sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A VERDADE NO MUNDO QUE A REJEITA


Em João 8:31-47, Jesus enfrentou resistência de um grupo que, embora o texto parecesse sugerir a princípio tratar-se de pessoas dispostas a seguirem o discipulado, prontamente rejeitou Sua mensagem. Na sociedade contemporânea, a pós-modernidade representa um desafio à pretensão do cristianismo de ser portador de uma mensagem verdadeira – a única mensagem verdadeira. Embora o zeitgeist pós-moderno suscite inúmeras questões que não podem ser adequadamente tratadas aqui, essa seção considera como a passagem se relaciona a 2 facetas da pós-modernidade: (1) o entendimento perspectivista da epistemologia pós-moderna; (2) a proposta pós-fundacionalista.
O dicionário Oxford elegeu como palavra do ano de 2016 o termo post-truth (KEYES, 2004), que ganhou relevância na polarização entre os partidos republicano e democrata, durante as eleições presidenciais norte-americanas (“Word of the Year 2016 is...”, 2016). O próprio dicionário define post-truth como “relativo a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (STEVENSON, 2010). Assim, a verdade se torna um construto social, uma questão de perspectiva. O perspectivismo admite que não existe um entendimento único e imparcial da verdade.
Tal conceito ultrapassa os limites da política, abarcando cultura, religião, sociedade ou qualquer área da vida. Copan (2009, p. 11–12) cita uma pesquisa do instituto Barna Group realizada em 2002, segundo a qual 83% dos adolescentes americanos dizem que a moral depende das circunstâncias e 75% dos adultos (18 a 35 anos de idade) abraçam o relativismo moral. O relativismo pode ser definido como a doutrina “que considera todo conhecimento relativo como dependente de fatores contextuais, e que varia de acordo com as circunstâncias, sendo impossível estabelecer-se um conhecimento absoluto e uma certeza definitiva.” (ABBAGNANO, 2012, p. 994–995) O ethos pós-moderno admite uma hermenêutica peculiar, a qual parte do princípio de que toda compreensão vem de pré-compreensão e pré-julgamentos que são insuperáveis (ANZENBACHER, 2009, p. 187).
Entretanto, embora essa perspectiva seja correntemente aceita, ela destoa da mensagem que encontramos nos evangelhos. Especialmente no evangelho de João, a verdade é apresentada como acessível ao ser humano. Se existe recusa à verdade, isso se deve antes a uma questão de escolha individual do que à qualquer incapacidade humana inerente de atingir a Verdade (ENGEL; RORTY, 2008, p. 43).
Obviamente, a Bíblia não ensina que somos capazes de assimilar toda a verdade exaustivamente. O conhecimento que encontramos na revelação divina, por mais que seja verdadeiro e infalível em tudo que apresenta, não constitui a verdade em sua totalidade, no sentido de não tratar de todas as coisas que se pode conhecer (afinal, esse jamais constituiu o propósito divino). A verdade bíblica é consubstancial, ou seja, suficiente para nós conhecermos a Deus (Jo 1:18; 14:6; Hb 1:1-2), sabermos de Sua existência e atuação, reconhecermos a autenticidade do testemunho bíblico (Rm 1:19; 8:16) e crer que os ensinos ali contidos são verdadeiros em todos os aspectos (Jo 20:30-31), sendo pertinentes à experiência cristã, marcada por uma perspectiva transformada e fruto de uma cosmovisão completa e fundamentada nas promessas de Deus.
Dessa forma, a certeza presente de conhecer a verdade divina, ainda que limitados pelas debilidades humanas, não esgota a possibilidade de prosseguir em conhecimento (Os 6:3), uma vez que, nesse lado da eternidade, sempre seguiremos aprendendo; não obstante, dentro da esperança cristã, chegará o momento no qual conhecermos toda a verdade – mas isso se realizará somente quando tudo voltar a ser perfeito (1 Co 13:9-10, 12).  Existe uma verdade absoluta? Sim. Podemos conhecê-la em todos os aspectos? Não, por sermos falhos em nosso conhecimento. Embora o conhecimento humano não seja absoluto, no sentido de ser onisciente, é possível o conhecimento substancial, suficiente, não exaustivo e salvífico da Verdade revelada por Deus (Dt 29:29). E isso mediante a revelação feita por Deus, principalmente por meio de Jesus, a própria Verdade (Jo 14:6; Jo 17:3, 17).
Quanto ao pós-fundacionalismo, trata-se de uma postura filosófica surgida em reação às críticas pós-modernas, as quais desabilitaram o fundacionalismo. No fundacionalismo se acredita na existência de fundamentos fortes para nossos sistemas de crença; tal premissa é veemente negada pela posição anti-fundacionalista (ou pós-fundacionalista), que “destaca a crucial importância epistêmica da comunidade, argumentando que cada comunidade e contexto possui sua própria racionalidade e que cada uma e todas as atividades sociais podem, de fato, funcionar como um caso de teste para a racionalidade humana.” (HUYSSTEEN, 1997, p. 3) Para Jones (2011, p. 30), “uma estrutura pós-fundacionalista preserva a habilidade de julgar entre as muitas racionalidades que nos confrontam em um contexto pós-moderno, pela recusa de abandonar os vários elementos dos quais os seres humanos se utilizam quando fazem decisões entre paradigmas de entendimento concorrentes.” Para Grenz e Franke (2001, p. 15), “teologia é formulada no contexto da comunidade de fé e busca descrever a natureza da fé, o Deus a quem a fé é dirigida, e as implicações do envolvimento da fé cristã com um contexto histórico-cultural específico, no qual ela vive”; portanto, a comunidade da fé é vista pelo autor como motivo integrador da teologia (GRENZ, 2000, p. 132), o local apropriado para a reflexão teológica (GRENZ, 2006, p. 209).
Contudo, segundo Jesus não é a comunidade da fé quem articula e atribui caráter de verdade ao evangelho, numa escolha fideística. A Verdade origina a comunidade, jamais o contrário. É a Palavra que faz alguém se tornar um discípulo (Jo 8:31), não os discípulos que tornam a Palavra uma verdade meramente comunitária. Durante a última oração registrada antes de Sua crucifixão, Jesus menciona a relação entre Verdade e comunidade, quando diz: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, pois eles não são do mundo, como eu também não sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno. Eles não são do mundo, como eu também não sou. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (Jo 17:14-17). Na ocasião, Jesus também indicou a trajetória para se lograr a unidade (Jo 17:11):  sermos santificados na Verdade (v.19), o que fará o mundo crer que Deus nos enviou (v.21). Desse modo, uma teologia a partir do texto não cairá na tentação de contemporizar, mesmo que com o nobre objetivo de se tornar relevante para os não-cristãos, uma vez que, ao abrir mão da crença na Verdade para ser relevante a fará perder qualquer relevância. Apenas unidos na Verdade conseguiremos impactar o mundo.

Bibliografia

Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição: 6a. WMF Martins Fontes, 2012.
Anzenbacher, Arno. Introdução À Filosofia Ocidental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
Copan, Paul. True for You, But Not for Me: Overcoming Objections to Christian Faith. Revised ed. edition. Minneapolis, Minn: Bethany House Publishers, 2009.
Engel, Pascal, and Richard Rorty. Para que serve a Verdade? Unesp, 2008.
Grenz, Stanley J. “Articulating the Christian Belief-Mosaic: Theological Method after the Demisse of Foundationalism.” In Evangelical Future: A Conversation on Theological Method, 107–136. Grand Rapids, MI; Leiceister, UK; Vancouver, CA: Baker Books; InterVarsity Press; Regent College Publishing, 2000.
———. Renewing the Center: Evangelical Theology in a Post-Theological Era. 2nd ed. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2006.
Huyssteen, J. Wentzel. Essays in Postfoudationalist Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1997.
Keyes, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. 1st edition. New York: St. Martin’s Press, 2004.



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