A
crítica de cinema Isabela Boscov, ao tratar do filme Z – a cidade proibida, reagiu contra a caracterização de sua
personagem principal. O explorador Percy Fawcett, que, na vida real, procurou
pela lendária El Dorado, estaria retratado na trama muito diferente da pessoa
que realmente foi. Nas palavras de Boscov: “É uma representação politicamente
correta do personagem real, agudamente preocupada com os ditames do que hoje se
considera ser de bom tom.”
Se
isso é um fator de frustração em um filme, imagine quando a personagem
histórica é Jesus, alguém cuja importância e papel na construção do Ocidente
transcende não só a figura de Fawcett, como a de qualquer outra personalidade.
No dizer do historiador George Knight, o Jesus dos cristãos contemporâneos
aparece como um cavalheiro do século XXI, em uma tentativa politicamente
correta de reconstruí-lo à imagem e semelhança da cultura pós-moderna.
Há
muito o fundador do cristianismo é tratado como um símbolo vazio (tomando a
expressão de Schaffer), encarnando os valores de cada época. Atualmente, Ele é
associado às minorias, como seu defensor, uma espécie de Robin Hood ou Che
Guevara da Palestina. Jesus é associado à aceitação irrestrita, alguém incapaz
de fazer julgamentos, sensível e totalmente aberto a outros.
Como
na fábula dos cegos que tateiam o elefante, é fácil que a miopia de perspectivas
culturalmente condicionadas enxerguem somente os traços da personalidade de Cristo
que lhe sejam convenientes. Todavia, uma representação apropriada de quem Jesus
foi de fato não pode negligenciar a principal fonte de testemunhos oculares
sobre ele: os evangelhos.
Uma
simples análise do Jesus retratado nos evangelhos mostra o quão firme Ele era
em suas convicções, a ponto de não se preocupar em perder simpatizantes em nome
de uma mensagem impopular (Mt 15:12-14; Lc 4:24-30; 8:19-21; 18:22-29; Jo 6:60-64).
Jesus podia sentir ira, verdadeira indignação diante de injustiças (Mc 3:5,
onde ocorre a palavra ὀργῆς,
geralmente usada para se referir à ira de Deus, em contexto de julgamento; cf.:
Rm 2:5; 9:22; 1 Ts 1:10; Ap 6:16-17; 14:10; 16:19; 19:15). Jesus não se omitia
diante de injustiças, não tolerava o erro ou aceitava visões religiosas que
induzissem à uma concepção incorreta sobre Deus (Mt 15:3-9; Jo 2:13-17; 3:10). Ele
pronunciou julgamentos severos (Mt 12:21-24, 36-37, 40-42; 23:34-36). É comum que
Jesus usasse linguagem forte para denunciar a hipocrisia religiosa de seus dias
(Mt 12:33-35, 39; 23:13-27; Jo 8:38-44).
Definitivamente,
a personalidade de Jesus possuía traços controversos. Ele conseguia viver de
forma autêntica, mas sem aquela autenticidade autoproclamada de quem deseja
apenas chocar as pessoas. Ele agia com um senso de justiça que desafiava
convenções sociais. Não temia levantar a voz contra o erro, embora isso o
tornasse impopular em alguns ciclos. Era firme e proferia discursos enérgicos,
exigentes – os séculos de distância e as mudanças culturais obliteram muito da
ironia, sagacidade e provocação das parábolas de Jesus. Além disso, a
familiaridade com o texto bíblico impede mesmo a muitos cristãos atuais de
perceberem a condenação e exclusivismo próprios do Mestre em mensagens como a
que se acha em João 14:6.
Nenhum
desses traços enfraquece a bondade de Jesus, mas a complementam, impedindo que
sua mensagem de amor seja alvo de uma releitura que o transforme em uma espécie
de hippie ou pregador ingênuo. Nele
aparece um tipo de amor sem conivência, uma misericórdia que funciona em
conexão com o julgamento, nunca à parte ou contra ele. Jesus não era
politicamente correto. Isso não o torna um sujeito boçal, mal-humorado ou um
político da ultra-direita. Avaliado com justiça, Ele não pode ser usado
apropriadamente como símbolo de nenhuma ideologia atual – e, me arrisco a
dizer, em muitas situações, pouca compatibilidade há entre Jesus e a postura de
muitos de seus professos seguidores, moldados mais pela cultura consumista e
entretenimento midiático do que pelo seu suposto compromisso religioso. O Jesus
bíblico representa um lado: o lado dele, o lado da verdade (Jo 8:32, 36). Como é
mais fácil trazê-lo violentamente para o nosso lado do que nos submeter pacificamente ao lado dele!…
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