segunda-feira, 16 de novembro de 2009

LER EM SUPER-MERCADOS



Semanalmente, ao menos, eu necessito fazer compras. Geralmente, frequento com alternância dois super-mercados: um maior, com dezenas de prateleiras, gôndolas e a exibir variedade imensa de produtos. O segundo, mais modesto, apresenta, no entanto, a vantagem de situar-se próximo à minha casa, dando-me a liberdade de fazer uma boa caminhada, se eu assim me dispuser. Em ambos, encontro revistas e livros a granel.

Ler durante as compras é um exercício de anos, prática que me ajuda a manter-me informado, simplesmente ao dar uma furtiva passada de olhos pelos periódicos semanais. Folheio páginas e mais páginas, atento ao que me pareça relevante – em meio à futilidade da mídia, algumas notícias merecem a atenção.

Ontem, levantei-me mais tarde do que o costume e, em virtude do horário, aboli a primeira refeição. Corri ao mercado, digo, ao segundo, aquele que as circunstâncias fizeram estar perto de casa. Assim, daria tempo de comprar certos artigos e retornar, a fim de almoçar mais cedo. Entretanto, vi-me forçado a gastar uns minutinhos com um livro exposto na frente de um dos caixas: era um romance, maçudo (como se dizia antigamente), da autoria do português Lobo Antunes. Enquanto me dirigia aos corredores, abri na primeira página e li para mim as palavras iniciais, sempre intrigantes e caudalosas de Antunes.

Ao abandonar o livro, saciado pela impressão funda daqueles parágrafos, ocorreu-me refletir sobre a diferença produzida por essa leitura e aquela, das revistas. Quase não logrei usufruto do romance, porque Lobo Antunes exige que se leia algumas páginas, para se adequar ao seu estilo, antes de apreciá-lo devidamente – de forma semelhante a um ante-pasto. Em contrapartida, jornais e revistas, grosso modo, são de assimilação mais rápida.

Posso arriscar-me a dizer que jornalistas e escritores expressam afeição pelo mundo de formas peculiares, não opostas, nem de todo complementares: os primeiros amam o mundo exato, objetivo, formado pela cobertura completa, os editoriais racionais, as colunas espirituosas e as reportagens que buscam reconstruir ao máximo a realidade. Já os escritores, amam o mundo retratado, personalizado, intrigante em seus jogos de palavra e suas formulações subjetivas, que não deixam de demandar pesquisa e contato íntimo com a realidade, embora deixem margem à imagética reconstrutiva.

É inconcebível um jornalista que ousasse escrever como Antunes, com seu palavrório pesado, suas frases longas – a pobre alma ganharia um manual de escrita de algum editor contrafeito, que lhe cobrasse mais agilidade. Afinal, ninguém escreve mais com a elegância de Bilac, que, além de poeta (um poeta chato, na maior parte do tempo!), exibia morosidade agradável em suas contribuições para os jornais. O que hoje se exige de um redator? Linguagem condensada, enxuta e precisa.

Estou certo de que muitos escritores não se arriscam a enveredar pela imprensa porque se sentiriam castrados, sem a liberdade de escrever sem limites de caracteres ou com a responsabilidade de informar em poucas linhas sobre determinado fato. O escritor não quer escrever pouco, justamente porque o escrever muito parece indicar fôlego, audácia e inventividade (nem sempre a premissa é verdadeira). A maior parte dos escritores também é por demais aborrecida com a trivialidade do cotidiano, e, quanto a isso, há uma longa lista de nomes que poderíamos usar para justiçar-nos – Kafka, por exemplo, era indiferente à vida familiar, ou a qualquer coisa que lhe ocupasse o tempo em que poderia produzir literatura. O próprio José Saramago, polêmico autor do romance Caim e desafeto de Lobo Antunes, seu conterrâneo, desmerece a própria existência, dizendo que o homem é indigno dela (a declaração, dada a jornalistas da Folha, arrancou do blogueiro Reinaldo de Azevedo a conclusão de que, ou Saramago não se considerava humano, ou que deveria, pelo menos, ser coerente e cometer suicídio!).

Embora flertasse recentemente com o cotidiano, em seu blog O caderno de Saramago, o Nobel do além-mar logo se cansou de postar, abrindo mão da iniciativa em prol de outros projetos. Curiosamente, Saramago elogiou em uma de suas últimas postagens dois escritores contemporâneos que são, simultaneamente, jornalistas.
Seja como for, da próxima vez que for fazer compras, priorizarei revistas e jornais – livros lerei em casa, deitado em meu sofá.

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