Mais
de quinze mil páginas e cinquenta anos de preparo.
O
Oxford English dictionary corresponde
a aproximadamente (em número de páginas) cinco dicionários Houaiss, o mais completo
em Língua Portuguesa. A Macmillan company
escolheu para editor do projeto o Dr. James Murray, presidente da Sociedade de
Filologia da Inglaterra. Apesar de suas habilitações, logo Murray deu-se conta
de estar diante de um desafio sobre-humano. Seria necessário um assistente!
Como
num passe de mágica, surge Dr. W. C. Minors: este misterioso acadêmico, sabendo
do projeto, remeteu uma carta ao Dr. Murray – estava disposto a colaborar. Um
acadêmico que caiu do céu? O Dr. Murray, entre confuso sobre o desconhecido e
com medo de transparecer sua desconfiança, respondeu ao Dr. Minors, simulando
aceitar a ajuda. Talvez, pensava, Minors até nem estivesse mais interessado…
A
segunda carta de Minors convenceu Murray que seu colega desconhecido era um
gênio. Não demorou muito e ambos passaram a colaborar através de
correspondências. As sugestões e contribuições do Dr. Minors eram cada vez mais
valiosas. Apesar disto…
Sequer
um encontro houvera entre os eruditos até então! Do Dr. Minors apenas se sabia
o endereço: Crowthorne, Inglaterra. Decidido a conhecer seu colaborador mais
próximo, o Dr. Murray convidou-o a ir para Oxford através de uma carta. A
missiva que se seguiu contava da impossibilidade do Dr. Minors, por razões
físicas, de visitar o colega. Porém, o Dr. Murray seria bem-vindo em sua
residência.
Em
alguns dias, o Dr. Murray viajou até a Wellington
College Station; lá, um cavalheiro uniformizado o escoltou até a residência
de seu genial correspondente. Para o choque de Murray, ele não encontrou um
campus universitário ou a residência de um acadêmico excêntrico – pior: o Dr.
Minors era interno no Broadmoore Asylum,
que tratava de criminosos insanos! O maior colaborador do Oxford English dictionary não passava de um lunático perigoso!
Sobre
o Dr. Minors, “é suficiente dizer que temos aqui um homem cujo conhecimento
excedeu sua vida… cuja deslumbrante demonstração de discursos foi somente
ultrapassada por seu confuso espetáculo de corrupção.” [1] Conhecimento, por si
só, não possui o poder de transformar a conduta de vida. Mesmo que estejamos
tratando de conhecimento da Bíblia.
Por
vezes me surpreendo com o quanto as pessoas conhecem sobre a Bíblia ou a
respeito de doutrinas, o que é, sem dúvida, algo positivo. Porém, se em sua
experiência você tem decorado versículos bíblicos, e, ainda assim, fracassando
espiritualmente nos mesmos pontos, já passa da hora de conseguir algo além de
uma boa memória. Permita-me ilustrar:
A parábola do livre-docente
Então, o livre-docente dirá também aos que
estiverem à sua esquerda: apartai-vos de mim, malditos, para a reclusão, junto
aos tolos e ignorantes.
Porque vocês tinham a Bíblia, mas não examinaram
todos os manuscritos disponíveis em Grego e Hebraico;
Porque vocês pregavam, mas não utilizavam
meticulosamente comentários, concordâncias e Atlas bíblicos;
Porque vocês davam estudos bíblicos, mas deixaram
de se preparar cursando o seminário teológico e fazendo uma especialização em
Arqueologia bíblica em Jerusalém;
Porque vocês testemunharam, mas foram incapazes de
preparar uma dissertação breve, com quatrocentas páginas de texto (fora a
bibliografia) a respeito da história de sua denominação religiosa;
Toda vez que deixaste de estudar, deixaste de crer!
Por
favor, não quero minimizar a importância do estudo. Nossa cultura brasileira já
é bem-sucedida em fazê-lo. Ocorre que, de fato, é uma ilusão medir o
cristianismo pelo que você conhece; cristianismo se mede pelo Deus que nós
conhecemos através de uma convivência poderosa o suficiente para moldar nossa
visão sobre quem somos, sobre a vida, sobre os valores e sobre nosso propósito
em estar neste mundo. Conhecimento sem mudança é intelectualismo vazio, incapaz
de impactar tanto a nós mesmos como os que nos cercam.
Mas,
a exemplo do Dr. Minors, um grande número de cristãos tem seu discurso
contrariado pela prática. Vera Paiva, professora da USP, e coordenadora de
estudos sobre a sexualidade, especialmente entre jovens pertencentes a grupos
religiosos, explicando o aumento da iniciação sexual antes dos dezenove anos de
idade, afirma:
Quero chamar a atenção para o seguinte: mesmo
diante dos dogmas, as pessoas conseguem ser sujeitas de sua própria
sexualidade. Veja que esse estudo envolveu jovens que são líderes religiosos na
sua comunidade. Eles participam, são ativos, militam. Os evangélicos afirmam
que sexo fora ou antes do casamento é pecado e permitem ou mesmo recomendam
contraceptivos, mas dentro do matrimônio. Quando você vai ver, uma proporção
imensa deles transou antes do casamento - e sem preservativo. Então dizem uma
coisa e fazem outra. [2]
Isso
não acontece, evidentemente, apenas no aspecto da sexualidade, mas envolve
diversas facetas da experiência. Ocorre que nossa época vê com desconfiança
tudo quanto se relacione com regras. Há alguns anos, alguém detectou esse
sentimento e traduziu na seguinte declaração:
“‘hoje
em dia, um número crescente de pessoas sente cada vez menos restrições ou
inibições interiores contra a desobediência de qualquer lei ou código moral que
interfira em seus desejos ou impulsos particulares. Enquanto os estigmas
sociais que eram atribuídos à quebra da lei e desvio da moral tradicional se
enfraquecem, a distinção entre liberdade e libertinagem torna-se cada vez mais
obscurecida no espírito do indivíduo. ‘A lei é vista como um inimigo a ser
destruído ou passado para trás’. No final das contas, o único ‘pecado’ é ser
‘apanhado’.’” [3]
Aliás,
não é à toa que um dos Best-sellers
de espionagem tenha o curioso título: “O décimo primeiro mandamento: não te
deixarás apanhar”! [4] Muitos cristãos parecem guardar apenas este mandamento…
A
religião já não significa o mesmo para nossa geração em relação o que até então
significara; testemunhamos um espírito religioso que se desenvolve “longe do
controle e tutela institucionais”, que se multiplica em “formas originais de
crença”. Tais crenças estão baseadas na “manifestação do divino”, não como
produto de fé na Bíblia, mas, sim, devido à influência de um misticismo crescente.
[5]
Essa
nova religiosidade não busca a “verdade absoluta”, porque vê o “mundo
espiritual” como algo que “não tem fronteiras”; agora o que importa são as
“preferências” e “escolhas” do indivíduo – “Eu vou acreditar naquilo de que
gosto e que me faz bem agora. Vou crer no que eu quiser neste momento.”
Mas
as escolhas do indivíduo estão diretamente relacionadas com as da tribo, ou
seja, de outros indivíduos, que partilham do mesmo gosto, opinião e afinidades.
As tribos são, portanto, “grupos de interesses homogêneos.” [6] Por causa do
novo fenômeno religioso moderno, as crenças se diluem e se misturam (chamamos a
isso de sincretismo religioso).
Não
é a primeira vez na história do povo de Deus que a fé verdadeira fica ameaçada
por uma salada de crenças; sempre, em períodos como o que vivemos, Deus atua no
sentido de levantar pessoas para viverem corajosamente os princípios revelados.
Pessoas que possuam a visão correta de Deus, de si mesmas e de sua missão.
Pessoas que saibam no que creem e porque devem crer de uma determinada forma.
Mais ainda: Deus levanta o tipo de gente que pratique com coerência aquilo que
é a verdade instruída por Ele. Em seu discurso de posse do primeiro mandato, em
1º de Janeiro de 2003, o presidente Lula declarou a respeito da reforma agrária:
“As terras produtivas justificam-se por si mesmas.” Um princípio similar se
revela na vida espiritual: os frutos que você produz revelam quem você é. Há um
caminho para isso:
Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas
transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de
experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Romanos
12:2, NVI.
Devemos
rejeitar as visões distorcidas deste mundo, suas falsas filosofias e correntes
de pensamento contrárias à verdade bíblica; em seguida, devemos fazer
diariamente um up-date, uma renovação, que começa na mente, apropriando-nos da
Revelação divina (lendo a Bíblia, estudando, buscando compreendê-la);
finalmente, estas ações concretas nos levarão à prática – experimentar e comprovar
a vontade celeste em nossa própria vida cotidiana, em todos os seus aspectos.
Num mundo cego espiritualmente, é preciso ter dois olhos, e bem abertos, para
enxergar corretamente a realidade.
[1] Recontei o episódio a partir de
Greg Herrick, The Life of the Mind,
disponível em . Herrick, por
sua vez, cita como fonte da história Paul Harvey, Jr. Paul Harvey's The Rest of the Story (New York: Bantam, 1997).
[2] Mônica Manir, Com fervor e autonomia, disponível em .
[3] Clare Boothe Luce, If Precente Social Trends Continue, Democracy
‘Is Bound to Collapse”, U.S. News and World Report, 5 de Julho de 1976, p.
65 e 66, conforme citado em Jerry White, Honestidade,
moralidade e consciência (Rio de Janeiro, RJ: JUERP, 1990), 3ª ed.
[4] Jeffrey Archer , O décimo primeiro Mandamento: não te
deixarás apanhar, in Seleções de Livros, Lieratura Estrangeira (Rio de Janeiro, RJ: Editora Reader's Digest
do Brasil Ltda, 2001).
[5] Neste ponto, vale nos lembrarmos de
que a própria mística (termo equivalente para misticismo) é definida como “uma
experiência subjetiva e pessoal cujo centro é a ideia de união com Deus ou com
o princípio fundamental de toda a realidade.” Carlos Eduardo Sell e Franz Josef
Brüseke, Mística e Sociedade
(Itajaí, SC: Universidade do Vale do Itajaí; São Paulo, SP: Paulinas, 2006), 18.
Se a mística é subjetiva e pessoal, não é de se estranhar que a nova
religiosidade, moldada por ela, apresente-se com estas duas características.
[6] Robson Ramos, Evangelização no mercado pós-moderno (Viçosa, MG: Editora Ultimato
Ltda, 2003), 16, 86, 91-92. Para uma análise do influxo da religiosidade
moderna na liturgia e músicas cristãs, ver Douglas Reis, A música sacra na cosmovisão adventista: analizando e interpretando
conceitos de Ellen White, parte 2, disponível em
e Douglas Reis, A canção e a vida,
disponível em .