quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Como viver biblicamente de verdade?



Certa vez, o romancista e ensaísta italiano Umberto Eco deu um palpite curioso: "Arrisco dizer que o pensamento do fim dos tempos é, hoje, mais típico do mundo laico do que do mundo cristão." Ele continua dizendo que, embora os cristãos meditem sobre o tema do fim, são os não-religiosos que são "obcecados por ele".
[1] Realmente temos acompanhado o interesse da mídia por assuntos religiosos, nem todos, necessariamente, relacionados com o fim dos tempos de forma direta. Contudo, o prisma religioso é evocado com freqüência para explicar assuntos contemporâneos.

Desde o atentado contra as torres gêmeas, o Ocidente avalia o fundamentalismo, não se restringindo à sua face islâmica – até o fundamentalismo cristão, mormente, se tornou alvo de críticas. Isso, em parte, porque essa “categoria” de cristãos, ditos "fundamentalistas", têm uma grande participação política no cenário americano, envolvendo-se em campanhas sociais contra o aborto, o desenvolvimento de pesquisas com células-tronco, em prol da moralidade, etc. O fundamentalismo, enquanto estilo de vida, passou a ser questionado, como algo retrógrado, saído dos confins da Idade Média – e, portanto, incompatível com a Modernidade.

Na esteira dessa corrente anti-fundamentalismo (seja ele qual for), o jornalista americano A. J. Jacobs acaba de lançar nos USA o livro "The Year of Living Biblically" ("O ano em que vivi biblicamente"). Jacobs descreve no volume a sua experiência ao passar um ano completo tentando seguir à risca as regras bíblicas, que, segundo o próprio autor, chegam a 700.

O livro de Jacobs foi tema de uma reportagem da Superinteressante do mês de Novembro.
[2]Como não poderia deixar de ser, a matéria segue o fundamentalismo às avessas da Super, criticando, ora velada, ora abertamente, tudo o que se relacione com Bília. Desavisada ou propositadamente, o jornalista da Super faz uma caricatura do Cristianismo, em sua busca inútil por entender e seguir a Bíblia; a matéria, em si, apenas reproduz ou comenta as conclusões de Jacobs, sem oferecer, em qualquer momento uma segunda opinião sobre o assunto, agindo, assim, de forma tendenciosa.

Logo no começo da reportagem, lemos a respeito da entrevista de Jesus com Nicodemos. Numa aula de desconhecimento de interpretação bíblica, o articulista afirma que, quando Jesus disse a Nicodemos que era necessário que ele nascesse novamente, o rabino não teria entendido a mensagem; daí sua confusão quanto à possibilidade de alguém velho como ele voltar ao ventre materno. Num arremate de duvidosa lógica, a reportagem prossegue: "Se até os contemporâneos de Jesus tinham problemas com tantas parábolas, metáforas e alegorias, imagine o que não ocorre às pessoas do século 21, desacostumadas ao estilo empolado em que os livros da Bíblia foram escritos, milhares de anos atrás."

Em primeiro lugar, Nicodemos estava acostumado àquela linguagem, uma vez que os judeus se referiam aos recém-convertidos ao judaísmo como "crianças". Nicodemos não deixou de entender a mensagem de Jesus; apenas se recusou a aceitá-la. Chamar um pagão convertido de bebê era uma coisa diferente de afirmar que um respeitado mestre de Israel precisaria nascer novamente!
[3] Nestas circunstâncias, Nicodemos reagiu de forma sutilmente irônica – e a sutileza foi tamanha que confundiu o jornalista da Super.

Não estou bem certo do que, afinal, quer dizer a expressão “estilo empolado da Bíblia”, uma vez que, em Israel, a retórica não consistia em rebuscamento de linguagem, mas em clareza de pensamento. Se o problema colocado se refere à linguagem antiquada que muitas versões bíblicas utilizam (como a Almeida Antiga, em Língua Portuguesa), a consulta a traduções mais recentes, ou a paráfrases bíblicas será capaz de suprir esta necessidade. Contudo, penso não ser este o caso.

Entendo que o texto da Super esteja levantando uma impossibilidade: interpretar corretamente a Bíblia. O próprio Jacobs tem seus percalços na tentativa de cumprir as regras bíblicas: ele comeu gafanhotos, apedrejou adúlteros (com pedregulhos, por brincadeira), reprimiu a luxúria (concentrando o pensamento em sua mãe), escravizou seu secretário (não o remunerando em seu estágio), entre outras peripécias. Isto além de deixar a barba crescer durante um ano!

O ponto que Jacobs não considera é: devemos, de fato, dar a mesma atenção a todas os preceitos bíblicos? A Super se antecipa em dizer que sim, uniformizando as leis bíblicas, como se todas servissem a um mesmo propósito, demonstrando lamentável desconhecimento da História e Legislação vétero-testamentária.

A conclusão apresentada pela revista foi a de que “se os judeus aceitam como metáfora uma ordem divina e os cristãos ignoram muito do Velho Testamento – a vinda de Cristo teria anulado a necessidade de circuncisão, entre outras coisas –, quem segue a Bíblia ao pé da letra, de cabo a rabo? ‘Ninguém’, conclui Jacobs, ‘Nem os fundamentalistas’. Quem se propõe a fazer uma leitura literal da Bíblia acaba sempre escolhendo o que vai obedecer.”

O que está sendo olvidado é o fato de que, ao interpretar a Bíblia, temos que nos perguntar se estamos diante de uma Lei universal ou de uma norma aplicável a determinado tempo e lugar. Mesmo as normas encerram preceitos universais, de maneira que, embora as próprias normas caduquem, os preceitos continuam válidos.

Para exemplificar o que afirmamos: o tratamento dado ao escravo, citado na matéria, mostra como Deus se lembrou de exigir de Israel justiça para com as classes mais baixas. A evolução natural do relacionamento entre o povo e Jeová traria revoluções na estrutura social. Embora, certamente, Deus não instituíra a escravatura, Ele sancionou justiça no trato dos senhores com seus escravos, e o princípio por de trás dessas normas evoluiriam a ponto de abolir o próprio sistema de escravidão.

Para evitar confusões, como as cometidas pelo jornalista americano, é necessário que se tenha critérios. A ciência que se encarrega do estudo das regras de interpretação é a Hermenêutica. Apesar da complexidade do assunto, podemos simplicá-lo dizendo que algumas coisas são levadas em conta pela Hermenêutica: a época em que o livro foi escrito, seu provável autor, os objetivos explícitos por quem escreveu, os assuntos tratados dentro do próprio livro e a relação de um determinado livro bíblico ou de uma passagem com outros livros ou passagens bíblicos que tratem daquele mesmo assunto.

Sobre os critérios para interpretar corretamente a Bíblia, o mesmo Umberto Eco afirma que “Agostinho, em De Doctrina Christiana dizia que uma interpretação, caso pareça plausível em determinado ponto de um texto só poderá ser aceita se for reconfirmada – ou pelo menos se não for questionada – em outro ponto do mesmo texto. É isso que entendo por intentio operis [intenção do texto].”
[4]

Para quem quiser compreender a perspectiva bíblica sobre as leis é necessário ler a Bíblia de forma isenta de conclusões a priori. Embora o homem moderno sinta ojeriza diante da menos audível menção da palavra “Lei”, Deus tem um propósito com a sua lei: lei tem que ver com a vida prática, em todos os seus aspectos, razão pela qual há tantas leis na Bíblia[5] – Deus quer nosso ser inteiro, não para nos escravizar! Deus revelou suas leis para nos conduzir dentro de uma relação pessoal com ele, relação na qual o homem pode, finalmente, encontrar o propósito de sua existência.

“Porquanto, tudo que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para que, pela constância e pela consolação provenientes das Escrituras, tenhamos esperança.” Romanos 15:4

[1] Umberto Eco e Carlo Maria Martini, “Em que crêem os que não crêem?” (Rio de Janeiro, RJ: Record, 2002), 6ª Ed, p. 15.
[2] Marcos Nogueira, “A Bíblia como ela é”, em Revista Superinteressante, Ed. 245, Novembro de 2007, pp. 96-99.
[3] Ellen White, “O Desejado de todas as Nações”, p. 171.
[4] Umberto Eco, “Os limites da Interpretação” (São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 1999), 1ª ed., p. 3. Cf.: “ Como provar uma conjectura sobre a intentio operis? A única forma é checá-la com o texto enquanto um todo coerente. Essa idéia também é antiga e vem de Agostinho (De Doctrina Christiana): qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser. Neste sentido, a coerência interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis.” Umberto Eco, “Interpretação e Superinterpretação” (São Paulo, SP: Martins fontes, 1997), p. 76.
[5] Walther Eichrodt, “Teologia do Antigo testamento” (São Paulo, SP: Hagnos, 2004), p. 76.