, é o mesmo referido quando Moisés expressou seu desejo de que todo o povo profetizasse (Nm 11:29). Deus se comunica com os profetas tradicionalmente por sonhos (Chalowm, palavra que aparece com mais frequência no livro de Gênesis, mas apenas aqui no livro de Números) e visões (Mar'ah, termo usado por profetas na época do exílio, como Daniel e Ezequiel). Porém, Moisés falava com Deus boca a boca, ou seja, face a face. Quando junto com o povo, Deus se manifestava a ele por meio de Sua presença no santuário; mas quando a sós, era como se Deus lhe permitisse estar dentro da tenda sagrada.[7] O contato de Moisés com Deus era, portanto, “mais regular e familiar” em relação àqueles que possuíam uma experiência profética.[8] Assim, Arão e Miriã, também relacionados entre os profetas (Dt 18:15; 34:10), deveriam respeitar seu irmão, uma vez que ele “é posto à parte e acima dos profetas.”[9]

A perícope de Balaão

Israel chegou à estepe de Moabe. Sem dúvida, diante de uma eventual invasão israelita, Balaque formou uma liga Moabe-Midiã (Nm 22:4), sendo a solução encontrada em consenso (Nm 22:5, 6): a única forma de conter o avanço do povo santo era amaldiçoá-lo. Para o serviço, contataram Balaão, cuidando, na mensagem destinada ao vidente, em não mencionar quem era o inimigo, a fim de evitar um conflito de interesses, uma vez que ele consultaria o Deus de Israel para amaldiçoar Seu próprio povo.[10]
É muito debatido o status de Balaão: profeta legítimo ou mero vidente? O termo que lhe é atribuído, “adivinho”, é “pejorativo ou apresenta sentido negativo, especialmente nos livros proféticos.”[11] Por mais inverossímil que tal personagem pareça, a arqueologia descobriu um conjunto de relatos em paredes de gesso do século VIII a.C, o qual guarda paralelos com essa narrativa bíblica. No relato, Balaão é mencionado e descrito como estando em associação com vários deuses; apesar disso, não se pode descartar que ele tenha sido um monoteísta no passado, especialmente por viver em uma geografia que o ligava aos arameus, antepassados de Abraão e seus descendentes.[12]
Outras descobertas se relacionam a Mari, cidade situada entre a Babilônia e Alepo. Ali se praticava o profetismo pagão e os achados nos informam sobre esta prática no Antigo Oriente próximo. Basicamente, havia profetas que se constituíam oráculos sacerdotais (muitos deles também praticantes da prostituição sagrada) e profetas extáticos. Embora não se explique o fenômeno da revelação entre eles, “é possível que os prognosticadores extáticos da Mesopotâmia usassem substâncias que alterassem a percepção, como álcool, haxixe ou esporão de centeio [com efeitos alucinógenos[13]].”[14]
É digno de menção que Ellen G. White afirma que Balaão possuía conhecimento (ao menos parcial) sobre o Deus verdadeiro,[15] o mesmo juízo expresso pela literatura rabínica.[16] O próprio Balaão utiliza uma palavra em seu terceiro pronunciamento, traduzida como “palavra” ou “oráculo” (Nm 24:3), cujo sentido indica “declaração profética inspirada (2 Sm 23:1) ou uma declaração do Senhor (e.g. Gn 22:16; Nm 14:28; Is 1:24).”[17]
Apesar de inicialmente Deus vetar Balaão de atender ao convite de Balaque (Nm 22:12), Ele o permitiu após um segundo encontro com o vidente (Nm 22:20). A viagem deve ter durado cerca de 20 dias.[18] Contudo, durante a ida do profeta, por três vezes sua montaria interrompeu o curso da viagem (Nm 22:23-27). A reação de Balaão foi castigar severamente sua jumenta (Nm 22:27). Curioso é perceber o contraste entre as consequências da ira divina (causa da intervenção do anjo) e as inconsequências da ira humana (vista na atitude de Balaão contra o animal). No momento em que Balaão se mostrava mais irracional, Deus tornou a jumenta racional. Até um animal usado por Deus age com mais inteligência do que um homem obstinado no erro. Com efeito, Deus pode usar qualquer pessoa ou coisa, como alguém já considerou:

Da mesma forma que Balaão cavalga a sua mula até ser ela detida pelo anjo do Senhor, Balaque igualmente impulsiona Balaão a amaldiçoar Israel até que é detido pelo seu encontro com Deus. Da mesma forma como Deus abre a boca da mula, ele colocará as Suas palavras na boca de Balaão, para declarar a sua vontade. Este paralelismo entre Balaão e sua mula sugere que a capacidade de declarar a Palavra de Deus não é necessariamente sinal da santidade de Balaão: revela somente que Deus pode usar qualquer pessoa (e até um animal) para ser Seu porta voz.[19]

Obviamente, o episódio serviu de alerta para que Balaão apenas dissesse o que Deus mandasse (Nm 22:35), compromisso que se viu obrigado a cumprir, mesmo à revelia de seu contrato com Balaque. A respeito de seus oráculos, depreende-se deles o quão precioso e notável é Israel para Deus, a ponto de ser considerado especial, entre todos os povos da Terra![20] Um comentário assevera que como “o primeiro e o segundo oráculos, o terceiro se refere às bênçãos de prosperidade, poder e fama […]”.[21] Talvez se possa dizer com maior precisão que, enquanto os dois primeiros poemas de Balaão se referem ao passado de Israel, os dois últimos apontam para o Messias vindouro.[22] Parece que Balaão se porta como autêntico profeta em seus pronunciamentos finais.[23] Até mesmo a palavra que é usada para suas visões (Machazeh) é usada no Pentateuco em referência a aparição divina a Abrão (Gn 15:1).
No último pronunciamento feito pelo vidente, temos a compreensão de que se descreve o rei messiânico como “experimentando um novo Êxodo escatológico, recapitulando em sua vida os eventos do Israel histórico no seu Êxodo do Egito e conquista de seus inimigos.”[24] No mundo antigo, a estrela representava uma divindade. Considerando isso e a difusão dessa profecia de Balaão em meio ao paganismo,

Não é coincidência que uma estrela guiasse os magos do oriente ao bebê Jesus em Belém (Mt 2:1-11). Tanto os magos como Herodes consideram a estrela como sendo um sinal do divinamente designado “rei dos judeus” (2:2), um governante como a “estrela” davídica fora de Jacó que Balaão viu (Nm 24:17). Nesse caso, o recém-nascido Rei era o Filho de Deus (Lc 1:32-35), cuja origem era celestial, divina (Jo 3:13, 31; 6:38, 51), tornando o símbolo da estrela ainda mais apropriado.[25]

Dessa forma, as profecias de Balaão alcança uma realização escatológica, apontando para o Messias vindouro. Que um profeta pagão antevisse a vinda do Salvador da humanidade é de causar assombro!

Conclusão

No livro de Números, encontramos menção a episódios envolvendo manifestações proféticas ou alusões ao tema. Neste artigo, tratamos de três menções, duas delas envolvendo Moisés, outra, não. No primeiro caso, vimos como Deus concedeu temporariamente o dom de profetizar aos anciãos de Israel, mostrando que as responsabilidades da liderança mosaica estariam divididas entre eles. Apesar da medida haver desgostado Josué, o próprio Moisés afirmou que seria muito melhor se todo o Israel recebesse uma parte do Espírito distribuído à liderança. No segundo caso, em meio à uma desavença familiar que afetava a imagem de Moisés, Deus expressou seu íntimo relacionamento com seu servo, superior à experiência profética e, sem dúvida, um caso peculiar, talvez sem paralelos na História do antigo Israel. Por fim, verificamos nos relatos envolvendo Balaão que o Senhor usou um vidente pagão para abençoar Seu povo, agindo de forma soberana para mostrar que Israel era distinto das demais nações e que lhe estavam reversadas bênçãos futuras, em continuidade a tudo o que Deus já lhes havia proporcionado. Também a promessa messiânica é afirmada por meio de Balaão e, surpreendemente, para um auditório pagão.
Revisando as três passagens, sugerimos as seguintes implicações para uma possível teologia do dom profético no livro de Números: (1) Deus é Soberano na escolha de Seus mensageiros, podendo, em casos específicos, fazer uso de pessoas não diretamente ligadas ao Seu povo, para eventualmente transmitir verdades, embora regularmente Se revele a pessoas que desfrutam de um relacionamento com Ele; (2) O Espírito do Senhor é imputado de maneira sobrenatural ao profeta, condicionando-o a exercer um ministério em favor do povo de Deus, maiormente para guia-lo em assuntos espirituais; (3) Mesmo um profeta necessita reconhecer e respeitar líderes instituídos por Deus, não os desrespeitando ou discriminando arbitrariamente.



[1] John J. Schmit, “Preexilic Hebrew prophecy”, in David Noel Freedman, The Anchor Bible Dictionary (New York, NY: Doubleday, 1992), 482.
[2] Robert L. Cate, “Prophet”, in Watson E. Mills, Mercer Dictionary of the Bible (Macon, Georgia: Mercer University Press, 1990), 715.
[3] Jacob Milgrom, Numbers - The JPS Torah Commentary (Philadelphia, NY: The Jewish Publication Society, 1990), xiii.
[4] Ibid., 90–91.
[5] Timothy R. Ashley, The Book of Numbers – The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1993), 216.
[6] Philip J. Budd, Numbers - Word Biblical Commentary (Waco, TX: Word Books Publisher, 1984), 129.
[7] Milgrom, Numbers, xxxviii.
[8] Budd, Numbers, 137.
[9] Milgrom, Numbers, 95.
[10] Roy Gane, Leviticus, Numbers – The NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2004), 690.
[11] Charles H. Savelle, “Canonical and Extracanonical Portaits of Balaam,” Bibliotheca Sacra, 2009, vol. 166, no 664, 390.
[12] Gane, Leviticus, Number, 690–691.
[13] Trata-se de uma espécie de fungo parasita conhecido como ergot (Claviceps pupura).  O fungo afeta o centeio e outros cereais, provando diversos sintomas em seres humanos, inclusive alucinações, podendo levar à morte por envenenamento. A bióloga Linnda R. Caporael sugeriu em seu artigo Ergotism: The Satan Loosed in Salem? que o esporão de centeio teria causado alucinações em Elizabeth Parris e outras meninas de sua vila, caso que gerou uma perseguição à mulheres de Salém, acusadas de bruxaria. Daí nasceu a conhecida lenda das Bruxas de Salem. Ver Robin Robin DeRosa, “Specters, The Salem Witch Trials and American Memory” (dissertação de doutorado, Boston, MA: Tufts University, 2002).
[14] R. K. Harisson, Numbers: A Exegetical Commentary (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1992), 294.
[15] “Balaão já havia sido um bom homem e profeta de Deus; mas apostatara e entregara-se à cobiça; todavia professava ainda ser servo do Altíssimo. Não ignorava a obra de Deus em prol de Israel; e, quando os enviados comunicaram sua mensagem, bem sabia que era seu dever recusar as recompensas de Balaque, e despedir os embaixadores. Mas arriscou-se a contemporizar com a tentação […]”Ellen Gould White, Patriarcas E Profetas, (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), 16a ed., 2a imp., p. 439,
[16] Savelle, “Canonical and Extracanonical,” 397.
[17] Gane, Leviticus, Numbers, 709.
[18] T. Carson, Números, in F.F. Bruce, Comentário NVI: Antigo E Novo Testamento (São Paulo: Editora Vida, 2009), 1a reimpr. da 1a ed., 335.
[19] Gordon J. Wenhan, Números: Introdução E Comentários – Série Cultura Bíblica (São Paulo, SP: Vida Nova, 2011), 4a reimp. da 1a ed., 175.
[20] Raymond B. Dillard and Tremper Longman III, Introdução Ao Antigo Testamento (São Paulo, SP: Editora Vida, 2006), 87.
[21] Anastasia Boniface-Malle and Tokunboh Adeyemo, in Comentário Bíblico Africano (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2010), 198.
[22] Martin G. Kingbeil, “Poemas en medio de la prosa: poesía insertada en el Pentateuco”, in Gerald A. Kingbeil, Inicios, paradigmas y fundamentos: estudios teológicos y exegéticos en el Pentateuco (San Martín, Entre Ríos: editorial Universidad Adventista del Plata, 2004), 81.
[23] Ver (a) Dennis T Olson, Numbers (Louisville: John Knox Press, 1996), 147; (b) Eugene H. Merril, Kingdom of Priest: A History of Old Testament Israel (Grand Rapids, MI: Baker Publishing Group, 2008), 2a ed., p. 107.
[24] Richard M. Davidson "A Estrutura Literária Escatológica Do Antigo Testamento", Timm et al, "O Futuro: A Visão Adventista Dos Últimos Acontecimentos: Artigos Teológicos apresentados no V Simpósio Bíblico-Teológico Sul-Americano em homenagem a Hans K. Larondelle” (Engenheiro Coelho, São Paulo: Unaspress, 2004), 9.
[25] Gane, Leviticus, Numbers, 713.

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