quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A ILUSÃO DE CASANDRA

Cassandra, na mitologia, cativou Apolo, que lhe deu o dom da profecia. Mas como a jovem não cedeu às seduções do deus, ele a condenou a ter seus vaticínios desacreditados pelos seus contemporâneos. Aproveitando o tema de expectativas frustradas, o cineasta Wood Allen dirigiu “O Sonho de Cassandra” (EUA / Inglaterra / França, 2007, Iberville Productions / Virtual Studios / Wild Bunch).

Allen, mais conhecido por suas comédias, define Cassandra como “a história de alguns jovens muito simpáticos que se envolvem numa situação trágica, em função de suas fraquezas e ambições.” [1] Não à toa, Tiago Mota em seu blog classifica o cineasta como “excelente crítico da alma humana.”[2]

O drama gira em torno de dois irmãos de uma família da classe trabalhadora de Londres: o metido Ian (Ewan McGregor) e o viciado em apostas Terry (Collin Farrell). Ambos tem dívidas e recorrem ao bem-sucedido tio Howard (Tom Wilkinson), que aparece no aniversário da mãe dos rapazes. Em troca de ajuda a Terry, que quer iniciar uma rede de hotéis na Califórnia, e a Ian, que perdeu 90 mil euros num jogo de cartas, Howard propõe que seus sobrinhos lhe façam um favor: eliminem um certo Martin Burns (Philip Davis), que poderia prejudicar Howard.

A ética postulada pelo titio vigarista é que a família está acima de tudo e que todo homem deve proteger os seus. Este pretexto dá a Wood Allen a excelente oportunidade de deixar no ar as implicações de uma moral tão comum na sociedade pós-moderna – até que ponto alguém estaria disposto a ir para proteger a sua família?

O dilema que se instala nos irmãos decorre do conflito entre suas ambições e o que crêem ser certo. “E se Deus existir?”, pergunta a certa altura Terry, o mais resistente a aderir à proposta de Howard. Quando um plano é traçado e levado a cabo, Ian tenta racionalizar, num exercício para convencer tanto a sim mesmo como ao irmão de que fizeram algo necessário. Na cena em que se livram das armas do crime, Terry inquire: “No que está pensando?” “O que passou, passou, e o agora é o agora. Que fizemos aquilo e acabou. E é sempre a agora”, responde Ian , para logo prosseguir : “E fizemos a coisa certa.” “Você está certo, Ian. É o agora, é sempre o agora.”, desabafa umTerry alcoolizado e melancólico.

Enquanto Ian segue o seu romance com uma jovem atriz e pensa no futuro, seu irmão começa a sentir cada vez com mais intensidade o remorso. Em outro diálogo da dupla, um Terry trêmulo e mentalmente perturbado diz “Infringimos a lei de Deus.”,“Deus, que Deus, seu idiota!” O utilitarismo de Ian derruba suas convicções. Mas apesar de disposto a viver como se nada tivesse ocorrido, Ian não deixa de perceber as alterações no comparsa, que se afunda nos vícios, no sonambulismo e ameaça se entregar para ficar livre do preso da culpa.

Sem outra saída, Ian recorre a Howard. “Temos que sobreviver”, sentencia laconicamente o tio. “Mas ele é da família”, argumenta o jovem, para em seguida emendar: “Ele [Terry]estava certo sobre uma coisa: estávamos ultrapassando o limite.” Este é um ponto curioso do filme: habilmente, o enredo faz com que a ética de “proteger a família a todo custo” se volte contra a própria família.

Sem perder o ritmo nostálgico e sugerir uma atmosfera de normalidade, O sonho de Cassandra se utiliza da aparente normalidade como uma ferramenta para questionar a própria normalidade. É normal justificar um assassinato para proteger alguém que talvez mereça estar preso, apenas por que “é da família”? É justificável qualquer estratagema visando à ascensão social?

Em um de seus últimos diálogos, ao velejarem juntos, Terry pondera o próprio ato criminoso. Depois de ouvi-lo, Ian arremata: “Você só está abalado porque ficou cara a cara com a sua natureza humana.” Talvez toda a explicação para a ação dos dois irmãos, do tio, da amante egoísta de Terry, resuma-se nisto: um problema de natureza. Ou como dissera anteriormente o pai dos irmãos homicidas em outra cena : “Ninguém quer ser egoísta, mas na verdade todos são.” Nossa natureza egoísta cria ambições e atropela tudo para chegar até elas, enquanto cria a ilusão de que a normalidade permanece inalterada. Isto fica patente no filme porque, após o trágico fim dos irmãos, suas namoradas estão em uma loja, comprando roupas, completamente alienadas sobre o que se passa no ancoradouro.

Cassandra é um filme tenso, questionador, de difícil digestão. Apesar de seu ritmo arrastado e da tensão psicológica, oferece oportunos questionamentos sobre os valores da pós-modernidade e sobre o tipo de moral emergente. Neste ponto, o filme serve de advertência sobre os perigos da ética do consumismo e suas conseqüências no mundo real. Mas seria esta outra profecia desacreditada de Cassandra?

Um comentário:

joêzer disse...

a crítica de allen à amoralidade contemporânea vem desde 'crimes e pecados' (1989).
'match point' (2005) aborda o problema do crime sem culpa ou sem castigo.
algo semelhante está em 'o sonho de cassandra' em que há fortes traços do dostoievski de 'crime e castigo', do criminoso torturado pelo senso de culpa, e de 'os irmãos karamazov', em que um personagem (do livro) pergunta: "se Deus não existe, então tudo é permitido?'

um abraço