quinta-feira, 11 de junho de 2015

ADVENTISTAS E A PARÁBOLA DA LARANJA


O subcomitê preparou o I Fórum de discussão sobre a carência de vitamina C no município de Andorinhas. O salão paroquial da cidade abrigou o evento, que foi divulgado pobremente no único jornal de toda a região. Pobremente porque a situação emergencial requeria uma medida extrema, rápida, sem tempo para maiores planejamentos. E o prefeito Juca recebeu exaustivas advertências da Secretaria de Saúde Pública de Andorinhas.
Juca não fazia o tipo preocupado com nenhuma questão envolvendo saúde (quer pública ou mesmo particular, dado o número de cartelas de cigarro consumidos diariamente por ele), ou algo tão ínfimo quanto a carência de qualquer vitamina que fosse. Entretanto, se chegara ao cargo máximo de administrador público do município, isso se devia a seu faro para potencializar problemas e oferecer soluções miraculosas. Às vésperas do último ano de um mandato pífio, far-lhe-ia bem à pretensão de sucessão resolver algo urgente.
 O fórum recebeu a atenção integral de seus assessores, incumbidos de alarmar a cidade com o novo problema. Apesar de notar a pobreza da divulgação, ao menos no número de veículos envolvidos, é preciso retificar e admitir o sucesso da propaganda, posto estar cheio o ambiente. Algum adivinho quiçá o tenha visto no globo de uma bola de cristal e tido tempo de comunicar os assessores municipais, o que explicaria as centenas de cadeiras de plástico locadas para garantir mais gente assentada ou detalhes como os ventiladores extras trazidos. Juca sorria como quem imaginasse não demorar muito a voltar para a cadeira no gabinete que ocupava.
Diante de milhares de eleitores, ou melhor, cidadãos de Andorinhas, Juca abriu o discurso na melhor tradição política – falou muito, não disse coisa com coisa, mas impressionou as pessoas. Seguiram-se vozes de especialistas, que mostraram os baixos índices de vitamina C prognosticada na média da população, os riscos disso e algumas possíveis medidas. Ao fim, o vereador João Lobo convidou à frente o empresário Klefetis Capitioso. Caso nos leia alguém que não logrou a sorte de ter em Andorinhas sua terra natal, é necessário apresentar um tipo conhecido por todos: o Sr. Capitioso, dono da maior – talvez seja necessário comentar, da única – fábrica de Andorinhas, responsável pela equilibrada economia da cidade. A Accommodatio, fábrica de refrigerantes bastante popular, empregava, ao todo, mesmo nesses nossos tempos de crise, 108 pessoas. Desse modo, a mera presença de Klefetis Capitioso em uma reunião como aquela gerava tensão e expectativa.
O sr. Klefetis parecia-se com um desses gurus da neurociência, falando de um modo calculado, com as devidas pausas e muitos olhares dirigidos diretamente ao pública. Juca sentia profundo alívio em se certificar que aquele homem de roupas modernas, cabelo curto e alinhado e que transpirava eficiência não tivesse qualquer ambição política. Afinal, todo poder que Klefetis queria, o poder dos revolucionários, dos idealizadores, dos grandes solucionadores, disso ele já gozava. Em poucos minutos, todos sabiam e aprovavam seu plano:
“Amigos, dizia na arrematadora conclusão, vamos usar, para combater esse problema da vida pós-moderna, uma abordagem mais arrojada, porque as novas gerações não querem mais saber de laranjas. Vocês sabem, se o consumo de laranjas aumentasse, toda essa epidemia jamais existiria”, disse olhando para baixo e deixando um curto e surdo suspiro ecoar, para retomar com novo ímpeto: “Mas o que precisamos agora é contextualizar a laranja para o consumidor atual, que não possui interesse em comer frutas. Uma nova embalagem, um novo sabor, propagandas em outdoors pelas cidade, no jornal, na rádio.” Olhava para cima, quase que vendo, ou fazendo a gente ver, o que dizia, “New Orange – é cítrico, é legal, é para você”. A reação foi imediata: palmas e vivas se seguiam, mães abraçando os filhos que não morreriam sem vitamina C, o prefeito sabendo que, se as pessoas estavam felizes, não haveriam razões para descontinuar sua administração; tudo parecia perfeito.
Os meses que se seguiram trouxeram a materialização do plano. A New Orange ganhou o mercado mais com aura de elixir milagroso do que mero produto comercial. Professoras faziam campanhas para que as crianças trouxessem o refrigerante-sensação da Accommodatio para o intervalo das aulas. Em diversos locais públicos, como biblioteca, museu, rodoviária e praças, instalaram-se máquinas com latinhas de New Orange. Dada a posição oficial que o novo produto ganhou, quase que tendo simultaneamente o status de lei e patrimônio público, poucos se atreviam a criticar a criação de Klefetis Capitioso. Mesmo para aqueles que, por alguma razão ou intuição pessoal, a New Orange não era a solução, impunha-se o silêncio, muitas vezes até auto imposto, porque ali estava, se pensava, um mal necessário ou, em um juízo mais positivo, a melhor solução possível. Mas as coisas mudaram com o tempo.
Primeiro, demorou alguns meses até que uma jovem médica, chamada Aleteia, começasse a perceber carência de vitamina C em muitos de seus pacientes, sobretudo os mais jovens. “Doutora, isso é impossível, eu tomo tanta New Orange que devia ter vitamina C acumulada até os netos!” Aleteia escutava coisas assim com tanta frequência que seu senso científico começou a fabricar perguntas. Aleteia resolver, discretamente, fazer algumas pesquisas. Os resultados a perturbaram: nenhuma evidência encontrada de que a New Orange suprisse a falta de vitamina C.  Aleteia refez os testes. E outra vez, e uma última. Sempre resultados consistentes com os da primeira pesquisa.
Ela e um amigo farmacêutico publicaram os resultados em uma revista acadêmica da região. Depois veio um artigo para um jornal de outra cidade. Finalmente, a notícia chegou voando (com perdão do infame trocadilho) em Andorinhas.  Era o caos: protestos na rua, manifestações em favor da New Orange com gente vestida com camisetas laranja (a cor), acusações de que produtores de laranja (a fruta) em outro munício estavam por trás da pesquisa ou que outra empresa de refrigerantes estava usando Aleteia como laranja (na gíria) para minar a New Orange. Não deu outra: a pobre médica se mudou. Aleteia temia pela vida em uma cidade em que não era bem vinda.
Depois dessas conturbações, a fama da New Orange se espalhou e ela passou a ser importada. Klefetis Capitioso sonhava em expandir seu produto por todo país. Ocorre que em um mundo globalizado os referenciais não são locais, mas globais. Não tardou para que pessoas mais esclarecidas começassem a acusar a Accommodatio de ter copiado refrigerantes de outros países. A New Orange era vista não mais como o produto revolucionário, apenas uma reprodução em terreno nacional do que havia lá fora. A partir daí, outras críticas se seguiram: quem bebe do refrigerante, não possui interesse pela fruta, que é a verdadeira portadora de vitamina C; a New Orange faz mal para os ossos e é prejudicial para os diabéticos; alguns dos produtos de sua fórmula são cancerígenos. Até a população de Andorinhas se alarmou escutando tantas coisas ruins sobre a New Orange. Quem não se alarmou foi Capitioso, porque sabia que poderia sustentar a fama de seu produto com silêncio diante das críticas e propaganda agressiva. Tampouco, Juca se alarmou: já estava no meio do seu segundo mandato.
  
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