O subcomitê preparou o I Fórum de discussão sobre a carência de vitamina C no município de Andorinhas. O salão paroquial da cidade abrigou o evento, que foi divulgado pobremente no único jornal de toda a região. Pobremente porque a situação emergencial requeria uma medida extrema, rápida, sem tempo para maiores planejamentos. E o prefeito Juca recebeu exaustivas advertências da Secretaria de Saúde Pública de Andorinhas.
Juca não fazia o tipo preocupado com nenhuma
questão envolvendo saúde (quer pública ou mesmo particular, dado o número de
cartelas de cigarro consumidos diariamente por ele), ou algo tão ínfimo quanto
a carência de qualquer vitamina que fosse. Entretanto, se chegara ao cargo
máximo de administrador público do município, isso se devia a seu faro para
potencializar problemas e oferecer soluções miraculosas. Às vésperas do último
ano de um mandato pífio, far-lhe-ia bem à pretensão de sucessão resolver algo
urgente.
O fórum
recebeu a atenção integral de seus assessores, incumbidos de alarmar a cidade
com o novo problema. Apesar de notar a pobreza da divulgação, ao menos no
número de veículos envolvidos, é preciso retificar e admitir o sucesso da
propaganda, posto estar cheio o ambiente. Algum adivinho quiçá o tenha visto no
globo de uma bola de cristal e tido tempo de comunicar os assessores municipais,
o que explicaria as centenas de cadeiras de plástico locadas para garantir mais
gente assentada ou detalhes como os ventiladores extras trazidos. Juca sorria
como quem imaginasse não demorar muito a voltar para a cadeira no gabinete que
ocupava.
Diante de milhares de eleitores, ou melhor,
cidadãos de Andorinhas, Juca abriu o discurso na melhor tradição política –
falou muito, não disse coisa com coisa, mas impressionou as pessoas. Seguiram-se
vozes de especialistas, que mostraram os baixos índices de vitamina C prognosticada
na média da população, os riscos disso e algumas possíveis medidas. Ao fim, o
vereador João Lobo convidou à frente o empresário Klefetis Capitioso. Caso nos
leia alguém que não logrou a sorte de ter em Andorinhas sua terra natal, é
necessário apresentar um tipo conhecido por todos: o Sr. Capitioso, dono da
maior – talvez seja necessário comentar, da única – fábrica de Andorinhas,
responsável pela equilibrada economia da cidade. A Accommodatio, fábrica de
refrigerantes bastante popular, empregava, ao todo, mesmo nesses nossos tempos
de crise, 108 pessoas. Desse modo, a mera presença de Klefetis Capitioso em uma
reunião como aquela gerava tensão e expectativa.
O sr. Klefetis parecia-se com um desses gurus da
neurociência, falando de um modo calculado, com as devidas pausas e muitos
olhares dirigidos diretamente ao pública. Juca sentia profundo alívio em se
certificar que aquele homem de roupas modernas, cabelo curto e alinhado e que
transpirava eficiência não tivesse qualquer ambição política. Afinal, todo
poder que Klefetis queria, o poder dos revolucionários, dos idealizadores, dos
grandes solucionadores, disso ele já gozava. Em poucos minutos, todos sabiam e
aprovavam seu plano:
“Amigos, dizia na arrematadora conclusão, vamos
usar, para combater esse problema da vida pós-moderna, uma abordagem mais arrojada, porque
as novas gerações não querem mais saber de laranjas. Vocês sabem, se o consumo
de laranjas aumentasse, toda essa epidemia jamais existiria”, disse olhando
para baixo e deixando um curto e surdo suspiro ecoar, para retomar com novo
ímpeto: “Mas o que precisamos agora é contextualizar a laranja para o
consumidor atual, que não possui interesse em comer frutas. Uma nova embalagem,
um novo sabor, propagandas em outdoors
pelas cidade, no jornal, na rádio.” Olhava para cima, quase que vendo, ou
fazendo a gente ver, o que dizia, “New
Orange – é cítrico, é legal, é para você”. A reação foi imediata: palmas e
vivas se seguiam, mães abraçando os filhos que não morreriam sem vitamina C, o
prefeito sabendo que, se as pessoas estavam felizes, não haveriam razões para
descontinuar sua administração; tudo parecia perfeito.
Os meses que se seguiram trouxeram a
materialização do plano. A New Orange
ganhou o mercado mais com aura de elixir milagroso do que mero produto
comercial. Professoras faziam campanhas para que as crianças trouxessem o
refrigerante-sensação da Accommodatio para o intervalo das aulas. Em diversos locais
públicos, como biblioteca, museu, rodoviária e praças, instalaram-se máquinas
com latinhas de New Orange. Dada a
posição oficial que o novo produto ganhou, quase que tendo simultaneamente o status de lei e patrimônio público,
poucos se atreviam a criticar a criação de Klefetis Capitioso. Mesmo para
aqueles que, por alguma razão ou intuição pessoal, a New Orange não era a
solução, impunha-se o silêncio, muitas vezes até auto imposto, porque ali estava,
se pensava, um mal necessário ou, em um juízo mais positivo, a melhor solução
possível. Mas as coisas mudaram com o tempo.
Primeiro, demorou alguns meses até que uma jovem
médica, chamada Aleteia, começasse a perceber carência de vitamina C em muitos
de seus pacientes, sobretudo os mais jovens. “Doutora, isso é impossível, eu
tomo tanta New Orange que devia ter vitamina C acumulada até os netos!” Aleteia
escutava coisas assim com tanta frequência que seu senso científico começou a fabricar perguntas. Aleteia resolver, discretamente, fazer algumas pesquisas. Os
resultados a perturbaram: nenhuma evidência encontrada de que a New Orange suprisse a falta de vitamina
C. Aleteia refez os testes. E outra vez,
e uma última. Sempre resultados consistentes com os da primeira pesquisa.
Ela e um amigo farmacêutico publicaram os
resultados em uma revista acadêmica da região. Depois veio um
artigo para um jornal de outra cidade. Finalmente, a notícia chegou voando (com
perdão do infame trocadilho) em Andorinhas. Era o caos: protestos na rua, manifestações em
favor da New Orange com gente vestida
com camisetas laranja (a cor), acusações de que produtores de laranja (a
fruta) em outro munício estavam por trás da pesquisa ou que outra empresa de
refrigerantes estava usando Aleteia como laranja (na gíria) para minar a New Orange. Não deu outra: a pobre
médica se mudou. Aleteia temia pela vida em uma cidade em que não era bem
vinda.
Depois dessas conturbações, a fama da New Orange se espalhou e ela passou a
ser importada. Klefetis Capitioso sonhava em expandir seu produto por todo
país. Ocorre que em um mundo globalizado os referenciais não são locais, mas
globais. Não tardou para que pessoas mais esclarecidas começassem a acusar a Accommodatio
de ter copiado refrigerantes de outros países. A New Orange era vista não mais
como o produto revolucionário, apenas uma reprodução em terreno nacional do que
havia lá fora. A partir daí, outras críticas se seguiram: quem bebe do
refrigerante, não possui interesse pela fruta, que é a verdadeira portadora de
vitamina C; a New Orange faz mal para
os ossos e é prejudicial para os diabéticos; alguns dos produtos de sua fórmula
são cancerígenos. Até a população de Andorinhas se alarmou escutando tantas
coisas ruins sobre a New Orange. Quem não se alarmou foi Capitioso, porque
sabia que poderia sustentar a fama de seu produto com silêncio diante das
críticas e propaganda agressiva. Tampouco, Juca se alarmou: já estava no meio
do seu segundo mandato.
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