Charlote voltava da academia com alguma
frustração no olhar esverdeado. Seus lábios tremiam. “Não vou chorar na rua”,
prometia-se enquanto caminhava. Passou em frente a uma loja e viu sua imagem na
vidraça. Olhou-se de alto abaixo, tentando imaginar como um homem a veria. Já
não era mais aquela estudante universitária, com sardas no rosto e cintura “de
pilão”. Ajeitou os longos cachos do cabelo tingido de loiro. Pôs a mão na
cintura e ficou concentrada. “Que papel ridículo. Por que estou parada aqui?”
resolveu-se ir para o ponto de ônibus. “Justo hoje o motor pifou! Que me falta
acontecer?”
Duas chamadas não atendidas. Não retornaria
agora. Em dez minutos, estava pagando o cobrador e tomando assento ao lado de
uma janela. Ainda seus lábios tremiam, os olhos cheios de lágrimas. Tirou,
então, a carta amassada da bolsa. Leu-a duas, três vezes. Havia quase decorado
suas palavras, lido suas denúncias. Será que teria coragem de ir a fundo
naquela história?
Desceu num cruzamento, pondo-se a caminhar no
mesmo ritmo frenético de antes – a raiva queimara em seus pés e seus rastros
tornavam-se chispas esvoaçantes. Olhou da esquina o consultório de advocacia,
com seu ar high tec e o movimento costumeiro. Fez esforço para enxergar além de
suas paredes, observar quem estaria lá dentro, o que estariam fazendo. Queria
poder ter certeza, mas, não tendo, seguiu em outra direção.
Passou pela portaria e cumprimentou um casal de
idosos, que voltavam de sua caminhada vespertina. O sro E a sra Kirsche.
Pareciam doces e amáveis, sempre unidos, de mãos dadas, como namorados eternos. Chegou mesmo a invejá-los, como nunca antes. Por que eles eram tão felizes e
esperançosos?
Subiu para seu andar ainda pensando no casal de
idosos. Parecia que a velha Kirsche lhe sorrira de modo estranho, quase irônico.
Ela saberia? Girou a chave e pronto! Estava em casa. Despencou no sofá e pôde,
enfim, chorar.
Como que saída de um sonho, Charlote
levantou-se de súbito, com seu rosto inchado e seu corpo amolecido. Conseguira
amassar sua camiseta e parecia ainda mais feia! Leria a carta uma última vez?
Abriu a bolsa e hesitou… mas aquilo lhe consumia, como um entorpecente, criando
uma necessidade doentia, que a deixava fora de si, como uma louca,
completamente desnorteada e embriagada. Ela precisava beber as amargas palavras
relatadas. Seu marido pensaria serem fatos concretos, mera boataria ou maldade
de alguém? Como investigar e apurar tudo?
Rodrigo logo voltaria do escritório e brigaria
com ela. Aliás, ele não suportaria novamente ser submetido a tantas perguntas. Queria
esquecer aquele assunto, e até tentara rasgar a carta (Seu espírito pragmático
ignorou a missiva, indispondo-se a dar crédito ao que de depreciativo houvesse
sobre a esposa). Isso é que não, resistia Charlote. Estavam no olho do pior
furacão que atravessaram em seus quinze anos de casados. Sorte que não puderam
ter filhos!
Antes do poente, Rodrigo entrava, depositando
seu paletó desajeitadamente na mesa de jantar, enquanto exibia o corpo
atlético, o que sempre levava Charlote à amargurada constatação de que os anos
para as mulheres costumam ser mais ingratos. Ela fingiu saudades e boa
disposição. Ele, conforme seu ritual em fim de expediente, estourou pipoca e
sentou-se em frente ao televisor para assistir o futebol internacional. A
esposa não ousaria interromper a dedicação do advogado, que, pela frieza
demonstrada em quase tudo, mal parecia o mesmo. Rodrigo pulava e vibrava, a
cada drible e cruzamento; as defesas eram saudadas por ele com espasmos e
gritos frenéticos. Sabia o nome de cada jogador como se fora um cliente antigo.
Era realmente difícil não se contagiar pelo entusiasmo daquele torcedor.
Charlote deixou a sala entre frustrada e
apreensiva. Na solidão de seu quarto, pegou a carta mais outra vez. E pensou em
voz alta: “Da próxima vez que a Carla escrever, vou pedir a ela que invente
nome e endereço para o meu amante!”
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