Em João 8:31-47, Jesus
enfrentou resistência de um grupo que, embora o texto parecesse sugerir a
princípio tratar-se de pessoas dispostas a seguirem o discipulado, prontamente
rejeitou Sua mensagem. Na sociedade contemporânea, a pós-modernidade representa
um desafio à pretensão do cristianismo de ser portador de uma mensagem
verdadeira – a única mensagem verdadeira. Embora o zeitgeist pós-moderno suscite inúmeras questões que não podem ser
adequadamente tratadas aqui, essa seção considera como a passagem se relaciona
a 2 facetas da pós-modernidade: (1) o entendimento perspectivista da
epistemologia pós-moderna; (2) a proposta pós-fundacionalista.
O dicionário Oxford
elegeu como palavra do ano de 2016 o termo post-truth
(KEYES,
2004),
que ganhou relevância na polarização entre os partidos republicano e democrata,
durante as eleições presidenciais norte-americanas (“Word of the Year 2016
is...”, 2016). O próprio dicionário define post-truth
como “relativo a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são
menos influentes em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e à crença
pessoal” (STEVENSON, 2010). Assim, a verdade se torna um construto social, uma
questão de perspectiva. O perspectivismo admite que não existe um entendimento
único e imparcial da verdade.
Tal conceito ultrapassa
os limites da política, abarcando cultura, religião, sociedade ou qualquer área
da vida. Copan (2009,
p. 11–12) cita uma pesquisa do instituto
Barna Group realizada em 2002, segundo a qual 83% dos adolescentes americanos
dizem que a moral depende das circunstâncias e 75% dos adultos (18 a 35 anos de
idade) abraçam o relativismo moral. O relativismo pode ser definido como a
doutrina “que considera todo conhecimento relativo como dependente de fatores
contextuais, e que varia de acordo com as circunstâncias, sendo impossível
estabelecer-se um conhecimento absoluto e uma certeza definitiva.” (ABBAGNANO,
2012, p. 994–995) O ethos pós-moderno admite uma hermenêutica peculiar, a qual parte do
princípio de que toda compreensão vem de pré-compreensão e pré-julgamentos que
são insuperáveis (ANZENBACHER,
2009, p. 187).
Entretanto, embora essa
perspectiva seja correntemente aceita, ela destoa da mensagem que encontramos
nos evangelhos. Especialmente no evangelho de João, a verdade é apresentada
como acessível ao ser humano. Se existe recusa à verdade, isso se deve antes a
uma questão de escolha individual do que à qualquer incapacidade humana
inerente de atingir a Verdade (ENGEL;
RORTY, 2008, p. 43).
Obviamente, a Bíblia
não ensina que somos capazes de assimilar toda a verdade exaustivamente. O
conhecimento que encontramos na revelação divina, por mais que seja verdadeiro
e infalível em tudo que apresenta, não constitui a verdade em sua totalidade,
no sentido de não tratar de todas as coisas que se pode conhecer (afinal, esse
jamais constituiu o propósito divino). A verdade bíblica é consubstancial, ou
seja, suficiente para nós conhecermos a Deus (Jo 1:18; 14:6; Hb 1:1-2),
sabermos de Sua existência e atuação, reconhecermos a autenticidade do
testemunho bíblico (Rm 1:19; 8:16) e crer que os ensinos ali contidos são
verdadeiros em todos os aspectos (Jo 20:30-31), sendo pertinentes à experiência
cristã, marcada por uma perspectiva transformada e fruto de uma cosmovisão
completa e fundamentada nas promessas de Deus.
Dessa forma, a certeza
presente de conhecer a verdade divina, ainda que limitados pelas debilidades
humanas, não esgota a possibilidade de prosseguir em conhecimento (Os 6:3), uma
vez que, nesse lado da eternidade, sempre seguiremos aprendendo; não obstante,
dentro da esperança cristã, chegará o momento no qual conhecermos toda a
verdade – mas isso se realizará somente quando tudo voltar a ser perfeito (1 Co
13:9-10, 12). Existe uma verdade
absoluta? Sim. Podemos conhecê-la em todos os aspectos? Não, por sermos falhos
em nosso conhecimento. Embora o conhecimento humano não seja absoluto, no sentido
de ser onisciente, é possível o conhecimento substancial, suficiente, não
exaustivo e salvífico da Verdade revelada por Deus (Dt 29:29). E isso mediante
a revelação feita por Deus, principalmente por meio de Jesus, a própria Verdade
(Jo 14:6; Jo 17:3, 17).
Quanto ao
pós-fundacionalismo, trata-se de uma postura filosófica surgida em reação às
críticas pós-modernas, as quais desabilitaram o fundacionalismo. No
fundacionalismo se acredita na existência de fundamentos fortes para nossos
sistemas de crença; tal premissa é veemente negada pela posição
anti-fundacionalista (ou pós-fundacionalista), que “destaca a crucial
importância epistêmica da comunidade, argumentando que cada comunidade e
contexto possui sua própria racionalidade e que cada uma e todas as atividades
sociais podem, de fato, funcionar como um caso de teste para a racionalidade
humana.” (HUYSSTEEN,
1997, p. 3) Para Jones (2011, p. 30), “uma
estrutura pós-fundacionalista preserva a habilidade de julgar entre as muitas
racionalidades que nos confrontam em um contexto pós-moderno, pela recusa de
abandonar os vários elementos dos quais os seres humanos se utilizam quando
fazem decisões entre paradigmas de entendimento concorrentes.” Para Grenz e Franke
(2001, p. 15), “teologia é formulada no contexto da comunidade de fé e busca
descrever a natureza da fé, o Deus a quem a fé é dirigida, e as implicações do
envolvimento da fé cristã com um contexto histórico-cultural específico, no
qual ela vive”; portanto, a comunidade da fé é vista pelo autor como motivo
integrador da teologia (GRENZ,
2000, p. 132), o local apropriado para a
reflexão teológica (GRENZ,
2006, p. 209).
Contudo, segundo Jesus
não é a comunidade da fé quem articula e atribui caráter de verdade ao evangelho,
numa escolha fideística. A Verdade origina a comunidade, jamais o contrário. É
a Palavra que faz alguém se tornar um discípulo (Jo 8:31), não os discípulos
que tornam a Palavra uma verdade meramente comunitária. Durante a última oração
registrada antes de Sua crucifixão, Jesus menciona a relação entre Verdade e
comunidade, quando diz: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, pois eles
não são do mundo, como eu também não sou. Não rogo que os tires do mundo, mas
que os protejas do Maligno. Eles não são do mundo, como eu também não sou.
Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (Jo 17:14-17). Na ocasião,
Jesus também indicou a trajetória para se lograr a unidade (Jo 17:11): sermos santificados na Verdade (v.19), o que
fará o mundo crer que Deus nos enviou (v.21). Desse modo, uma teologia a partir
do texto não cairá na tentação de contemporizar, mesmo que com o nobre objetivo
de se tornar relevante para os não-cristãos, uma vez que, ao abrir mão da
crença na Verdade para ser relevante a fará perder qualquer relevância. Apenas
unidos na Verdade conseguiremos impactar o mundo.
Bibliografia
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Edição: 6a. WMF Martins Fontes, 2012.
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Keyes, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in
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