quarta-feira, 24 de junho de 2015

LOUVOR MIDIÁTICO


O sucesso de programas como American Idol e The Voice, revivendo os antigos shows de calouros, é um fenômeno mundial. Interpretações efusivas (para não dizer histriônicas) de músicas consagradas ganham as mídias sociais, espalhadas pelo Youtube, Facebook e Twitter. Quando se pensa no gênero pop, adotado pelos reality shows musicais, sem se restringir a eles, estamos diante de um padrão altamente disseminado nos canais convencionais, como programas de TV e FMs, e mesmo aplicativos de streaming, tais como o iTunes ou Google Play. Nós nos deparamos com a música pop em cada filme, série e clipe. Seu poder de atração não pode ser questionado ou subestimado.
Consumir essa música altamente estimulante e com viés sensual como forma de entretenimento representa vários riscos para os cristãos. Primeiro, o risco de assimilar pensamentos, conceitos e estilo de vida claramente mundano, diferente daquele ensinado pela Palavra de Deus. Segundo, adquirir um gosto por esse padrão de música, o que levaria a uma forma específica de rejeitar o estilo de vida cristão: a rejeição da música cristã. Compensa pensar sobre as consequências desse último aspecto.
Quando a música secular se torna o padrão para o cristão, dificilmente ele sentiria prazer em cantar os hinos cristãos tradicionais, seja em sua devoção particular ou mesmo no culto público na igreja. Simplesmente, os hinos soarão como cantigas inocentes, ou algo absurdamente antigo. E talvez poucas coisas aborreçam tanto algumas pessoas como algo desatualizado. Será preferível trocar as antigas canções dos hinários cristãos por música contemporânea, de viés cristão. Mesmo que você não seja um sociólogo da religião, será capaz de notar como a música pop cristã nem choca mais os adoradores contemporâneos: no caso particular dos adventistas, em pouco mais de duas décadas, eles se acostumaram com o novo paradigma.
Em nossos congressos, cultos especiais e mesmo nas reuniões regulares, a música cristã contemporânea, antes empregada sob a alegação de atrair e agradar aos jovens, já atingiu alcance congregacional, abarcando indivíduos das mais diversas gerações. Seu alcance, aceitação e a facilidade como dissemina ideias cristãs (ainda que de forma genérica, na maior parte dos casos) são as justificativas mais comuns dos defensores desse gênero de música.
Entretanto, seria, no mínimo, fato suficiente para nos causar mal-estar saber que há poucas décadas os adventistas se indignavam (acho que o termo descreve bem a reação) com as demais denominações por usar música popular na adoração. Evocava-se o fato para ressaltar que o mundanismo entrara nas igrejas evangélicas, enquanto ainda mantínhamos princípios bíblicos aplicados a música. Hoje, o quadro sutilmente se alterou: não ousamos mais demonstrar indignação. Há uma reciprocidade suspeita entre a forma como recebem nossos músicos e como recebemos cantores de outras denominações. Talvez não haja mais linhas divisórios tão profundas que identifiquem o que há décadas se chamava música adventista.
Precisamos de música nova, que exemplifique nossa doutrina, que criativamente explore aquilo que cremos. Não creio que a criatividade oriunda do Espírito Santo haja se esgotado, após profusamente abençoar autores de hinos de séculos e décadas anteriores. O problema está em nivelar a contribuição necessária para este tempo por padrão de música secular. Fazendo assim, transmitiríamos nossa mensagem na letra, todavia não na forma, associada a valores não cristãos, como satisfação própria, êxtase sensual e violência.

Se a música pop, surgida com a diluição e massificação do estilo rock’n’roll, nasceu em meio a revoluções de valores, liberdade sexual e expressão de uma juventude que queria mais liberdade, é impossível fazer uma avaliação positiva de seus constituintes desde uma perspectiva cristã. Música pop é o coração do homem contemporâneo colocado em notas musicais – e não precisa conhecer tão profundamente a Bíblia para saber qual a avaliação feita pelo Senhor acerca de nosso coração natural (Jr 17:9). Se veicularmos a essa estética a nossa mensagem, corremos o risco de distorcemos o que Deus tem a dizer a toda uma geração.

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quinta-feira, 11 de junho de 2015

ADVENTISTAS E A PARÁBOLA DA LARANJA


O subcomitê preparou o I Fórum de discussão sobre a carência de vitamina C no município de Andorinhas. O salão paroquial da cidade abrigou o evento, que foi divulgado pobremente no único jornal de toda a região. Pobremente porque a situação emergencial requeria uma medida extrema, rápida, sem tempo para maiores planejamentos. E o prefeito Juca recebeu exaustivas advertências da Secretaria de Saúde Pública de Andorinhas.
Juca não fazia o tipo preocupado com nenhuma questão envolvendo saúde (quer pública ou mesmo particular, dado o número de cartelas de cigarro consumidos diariamente por ele), ou algo tão ínfimo quanto a carência de qualquer vitamina que fosse. Entretanto, se chegara ao cargo máximo de administrador público do município, isso se devia a seu faro para potencializar problemas e oferecer soluções miraculosas. Às vésperas do último ano de um mandato pífio, far-lhe-ia bem à pretensão de sucessão resolver algo urgente.
 O fórum recebeu a atenção integral de seus assessores, incumbidos de alarmar a cidade com o novo problema. Apesar de notar a pobreza da divulgação, ao menos no número de veículos envolvidos, é preciso retificar e admitir o sucesso da propaganda, posto estar cheio o ambiente. Algum adivinho quiçá o tenha visto no globo de uma bola de cristal e tido tempo de comunicar os assessores municipais, o que explicaria as centenas de cadeiras de plástico locadas para garantir mais gente assentada ou detalhes como os ventiladores extras trazidos. Juca sorria como quem imaginasse não demorar muito a voltar para a cadeira no gabinete que ocupava.
Diante de milhares de eleitores, ou melhor, cidadãos de Andorinhas, Juca abriu o discurso na melhor tradição política – falou muito, não disse coisa com coisa, mas impressionou as pessoas. Seguiram-se vozes de especialistas, que mostraram os baixos índices de vitamina C prognosticada na média da população, os riscos disso e algumas possíveis medidas. Ao fim, o vereador João Lobo convidou à frente o empresário Klefetis Capitioso. Caso nos leia alguém que não logrou a sorte de ter em Andorinhas sua terra natal, é necessário apresentar um tipo conhecido por todos: o Sr. Capitioso, dono da maior – talvez seja necessário comentar, da única – fábrica de Andorinhas, responsável pela equilibrada economia da cidade. A Accommodatio, fábrica de refrigerantes bastante popular, empregava, ao todo, mesmo nesses nossos tempos de crise, 108 pessoas. Desse modo, a mera presença de Klefetis Capitioso em uma reunião como aquela gerava tensão e expectativa.
O sr. Klefetis parecia-se com um desses gurus da neurociência, falando de um modo calculado, com as devidas pausas e muitos olhares dirigidos diretamente ao pública. Juca sentia profundo alívio em se certificar que aquele homem de roupas modernas, cabelo curto e alinhado e que transpirava eficiência não tivesse qualquer ambição política. Afinal, todo poder que Klefetis queria, o poder dos revolucionários, dos idealizadores, dos grandes solucionadores, disso ele já gozava. Em poucos minutos, todos sabiam e aprovavam seu plano:
“Amigos, dizia na arrematadora conclusão, vamos usar, para combater esse problema da vida pós-moderna, uma abordagem mais arrojada, porque as novas gerações não querem mais saber de laranjas. Vocês sabem, se o consumo de laranjas aumentasse, toda essa epidemia jamais existiria”, disse olhando para baixo e deixando um curto e surdo suspiro ecoar, para retomar com novo ímpeto: “Mas o que precisamos agora é contextualizar a laranja para o consumidor atual, que não possui interesse em comer frutas. Uma nova embalagem, um novo sabor, propagandas em outdoors pelas cidade, no jornal, na rádio.” Olhava para cima, quase que vendo, ou fazendo a gente ver, o que dizia, “New Orange – é cítrico, é legal, é para você”. A reação foi imediata: palmas e vivas se seguiam, mães abraçando os filhos que não morreriam sem vitamina C, o prefeito sabendo que, se as pessoas estavam felizes, não haveriam razões para descontinuar sua administração; tudo parecia perfeito.
Os meses que se seguiram trouxeram a materialização do plano. A New Orange ganhou o mercado mais com aura de elixir milagroso do que mero produto comercial. Professoras faziam campanhas para que as crianças trouxessem o refrigerante-sensação da Accommodatio para o intervalo das aulas. Em diversos locais públicos, como biblioteca, museu, rodoviária e praças, instalaram-se máquinas com latinhas de New Orange. Dada a posição oficial que o novo produto ganhou, quase que tendo simultaneamente o status de lei e patrimônio público, poucos se atreviam a criticar a criação de Klefetis Capitioso. Mesmo para aqueles que, por alguma razão ou intuição pessoal, a New Orange não era a solução, impunha-se o silêncio, muitas vezes até auto imposto, porque ali estava, se pensava, um mal necessário ou, em um juízo mais positivo, a melhor solução possível. Mas as coisas mudaram com o tempo.
Primeiro, demorou alguns meses até que uma jovem médica, chamada Aleteia, começasse a perceber carência de vitamina C em muitos de seus pacientes, sobretudo os mais jovens. “Doutora, isso é impossível, eu tomo tanta New Orange que devia ter vitamina C acumulada até os netos!” Aleteia escutava coisas assim com tanta frequência que seu senso científico começou a fabricar perguntas. Aleteia resolver, discretamente, fazer algumas pesquisas. Os resultados a perturbaram: nenhuma evidência encontrada de que a New Orange suprisse a falta de vitamina C.  Aleteia refez os testes. E outra vez, e uma última. Sempre resultados consistentes com os da primeira pesquisa.
Ela e um amigo farmacêutico publicaram os resultados em uma revista acadêmica da região. Depois veio um artigo para um jornal de outra cidade. Finalmente, a notícia chegou voando (com perdão do infame trocadilho) em Andorinhas.  Era o caos: protestos na rua, manifestações em favor da New Orange com gente vestida com camisetas laranja (a cor), acusações de que produtores de laranja (a fruta) em outro munício estavam por trás da pesquisa ou que outra empresa de refrigerantes estava usando Aleteia como laranja (na gíria) para minar a New Orange. Não deu outra: a pobre médica se mudou. Aleteia temia pela vida em uma cidade em que não era bem vinda.
Depois dessas conturbações, a fama da New Orange se espalhou e ela passou a ser importada. Klefetis Capitioso sonhava em expandir seu produto por todo país. Ocorre que em um mundo globalizado os referenciais não são locais, mas globais. Não tardou para que pessoas mais esclarecidas começassem a acusar a Accommodatio de ter copiado refrigerantes de outros países. A New Orange era vista não mais como o produto revolucionário, apenas uma reprodução em terreno nacional do que havia lá fora. A partir daí, outras críticas se seguiram: quem bebe do refrigerante, não possui interesse pela fruta, que é a verdadeira portadora de vitamina C; a New Orange faz mal para os ossos e é prejudicial para os diabéticos; alguns dos produtos de sua fórmula são cancerígenos. Até a população de Andorinhas se alarmou escutando tantas coisas ruins sobre a New Orange. Quem não se alarmou foi Capitioso, porque sabia que poderia sustentar a fama de seu produto com silêncio diante das críticas e propaganda agressiva. Tampouco, Juca se alarmou: já estava no meio do seu segundo mandato.
  
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sexta-feira, 5 de junho de 2015

CRISTIANISMO NA TERRA DOS FANBOYS



A cultura Nerd vive de fóruns sobre pormenores. Ela disseca o objeto de admiração em muitos ângulos, em um exercício de multiplicação monotemática. A internet ampliou e estendeu essa característica nerd. Surge a figura do fanboy, uma espécie de Nerd xiita que defende com unhas e dentes seu ídolo, achando argumentos para todas as críticas contrárias. Ele vive de cultuar.
Hoje há fanboys se digladiando em todos os espaços da internet: aqueles que vivem do confronto Messi x Cristiano Ronaldo ou que se limitam a falar de super-heróis. Em praticamente todas as discussões, das mais tolas às pertinentes, há fanboys expressando opiniões tão cegas quanto apaixonadas, em um exemplo de unilateralidade que vai contra a racionalidade das discussões inteligentes, baseadas em argumentos factuais ou, ao menos, factíveis.
O cristianismo pop do século XXI, com seus artistas gospel, pastores-celebridades e escritores evangélicos de autoajuda é o melhor cenário para o surgimento de fanboys. Chega a ser tedioso ver discussões intermináveis sobre quem é o melhor tenor de quartetos de todos os tempos – a própria questão, além de inócua, é impossível de se analisar, ainda mais porque metade do povo que discute isso não conhece mais do que 10 grupos do gênero. A superficialidade parece outra característica do comportamento dos fanboys, mesmo dos cristãos.
Se a admiração extrema beira à idolatria, exaltar artistas cristãos se torna ainda mais perigoso, porque desvirtua o sentimento religioso. Cria-se um vínculo com o cantor ou pregador, como se a experiência religiosa devesse se concentrar em acompanhar seu ministério (ou carreira) e defendê-lo absolutamente.  
Escrevendo aos coríntios, Paulo combate essa mesma classe de sentimentos. “Meus irmãos, fui informado por alguns da casa de Cloe de que há divisões entre vocês. Com isso quero dizer que cada um de vocês afirma: ‘Eu sou de Paulo’; ‘eu de Apolo’; ‘eu de Pedro’; e ‘eu de Cristo’”. (1 Co 1:11-12, NVI). Ao invés de se beneficiar da ministração dos apóstolos, os coríntios compartimentalizaram sua atuação. Eles criaram preferências em torno das personalidades dos pregadores. E, uma vez feito isso, logo surgiram partidos em torno das preferências.
O escritor bíblico combate o sentimento, afirmando que a fé cristã não se baseava no talento de seus expositores, nem tampouco em seu carisma e habilidades pessoais. Usando uma diatribe cheia de ironia e severidade, Paulo indaga: “Acaso Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vocês? Foram vocês batizados em nome de Paulo?" (1 Co 1:13, NVI) Tanto na época de Paulo como em nossa cultura digital o problema é o mesmo: concentrar-se desequilibradamente no ministério de pessoas leva a perder de vista o fundamento da fé: a pessoa e ministério do Senhor Jesus.

Paulo, em outro contexto, elogiou aqueles que não aceitavam sua palavra sem uma mentalidade crítica (At 17:11) – o apóstolo era contra os fanboys, mesmo quando era alvo da admiração deles! Vale notar que a palavra grega traduzida por “nobres” pode ser entendida como “mente nobre” ou “mente aberta”. Os bereanos foram elogiados por possuírem uma atitude mental altamente seletiva, do tipo que sabe ouvir e ponderar, sem aceitar um discurso pelo número de recomendações ou pela fama de quem o profere. Seria interessante encontrar mais exemplos dessa mentalidade na contemporaneidade…