O
ideal de normatização, segurança e conhecimento por meio de técnicas que
proporcionem o domínio da natureza marcou a Modernidade. Quando o
desenvolvimento tecnológico se revelou dúbio (na ocasião das duas grandes
guerras mundiais) e a Ciência ineficaz para solucionar todos os dilemas, a
Modernidade entrou em colapso. A partir de então, entramos no período
Pós-Moderno. O secularismo (perda do sentido religioso) cedeu lugar a uma
espiritualidade difusa. A busca pela Verdade se tornou a tolerância entre
muitas verdades (regulamentadas por comunidades interdependentes). O prazer
pessoal passou a ser um modelo de vida, substituindo a antiga moral social.[1]
Neste
âmbito, o Cristianismo enfrenta o desafio de perder sua relevância. Diversas
abordagens evangelísticas são propostas para os novos tempos. Ao mesmo tempo,
corre-se o risco de sofrer a influência da mentalidade pós-moderna, a qual,
inevitavelmente, prevalece sobre certas denominações e indivíduos cristãos.
No
presente artigo, abordaremos o risco de nos tornarmos cristãos pós-modernos,
exemplificando a questão com o caso do teólogo Leonardo Boff, ex-frei
franciscano e um dos proponentes da Teologia da Libertação. Tomamos com base
entrevistas dadas por Boff a setores da imprensa e seu mais recente livro,
Ética da Vida.[2]
ENGAJAMENTO CONTRA O CRISTIANISMO
“ACIDENTAL”
Leonardo
Boff permanece como um dos mais influentes teólogos latinoamericanos
contemporâneos. Juntamente com Gustavo Gutiérrez e demais pensadores católicos,
Boff contribuiu para a criação da Teologia da Libertação, conforme ele próprio
depõe: “[…] Foi na ebulição latinoamericana, na década de 1970, depois de
assumir a cátedra de teologia em Petrópolis, e nesse contexto que junto com
outros elaboramos a teologia da libertação.” Para o ex-frade, a Teologia da
Libertação (TL, doravante) teria “um olho na realidade conflitiva” (injustiça
social) e outro na “reflexão crítica moderna”.[3]
No
centro dessa teologia, se acha o pobre, que luta e sofre, elemento que
constitui, na avaliação de Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, o seu caráter
“pré-teológico”. Carvalho chama a atenção para o aspecto revolucionário da TL,
uma vez que a única forma de romper a opressão (e “libertar o pobre”) se dá com
a ruptura do sistema opressor.[4] Um reflexo disso no Brasil está na íntima
relação entre a TL e o Movimento dos Sem-Terra (MST). “[…] O MST nasceu da
Igreja[Católica] [,] mas hoje tem um curso próprio. É importante que a Igreja
tenha lhe dado uma mística e que continue como aliado leal, mas é
independente.” [5]
Por
sua forte influência marxista e seu ativismo político-social, a TL foi
condenada pela igreja Católica e Leonardo Boff, em virtude da imposição do
“Silencioso Obsequioso”, renunciou seu ministério em 1993. Na época, o
coordenador do processo contra o ex-franciscano foi Joseph Ratzinger, eleito
papa em 2005. Atualmente, Boff continua a lecionar, escrever, dar palestras e
participar de comunidades de base. Ele explica seu engajamento divisando dois
fazeres teológicos: o primeiro, preocupado em aprofundar as questões da fé e o
segundo, que se ocupa com as questões do mundo. Em sua visão, a Teologia deve
“pensar os problemas humanos e sociais, sempre, lógico, à luz da pertinência da
fé.” Caso contrário, se a Igreja Ocidental “não se preocupar em adaptar-se às
transformações do mundo, ela ficará cada vez mais acidental.”[6]
CRISTIANISMO
SEM VERDADE
Boff
reconhece que há “uma mudança de paradigma civilizacional”. O novo período, que
a mídia tem inaugurado com seu papel “quase messiânico”, é a “fase planetária”.
Enquanto a cultura ocidental “homogeneizou toda a humanidade” com violência (o
que, diríamos, corresponde à Modernidade), surgiram desigualdades. A solução?
“[…] A saída é uma democratização da democracia. […] Fazer participar o mais
possível todo mundo em todas as coisas que interessam a todos. A consequência é
mais igualdade e mais satisfação geral.”
Para
a igreja participar positivamente deste processo, ela tem de aprender a
dialogar. “[…] Ou nos abrimos e dialogamos, com os riscos inerentes, ou então
nos fechamos seremos condenados à fossilização, ao dogmatismo, e novamente ao
fundamentalismo e às guerras religiosas e ideológicas.”[7]Aqui, com maestria, o
teólogo define o dilema do Cristianismo, em geral, perante os desafios do
Pós-Modernismo – ou dialogar ou contentar-se com a irrelevância; porém, se o
enunciado do problema ficou claro, o que dizer da resolução apontada?
Antes
de respondermos à pergunta, devemos entender os termos que Boff propõe para o
diálogo religioso. Ele defende que o “cristianismo tem que ser uma coisa boa
para os seres humanos e não só para os cristãos.” [8] Perguntado pela revista
Veja sobre a questão do aborto, o teólogo responde que a “Igreja não tem o
monopólio da ética e da verdade.” [9]Em outro momento, Boff declara ser
“preciso que a Igreja abdique do monopólio da verdade, que ela não tem.”
[10]Como, então, conhecer a verdade religiosa, se não através da mensagem
cristã? [11]
Em
seu livro, Ética da Vida, Boff faz afirmações semelhantes, mas de uma forma
mais generalizada, aplicando o que havia dito sobre o Catolicismo ao Cristianismo
como um todo. Ele argumenta que, “renunciando à sua pretensão de deter o
monopólio da verdade religiosa”, o Cristianismo pode dialogar com “outras
tradições religiosas”, o que servirá para “perseverar o que há de mais sagrado
nos seres humanos, isto é, seu sonho para cima, sua transcendência, sua
abertura para Deus.” Esse diálogo é fundamental porque “cada cosmologia, como
produz uma imagem do ser humano, produz também uma imagem de Deus”, [12] o que,
em última análise, compreende a resposta para o homem pós-moderno, aquele que
“procura uma cultura espiritual na qual o ser humano em sua subjetividade e
gratuidade ocupe um lugar mais central.” [13]
E
quanto a Deus? DEle “não se pode dizer nada, porque todos os nossos conceitos e
palavras vêm depois e derivam do universo. E queremos falar Daquele que é antes
do universo. Como?” [14] Em outro artigo, o tema é ampliado: o escritor afirma
que o Ser Supremo “não pode ser tão transcendente, pois se assim fosse, como
saberíamos Dele? […] Anunciar um Deus sem o mundo [i.e., sem ter qualquer
relacionamento com o mundo criado] faz, fatalmente, nascer um mundo sem Deus”;
por outro lado, a imanência absoluta é descartada. “[…] Se Deus existe como as
coisas [do mundo físico] existem, então Deus não existe. Ele é o suporte do
mundo, não porção dele.” Resta então conceber a realidade de Deus como
transparência, a qual “afirma que a transcendência se dá dentro da imanência,
sem perder-se dentro dela […]”. Em síntese, Deus continua “uma realidade
concreta, mas sempre para além de qualquer concreção.”[15]
Em
meio à uma releitura do Cristianismo, sob lentes místicas, que se apropria de
elementos de outras religiões, Boff cita o trecho de uma conversa que teve com
o Dalai Lama, para dizer que a religião verdadeira é a que nos faz melhores, a
“que nos faz compassivos, abertos, sensíveis e expostos à vulnerabilidade de
todas as coisas. A que nos faz mais descentrados do nosso eu.” [16]Com isso, se
conclui que alguém não precise ser particularmente um cristão a fim de atingir
a espiritualidade “onienglobante” [17]defendida por Boff.
NOVA EMBALAGEM, MESMA ESSÊNCIA
A proposta de Boff nos leva a questionar o quão
cristão seria um Cristianismo que abrisse mão de seu exclusivismo, sendo que
mesmo Jesus era um exclusivista – Ele declarou ser a “Verdade”, o Único meio de
acesso a Deus (Jo. 14:6) e que a Vida Eterna seria alcançada somente por quem
se relacionasse com o Deus Verdadeiro e Ele, Seu representante (Jo. 17:3). Além
disso, Jesus identificou a Bíblia como a própria Verdade revelada (Jo. 17:17).
Por toda a Bíblia, profetas, apóstolos e mesmo Jesus lutaram para estabelecer
limites bem definidos para a Verdade, em oposição declarada às religiões pagãs,
ao sincretismo religioso e a heresias dentro da fé. Seria impossível, desta
forma, conciliar Cristianismo e Pós-Modernismo, porque a fé cristã reivindica
possuir uma Verdade absoluta, revelada por Deus e aplicável ao qualquer ser
humano em qualquer época.[18]
De que outra maneira responderíamos ao dilema
levantado por Boff – ou o diálogo com a cultura ou o isolamento? Sem dúvida, os
cristãos não podem se isolar. Entretanto, o diálogo não deve significar perda
de identidade e consequente abandono da missão (Mt. 28:19-20). Lembremo-nos de
que, ao enviar Seus discípulos ao mundo, Jesus sabia de potenciais conflitos
religiosos que eles enfrentariam; mas não bastava a pregação a pessoas
não-realizadas com suas crenças culturais – todos deveriam ouvir e ser
persuadidos, e os que aceitassem se converteriam da autoridade de Satanás para
o senhorio do Deus Único (At. 26:29). Jesus, afinal, não é Senhor dos cristãos;
Ele é o “Senhor de todos” (At. 10:36).
Assim, as estratégias podem se adaptar ao momento,
nunca a mensagem. “[…] Relacionamentos, amizade, amor e cuidado pelo semelhante
são muitíssimo importantes para todo discípulo de Cristo, mas não são tudo o
que representa o cristianismo”, escreve Aleksandar Santrac. “[…] Se utilizarmos
linguagem pós-moderna ou vocabulário não ameaçador, nunca devemos fazer isso a
expensas da verdade como revelada na Palavra de Deus.” Santrac continua
lembrando que evangelismo da amizade não substitui o evangelismo doutrinário,
porque Jesus praticou ambos.[19] Semelhante a algumas marcas que, ao renovar
determinado produto, inovam apenas na embalagem, o Cristianismo do século XXI
precisa de nova embalagem para o mesmo conteúdo – a Verdade de Deus, ainda necessária
no mundo pós-moderno.
[1] Para um resumo do desenvolvimento do
Pós-Modernismo e suas consequências sobre a espiritualidade contemporânea, ver:
(a) Douglas Reis, Paixão Cega: o herói que precisou perder a visão para
enxergar (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), especialmente
as pp. 8-20; (b) idem, O que há de errado com a máquina do mundo (e
porque o mundo passou a ser visto como uma máquina)?, primeiro
capítulo de Marcados pelo futuro: vivendo na expectativa do retorno de
nosso Senhor (Niteroi, RJ: Editora ADOS, no prelo).
[2] Leonardo Boff, Ética da Vida: a nova
centralidade (Rio de Janeiro, RJ: Editora Record ltda, 2009).
[3] Apolinário Ternes, “A igreja é
autoritária, se recusa a ouvir o seu povo”, entrevista com Leonardo
Boff, A Notícia, 29 de Setembro de 1997, p.G3.
[4]Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, O
dualismo natureza graça e a influência do humanismo secular no pensamento
social cristão, em Cláudio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Maurício José Silva Cunha (org.), Cosmovisão cristã e
transformação: espiritualidade, razão e ordem social (Viçosa, MG:
Ultimato, 2006), pp. 144, 151. Para uma análise mais completa da TL, ver Amin,
R. Rodor, The impact of Liberation Theologies on the church,
Kerigma, Ano 4 - Número 2, 2º. Semestre de 2008, pp.42-75, disponível em
http://www.kerygma.unasp-ec.edu.br/artigo8.03.asp .
[5]Márcia Feijó, Metáforas de Leonardo Boff,
Diário Catarinense, 27 de Agosto de 1997, Variedades, p.5, box Opiniões de um
cidadão engajado.
[6]Apolinário Ternes, Op. cit., p. G2.
[7]Idem, G3, G2.
[8]Márcia Feijó, Op. cit, p. 4.
[9]Ernesto Bernardes, Teologia da colisão,
entrevista com Leonardo Boff, Veja, 16 de Agosto de 1995, p.8.
[10]Apolinário Ternes, Op. cit., p. G2.
[11]Vale lembrar que, para a Igreja Católica, a
Verdade religiosa se relaciona com, pelo menos, três elementos: as escrituras,
a Tradição, e a autoridade do Papa. Indiferente disso, Boff parece criticar não
apenas a pretensão católica à verdade, mas à própria definição cristã de verdade,
como ficará claro a seguir.
[12]Leonardo Boff, Op. cit, pp. 113,
81.
[13]Apolinário Ternes, Op. cit., p. G3.
[14]Leonardo Boff, Op. cit., p. 95.
[15]Leonardo Boff, Transcendência e
transparência, A Notícia, 15 de Dezembro de 2007, p. A2.
[16]Apolinário Ternes, idem.
[17]Leonardo Boff, Ética da Vida, p.
83.
[18]Para uma análise crítica mais ampla, ver
Douglas Reis, A verdade ou a vida, capítulo quinto de Marcados
pelo futuro: vivendo na expectativa do retorno de nosso Senhor(Niteroi, RJ:
Editora ADOS, no prelo).
[19]Aleksandar S. Santrac, Evangelismo além
da amizade, Ministério, ano 79, no 2, Março/Abril de 2008, p.23.