quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

ESTADO DE ESTRESSE




Entre cochilos e súbitos despertares, finalmente cheguei à rodoviária Tietê. Não posso retratar a minha como uma noite tranquila. A experiência de dormir no banco de um ônibus não costuma ser reparadora.


Eu, minha esposa e nossas dezenas de sacolas descemos para nos encontrar com as dezenas de malas deixadas no bagageiro. São Paulo amanhecia junto conosco.


Uma vez formada a fila, ficamos esperando até que um dos funcionários da empresa viesse abrir o bagageiro do veículo. De fato, a operação demorou mais do que o usual. Como um dos últimos da fila, estive ao lado do motorista; senti sua apreensão. Para ser franco, notei que ele se mostrava mais apreensivo do que a maioria de nós passageiros.


Passaram-se alguns minutos ainda, até que viesse o tal funcionário para cumprir sua incumbência. Outros ônibus ladeavam o nosso, e muitos passageiros desembarcavam simultaneamente. Certo motorista, saído de outro veículo (o qual deveria ser o quarto a partir daquele em que viajei), veio queixar-se com o rapaz que abria os bagageiros. Sua queixa se baseava no que argumentou ser uma espera absurda e um desrespeito à ordem de chegada (afinal, ele não chegara primeiro do que nós?). O bate-boca não foi longe, mas, parafraseando o poeta, foi eterno enquanto durou.


Minha esposa, ao meu lado, comentou como as pessoas vivem estressadas. Não me admira: num estado com poluição ubíqua, trânsito dantesco e excesso de gente por metro quadrado, os ânimos vivem em ebulição. Obviamente, o estresse não é privilégio de quem vive em São Paulo ou qualquer outra megalópole. Temos aqui um ingrediente comum da vida (pós-) moderna.


Coisas como cortesia, amabilidade, disposição de renúncia, altruísmo, serviço abnegado e amor genuíno parecem estar empalhadas em histórias infantis, com suas figuras coloridas e enredos maniqueístas. Entretanto, para os cristãos, tais características são mais do que mero idealismo ingênuo. A Palavra nos fala do fruto do Espírito (Gl 5:22-23), conhecido através de suas características diversificadas: “o amor, a alegria, a paz, a paciência, a delicadeza, a bondade, a fidelidade, a humildade e o domínio próprio” (BLH).


Inseridos em uma sociedade estressada e egoísta, dentro da qual as pessoas se voltam para seus interesses próprios, temos o desafio de agir e viver de forma diferente. Nada como refletir nesse repto quando temos à frente um novo ano, com novas oportunidades para testemunharmos. Apenas pelo decisão consciente, sairemos do estado de estresse para entrar no estado de graça – através da Graça divina.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

PORNOGRAFIA, EROTISMO & OTHER THINGS



Desafiador falar sobre pornografia, sutilmente acariciada pela cultura. O acesso a fontes confiáveis também não se mostra fácil. Uma busca no Google leva a uma imensurável quantidade de sites que promovem e explicitam material vulgar; dificilmente se acharia uma discussão razoável.

Se é verdadeira a estimativa de que 80% de toda a internet consiste em sites pornográficos, não o afirmo, pois isto carece de convalidação; o que posso dizer é que o crescimento de sites dessa natureza parece aumentar assustadoramente. Um teste empírico: digitando no Google qualquer expressão (legítima ou chula) de conotação sexual, o resultado levará a dezenas, centenas ou milhares de páginas.

Claro que há interessados em lucrar com isso: redes de acompanhantes, a poderosa indústria do cinema pornográfico, além dos grandes portais, que oferecem “serviços” de conteúdo adulto. Quero esclarecer, antes de prosseguir, que uso o termo “adulto” por ser locus communis; entretanto, não concordo que a pornografia seja um fenômeno adulto. Comumente, ela é tão disparatada quanto os adolescentes, possuindo um efeito infantilizador.

Todavia, dizer que a pornografia é voltada para adultos se trata de um mito bem estabelecido e incorretamente aceito – inclusive por cristãos! Passo a um exemplo: descobri um blog evangélico que reproduziu (com direito a copyright ) o meu texto Quadrinhos: janela para uma sexualidade distorcida. Alguém fez um comentário pretensamente moderado, afirmando: “[…] É por isso que uma leitura como Watchmen [a qual critiquei por sua sensualidade , apoio a pedofilia e violência] não deveria passar nas mãos de quem não tem maturidade para isso. Ela não foi feita para isso, assim como um filme como Silêncio dos Inocentes ou Kill Bill não foi feito para crianças.” Pergunto: e para quem seriam feitas coisas como Watchmen? Para adultos? Eles poderiam se expor à pornografia como entretenimento?

Tudo bem que Aristóteles defendesse a virtude como moderação; mas isso não equivale a buscar um meio termo em todas as questões. Às vezes, ser por demais conciliatório significa adotar um posicionamento ambíguo. E há questões para as quais se aplica o critério de Jesus: “sim, sim”, “não, não”.

No caso da pornografia, a verdade está em reconhecer que não há filtros confiáveis. A respeito dela, vale a mesma advertência que o Ministério da Saúde faz publicar nas embalagens de cigarro: “Não há níveis seguros de consumo para essa substância.”

Persiste, porém, a preocupação de autoridades com crianças e adolescentes em face da exposição facilitada a material de conteúdo explicitamente pornográfico. Por um lado, a preocupação é louvável. Por outro, é deficiente por (a) ser parcial, e se esquecer das mensagens implícitas, em programas humorísticos, filmes e comerciais e (b) olvidar os danos que a pornografia causa aos adultos.

Muitos estudiosos da mídia pornográfica defendem-na como expressão de arte. Existe a conceituação de que pornografia tem que ver com exposição pormenorizada do intercurso sexual ou das partes íntimas do corpo humano, enquanto o erotismo seria a insinuação do ato sexual ou a exibição sutil ou sub-entendida do corpo humano.

Em filmes com enredo pornográfico, por exemplo, a mulher é geralmente a peça-chave: ela é retratada como tendo as mesmas paixões libidinosas que o homem, o que distorce a sua sexualidade própria , fazendo da figura feminina mero objeto de prazer (como bem criticou Allan Moore); já em material erótico, há um jogo indireto, que se manifesta por fantasias, envolvendo sedução e sensibilidade. Grosso Modo, pornografia atrai homens e erotismo, mulheres.

Como cristãos, devemos estar certos de que o consumo desses materiais não representa o plano divino para o homem. Claro que o sexo não é sujo ou intrinsecamente pecaminoso. A experiência da intimidade física está reservada para o casamento, dentro do qual se espera que haja todo o suporte emocional devido ao grau de compromisso integral feito entre os cônjuges sob a bênção do Criador. Infelizmente, mesmo o casamento pode ser palco de abominações e depravações sexuais, incompatíveis com aquilo que o Senhor declarou ser saudável. Contudo, mesmo essa constatação não anula a verdade de que o casamento permanece sendo o ambiente propício para a expressão da sexualidade veiculada ao amor desinteressado, autêntico.

Por isso, a banalização do sexo através da pornografia é sempre nociva, por apresentar textos, imagens, áudio-visual, etc, contendo modelos divorciados do que Deus estipulou – o sexo marital, heterossexual, voluntário, capaz de proporcionar gratificação aos parceiros, sem recorrer a coisas tais como sexo oral, sexo anal, uso de objetos que provoquem dor física (sexo sado-masoquista), ou emprego de recursos para simular a penetração e coisas do gênero.

E quanto ao erotismo? Antes de considerá-lo, lembremo-nos de que um livro da Bíblia (em especial) retrata o amor erótico com belíssimas imagens poéticas: o Cântico dos cânticos. Isso, porém, deve ser analisado com cautela, a fim de que não sirva de pretexto para uma postura permissiva. O erotismo na mídia insinua fantasias com outras pessoas fora da relação conjugal, ou recorre a acessórios temáticos (fantasias com enfermeiras, super-heróis, personagem de cinema, etc).

O erotismo saudável parte do diálogo entre o casal, quando as preferências pessoais são conhecidas e ocorrem os jogos sexuais e carícias. Num relacionamento entre pessoas cristãs, coisas simples são excitantes. Por outro lado, tem-se a impressão de que quanto mais um casal tem de fazer ou simular para que ambos se sintam excitados, mais há indícios de disfunção sexual da parte de pelo menos um dos parceiros. Na verdade, desmascaramos outro mito, o qual não merece crédito: “não existe certo ou errado entre quatro paredes, desde que os envolvidos concordem com suas próprias regras.”


Logo de início, falei da dificuldade em lidar com o assunto. Apresentei breves considerações sobre o perigo oferecido pela variedade de material pornográfico, além de mitos sobre a sexualidade aceitos por grande parte da população. Finalizo pedindo ao leitor/leitora medite na figura que escolhi: Você sabe o nome dessa flor? Sendo ela bem conhecida, é provável que você já tenha visto ou tocado nela; você teria alguma experiência relacionada à flor em questão? Quais as suas características? Como a flor ilustra a psique humana? Que compromissos você deve assumir antes de ter de encarar as tentações sexuais? Converse com Deus sobre isso.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A CASUALIDADE IMPORTANTE

"[...] Ser o primeiro em qualquer coisa nem sempre é uma grande virtude; pode ser simples casualidade. Mas, afinal de contas, é sempre uma casualidade importante. O pioneiro não faz, obrigatoriamente, as melhores coisas; mas, às vezes, o difícil é começar - e depois que alguém deu um passo, embora não muito seguro nem muito avançado, já o caminho pode ir ficando mais compreensível, e daí por diante a marcha se vai fazendo como por si mesma, rápida e natural."

Leogário A. de Azevedo Filho (org.), Melhores crônicas: Cecília Meirelles (São Paulo, SP: Global, 2003), Precursoras brasileiras, pp. 194-195.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

APROVEITE O NATAL...

...sendo cristão como em qualquer outra época do ano e da vida. Nós nos reencontramos na próxima semana. Até lá.

O CORAÇÃO DE MESSI



Investir na formação de craques pode dar um bom resultado. Ou, se o clube der sorte, mais do que uma boa messe, pode obter um Messi. O Barcelona não poderia advinhar, mas o garoto narigudo que arrancou da Argentina retribuiu a oportunidade dando ao clube catalão o que lhe faltava na galeria de troféus do clube: a taça de campeão mundial de clubes.
Lionel Messi, como sempre oportunista, fez o gol da dramática virada contra o Estudiantes com o peito – ou seria mesmo com o coração? Nesse último caso, teríamos um problema: de Buenos Aires a todos os cantões dos pampas, um bordão frenético percorre a terra de Los hermanos. E não se trata de nenhum tradicional tango. As frases ecoadas acusam o compatriota Messi de trair seu país. Afinal, não teria sido La pulga que tirou a vitória de um time igualmente argentino, e em favor da Espanha, dos cruéis colonizadores? O caso seria pior apenas se o atual melhor futebolista do mundo resolvesse seguir carreira no futebol inglês…
Acima de tudo, as críticas feitas ao argentino se devem ao seu desempenho desigual: na equipe do Barcelona, Messi é um – o craque, o definidor, o malabarista sensacional; quando joga pela seleção de seu país, bem, Messi já não brilharia tanto. Seria essa acusação real? Ou apenas reflete a má fase do futebol argentino como um todo, que lutou até o último (suado) minuto para fugir da repescagem e garantir sua classificação para a copa na África do Sul? Curiosamente, a cobrança sobre Messi não é muito diferente da que se fazia ao seu ex-companheiro de equipe, o brasileiro Ronaldinho Gaúcho (que atualmente defende o Milan). O desempenho de Ronaldinho vestindo a amarelinha deixava tanto a desejar que o técnico Dunga não convocou mais o atacante nas últimas partidas.
Por outro lado, o brasileiro Daniel Alves, companheiro de Messi no Barça, justificou (sem falsa-modéstia) que o argentino joga melhor porque o acompanhamento é de um nível mais alto! De fato, o Barcelona é um dos times mais caros do planeta.
Particularmente, também não acredito que Messi renda melhor no time catalão por ser anti-patrioca ou pouco “argentino”. Ele mesmo se defende, dizendo que ninguém conhece a fundo seus sentimentos e o seu prazer de usar a camisa celeste de sua seleção. Ou seja: gol contra o Estudiantes pode ter sido feito com o coração – mas um coração muito argentino!

DARWINISMO E UMA NOVA SEXUALIDADE



“O livro On the Origin of Species By Means of Natural Selection [Sobre a origem das espécies por meio da seleção Natural] de Charles Darwin (1859) disputou com a explicação do Gênesis a respeito da criação, mas ele não aplicou especificamente a evolução aos humanos. Seu próximo livro The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex [A origem do homem, e Seleção em relação ao sexo], de 1871, o fez. Esse trabalho não apenas incorporou os humanos na saga evolucionária; ele também promoveu conceitos radicais sobre a origem e significado de gêneros diferentes através da teoria de seleção sexual. Darwin sustentou que a seleção sexual explica o desenvolvimento de características sexuais secundárias, a divergência de raças, e a origem da heterossexualidade e monogamia. Ele também reivindicou que essa era no mínimo tão importante no mecanismo evolutivo quanto a seleção natural. The Descent of Man provocou muita discussão e estimulou vários americanos a reconsiderar suas ideias previamente concebidas sobre gênero e sexo”.

Kimberly Ann Hamlin, Beyond Adam’s Rib: How Darwinian Evolutionary Theory Redefined Gender and Influenced American Feminist Thought, 1870-1920, dissertação para cumprimento parcial para o título de doutorado em Filosofia, The University of Texas at Austin, Agosto de 2007, p. 3. Disponível aqui em pdf.

QUEM DISSE QUE RELIGIÃO NÃO CAI EM VESTIBULAR?



Durante o ano letivo, alguns alunos me questionaram sobre a relevância das aulas de Ensino Religioso (ER) no Ensino Médio. Como muitos estão (ou dizem estar) focados no Vestibular, parece sem sentido “perder tempo” estudando a Bíblia e seus temas.

Entretanto, é de se perguntar se a única coisa que o aluno deva aprender sejam alguns conhecimentos utilitários, para um uso tão imediato quanto para entrar em Faculdade (via Vestibular ou ENEM). A verdadeira Educação não pode focar-se apenas em objetivos tão curtos. Educar significa transformar vidas. Transmitir valores concretos, para além de meras abstrações. E essa transmissão, se não se restringe (e nem deve!) ao ER, deve encontrar nele seu ponto nevrálgico.

É claro que os alunos mais conscientes já sabem disso, ou pelo menos o admitem. Porém, sempre me deparo com aqueles que tentam justificar seu desinteresse pelas coisas do alto, escusando-se na afirmação de que o ER ocupa o lugar de coisa mais importante. Pois bem. Quero mostrar a esses a proposta 1 da prova de Redação da UFSC (SC), que ocorreu ontem, a qual já se acha disponível no site da entidade:

R E D A Ç Ã O

PROPOSTA 1

Escreva uma dissertação com base na leitura dos textos A e B abaixo.

Texto A

Para quem acredita nas palavras do Apocalipse, livro da Bíblia que fala do final dos tempos, é bom se preparar para o pior. No capítulo 16, o livro alerta que um dos sinais para identificar que o fim do mundo está próximo é a seca do Rio Eufrates, no Oriente Médio, exatamente o que vem acontecendo, segundo notícia do jornal The New York Times.

Disponível em:
Acesso em: 25 nov. 2009. (Adaptado)

Texto B

I
Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disto a minha gente lá em casa começou a rezar
Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disto nesta noite lá no morro não se fez batucada

II
Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar

III
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou

Assis Valente (1911-1958)... E o mundo não se acabou.
Disponível em: http://
Acesso em: 03 ago. 2009. (Adaptado)

(Trecho do samba cantado por Carmem Miranda nos anos 40 do
século passado e regravado em 2000 por Adriana Calcanhoto).

Um dos meus ex-alunos, ao se deparar com uma funcionária do Colégio após a prova, disse a ela: “Agradeça ao Prof° Douglas pelas aulas de Apocalipse.” É, meninos e meninas, não custa nada estudar a Bíblia – principalmente para que ela o ajude a ser aprovado no mais difícil Vestibular, a própria vida.

Um agradecimento especial a Gielen Walczak

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MILTON EM PORTUGUÊS




Provavelmente, uma das tarefas mais árduas e ingratas seja traduzir poemas. Os melhores poetas exploram as peculiaridades de sua língua, produzindo efeitos dificilmente transponíveis para alheio idioma.

Já traduzi alguma coisa do Francês, como treino. Agora, me aventuro pelo Inglês. A dificuldade é maior, uma vez que a língua de Shakespeare é muito mais concisa do que a de Camões (e também em relação à de Leconte de Lisle).

Aliás, já que cito grandes autores, vale dizer que escolhi simplesmente um dos mais ilustres escritores ingleses: John Milton, autor de Paradise Lost. Seu soneto original, On the Late Massacre in Piedmont, é decassílabo e já se encontra em Português, vertido por Isolina Waldvogel, o maior poeta adventista de todos os tempos.

Justamente as opções estéticas de Isolina na tradução de Milton revelam as dificuldades do ofício, o que comentávamos antes. Por exemplo: seguindo um caminho comum, a brasileira usa o alexandrino para comportar o decassílabo inglês. Ela também não se atém ao esquema métrico original, muito menos se furta de interpretar o fraseado peculiar de Milton, nos trechos em que a métrica a obriga a isso.

Diferentemente, minha tradução parte do decassílabo e segue as disposições de rimas miltonianas (que, aliás, fogem do padrão elizabetano do soneto, para seguir o soneto italiano, bem familiar aos leitores luso-brasileiros). O tom das traduções é bem distinto. Isolina é mais melodiosa, evitando os enjabemants do original, enquanto a minha tradução é mais entrecortada, brusca às vezes. Milton encontrou um ritmo mais equilibrado se o cotejarmos ao das duas versões. Procurei ser conciso (até em virtude de o “espaço” disponível no decassílabo ser menor) e o mais fiel ao modo de escrever de Milton.

Claro que fidelidade total seria impossível; no entanto, procurei fazer algo equivalente, num exercício de recriação do poema. Um exemplo disto está no conjunto “stocks/stones” (v.4) usado por Milton, que se constitui de uma paronomásia graciosa. Traduzir literalmente "toras (de madeira)/rochas" não produz o mesmo efeito. Isolina interpreta a expressão, empregando a forma enxuta “ídolos”, que não foge à caracterização da idolatria proposta pelo poema original. Quanto a mim, procurando acompanhar Milton, verti os termos para “lenha/penha”, criando um equivalente linguístico, tanto em significado, quanto em efeito sonoro.

Obviamente, nenhuma tradução é perfeita ou isenta de correções. Mas, com seus méritos e defeitos inerentes, tanto eu quanto (imagino) Isolina tencionamos comunicar a beleza da poesia religiosa de um dos mais relevantes autores ingleses; apesar de partir de um caso real de perseguição religiosa, Milton dá grandiosidade ao tema, fugindo do reles denuncismo para acrescentar uma perspectiva escatológica, apoiada tanto na vingança futura do Senhor, como no triunfo da verdade. Somente este enfoque já justificaria o trabalho para traduzir o seu belíssimo soneto.

On the Late Massacre in Piedmont

Avenge, O Lord, thy slaughtered Saints, whose bones
Lie scattered on the Alpine mountains cold;
Even them who kept thy truth so pure of old,
When all our fathers worshiped stocks and stones,
Forget not: in thy book record their groans
Who were thy sheep, and in their ancient fold
Slain by the bloody Piemontese, that rolled
Mother with infant down the rocks. Their moans
The vales redoubled to the hills, and they
To heaven. Their martyred blood and ashes sow
O'er all the Italian fields, where still doth sway
The triple Tyrant; that from these may grow
A hundredfold, who, having learnt thy way,
Early may fly the Babylonian woe.

(Trad. Isolina Waldvogel)

Vinga, ó Senhor, Teu massacrado povo santo,
Cujos ossos jazem nos Alpes espalhados,
Aqueles que a verdade Tua amaram tanto,
Embora os pais houvessem ídolos louvado.

Não os esqueças, pois Teu livro relatadas
Traz as angústias dessas Tuas ovelhinhas
No montanhês redil outrora trucidadas,
Lançadas rocha abaixo – mães com criancinhas

O vale seu gemido ecoava aos altos montes,
E as cinzas desses mártires predestinados
Cobriam vastos campos, lá no Piemonte,

Por tríplice, cruel tirano dominados.
Surjam das cinzas multidões de seguidores
E fujam cedo aos babilônicos horrores.

(Trad. Douglas Reis)
dedicado a Danivia Mattoso

Vinga, ó Senhor, Teus santos, pois dos tais
Ossos nos Alpes veem-se em cada canto
– Tinham áurea a verdade há muito, enquanto
Louvavam lenha e penha os nossos pais.

Lembra-te: anota em Teu livro os seus ais,
Que eram Tua grei, mas dos montes tanto
Mães quanto filhos se jogou. Que o pranto
Ressoe destes vales tão brutais

Pelo Piemontes todo e dali para
O Céu. A cinza e o sangue do martírio
Enchem a Itália, e abalam a tiara

Tripla do opressor; dê o sangue empíreo
Noutra grei, que o conheça e em senda clara
Fuja do babilônico delírio.

KAREN ARMSTRONG E A ESPERANÇA DO TERCEIRO MENINO





Quero começar com uma parábola: imagine três meninos numa jangada, levados pela correnteza de um rio para uma grande queda d’água. O primeiro acredita que os bombeiros da cidade serão mobilizados e darão conta de socorrê-los. A convicção parte da experiência de já ter conhecido pessoas que foram resgatadas por eles. O segundo dos garotos, olha com frieza, divertindo-se sarcasticamente com o espanto dos colegas. Ele parece muito racional. Sabe que estão a poucos metros da morte e se entretém calculando em quanto tempo encontrarão o fim. Sua impassibilidade esconde seu medo. E o terceiro dos ocupantes do barquinho? Ele não acredita nos bombeiros, mas imagina que o coelho da Páscoa ou o Papai Noel virão salvar o trio da tragédia.
Eu afirmo que os três representam perspectivas diferentes, que de forma alguma se equivalem. A diferença entre eles se relaciona não à iminência da tragédia, justamente o ponto em que concordam. Chamemos ao primeiro menino de representante de uma esperança possível. Ele não conhece os bombeiros, mas tampouco os inventou. Ele sabe deles pelas evidências de suas ações na vida de outros.
O segundo companheiro do barco ilustra o desespero não-intervencionista. Sua concepção se restringe à admissão da tragédia, sem possibilidade de auxílio externo. A única coisa que salvaria os meninos seriam seus próprios esforços, os quais, infelizmente, não seriam suficientes.
O último ocupante da jangada representa a esperança absurda. Diferente dos dois primeiros, que se baseiam em opções racionais e prováveis, o menino que aguarda pelo Papai Noel não faz outra coisa senão recorrer à fantasia. Ora, a questão não é se o ilustre velhinho do Pólo Norte já resgatou ou resgataria alguém; afinal, Papai Noel não existe! Apenas por um devaneio essa saída seria aceita.
No fundo, entre o segundo menino e o terceiro, as diferenças não são profundas – afinal, o terceiro menino tem consciência de que Papai Noel não existe e de que irão morrer, mas procura subterfúgios pueris para não admiti-lo. A única esperança real é a possível, baseada em evidências de situações concretas. Não importa quão absurdo seja afirmar que pássaros rosas voaram pela Avenida Paulista transportando um trapezista; se o evento foi visto por uma série de pessoas, que pudessem ter seus depoimentos reunidos e contrastados, provando ser unânimes nos pontos essenciais (e isso sem estarem previamente combinadas ou coagidas de alguma forma), seríamos obrigados a concluir: pássaros rosas voaram pela Avenida Paulista transportando um trapezista! Apenas na ficção (e comumente na péssima ficção) a lógica rege os acontecimentos; na vida cotidiana, o absurdo pode ser real, desde que produza um rastro inequívoco de sólidas evidências.
Infelizmente, a sociedade tem abrigado cada vez mais um número de pessoas que seguem a cartilha do terceiro menino. A esperança absurda vem dando nova configuração à crença no terceiro milênio. Prova disso é a matéria que estampa a capa da mais recente edição da revista Época, intitulada Em nome de Deus [1]. O articulista serve-se das ideias de Karen Armstrong para oferecer uma defesa da religião nos moldes da esperança absurda.
Ex-freira e dedicada aos estudos de manifestações religiosas, Armstrong tem conceitos muito próximos aos dos teólogos liberais. Ela própria se auto define como “monoteísta free-lance”, para deixar claro que não está engajada em nenhum movimento religioso específico [2]. Em seu livro, The case of God: what religion really means (algo como: Em defesa de Deus: o que a religião realmente pretende) procura contra-atacar as iniciativas dos neoateus. “[…] Para Karen, o engano comum a ambos [neoteus e fundamentalistas religiosos] é analisar os textos sagrados em sua literalidade.” [3]
A posição da estudiosa é interessante; primeiramente, ela nivela os textos sagrados, como se todos fossem produzidos dentro de uma mesma mentalidade, ou mesmo representassem modelos equivalentes. É claro que poucas das grandes religiões reivindicam ser históricas; dessas, nenhuma possui tanto respaldo da História às suas afirmações quanto o Cristianismo. Um outro ponto: enquanto alguns discutem se há evidências para se crer ou não na Bíblia, Karen desmerece esse questionamento; para ela, é possível a complementaridade entre fé e razão porque tais coisas se referem a facetas diferente da Humanidade [4].
E qual seria o papel da religião? “[…] ‘A religião não existe para nos explicar a origem do Universo. Esse é o papel da ciência. […] Religiões nos ajudam a lidar com os aspectos da vida para os quais não existem respostas fáceis: a morte, a dor, o sofrimento, as injustiças da vida e as crueldades da natureza.’” [5] Assim, não causa surpresa que Armstrong defina fé como “fonte de fortalecimento espiritual” [6] e o próprio Deus como “o mistério que foi, é e, por muito tempo, ainda será.” [7] Ou seja: a esperança que ela nos oferece é esvaziada de seus fundamentos lógicos [8]. Embora o Cristianismo se oponha fortemente ao racionalismo (tendência de pensamento que somente admite verdades via empirismo e dá plenos poderes à razão autônoma), ele ainda é extremamente racional e dispõe de evidências para se firmar.
Todavia, Armstrong reduz o Cristianismo (e qualquer fé em geral) a uma esperança absurda, baseada em porções míticas, que oferecem um consolo que pertence à categoria das expectativas do terceiro menino de nossa história inicial. No fim, tanto faz no que se crê, porque nenhuma crença pode se definir como verdadeira.
Em meio a tudo isso, a religião cristã perde seu potencial transformador. Como definiu Luc Ferry: “[…] a religião se tornou uma opinião particular entre outras, uma crença pessoal entre outras e que ela não estrutura mais o espaço público e nem é mais a matriz da lei.” [9] Por outro lado, os efeitos da atuação do Cristianismo na História perduram até os nossos dias, mostrando que precisamos dessa cosmovisão poderosa para oferecer não apenas esperança, mas esperança possível.
Com efeito, Vásquez pondera que “o cristianismo deu aos homens, pela primeira vez, incluindo os mais oprimidos e explorados, a consciência da sua igualdade, exatamente quando não existiam as condições reais, sociais de uma igualdade efetiva, quando – como hoje sabemos – passa historicamente por uma série de eliminações de desigualdades concretas (políticas, raciais, jurídicas, sociais e econômicas)”, embora os cristãos medievais não seguissem a proposta cristã de forma integral [10]. Talvez, Deus precise menos de quem o defenda, mas de quem viva como “sal da Terra” e “Luz do mundo” (Mt 5:13-16), consciente de que a Bíblia não é uma opção, porém a única opção; não uma verdade, porém a Verdade (Jo 17:17).


[1] José Ruy Gandra, “Em nome de Deus”, Época, edição no 605, 21 de Dezembro de 2009, 88-92. De agora em diante, DND.
 [2] DND, 90.
 [3] Idem, 91.
 [4] Idem.
 [5] Idem, 91-92.
 [6] Idem, 92.
 [7] Idem.
 [8] Armstrong mesmo admite: “[…] O auge da experiência religiosa consiste em alcançar um estado de reverência, mesmo sabendo que Deus não pode ser traduzido racionalmente.” Idem. É claro que a razão tem seus limites, o que é muito diferente de legitimar o estabelecimento completo do irracionalismo. Ver ainda Douglas Reis, “A racionalidade e suas travas”, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2008/09/racionalidade-e-suas-travas.html .
 [9] Luc Ferry e Marcel Gauchet, Depois da religião: o que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei? Rio de Janeiro. DIFEL, 2008, 22.

 [10] Adolfo Sánchez Vázquez, Ética. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2008, 277.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

DESTAQUE DA SEMANA: UMA NOVA ESPIRITUALIDADE



Encerraram-se as postagens da semana. No dia 21 de Dezembro retornamos com novos textos, contendo reflexão, motivação, instrução e muitas novidades. Das postagens recentes, destaco A verdade e a Vida (parte 1 e 2), textos que trazemos à luz para somar com aqueles que se preocupam com a sobrevivência do Cristianismo em tempos pós-modernos.
Com acurada percepção, Donald Bloesch disse na introdução de seu livro: “A situação do Ocidente hoje é similar àquela da antiga Roma com seu contexto pluralista. Vemos a diversidade da manifestação espiritual, mas uma carência de direcionamento espiritual na cultura como um todo. Somos também confrontados pelo secularismo crescente, apesar dele não ser desprovido de conteúdo religioso […] De fato, o secularismo anda de mãos dadas com um novo paganismo. O problema não é que Deus esteja morto, mas que os deuses são entidades renascidas.”[1]
Entre muitos deuses, os cristãos precisam reivindicar a racionalidade e efeitos de sua fé, perante o relativismo de nossa época. Espero, sinceramente, estar contribuindo para um reavivamento não somente da espiritualidade cristã, mas também do cérebro cristão. Até o próximo dia 21.

[1]Donald Bloesch, Spirituality Old & New: Recovering Authentic Spiritual Life (Dowers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2007), p. 17.

TRAUMA DE AÇAÍ



Era domingo e voltávamos de uma programação do mutirão de Natal. Minha esposa me convenceu a ir a uma lanchonete, na frente do condomínio vizinho ao nosso. “Praia do açaí”, um nome arrepiande! Por quê? Passo a contar meu trauma do açaí.
Morei quatro meses em São Luís, MA. Além de ser terra de grandes poetas (Gonçalves Dias, Souzândrade, Nauro Machado…), é o paraíso das frutas. Conheci cupuaçu na lanchonete do irmão Ariel, um amigo da igreja central. Visitando algumas senhoras, experimentei açaí na tigela com uma farinha graúda de mandioca, típica da região. Virei fã de açaí, de carteirinha (mas não da farinha…)!
Provei açaí em outros lugares do Brasil: em Minas, São Paulo, Rio Grande do Sul e até em Santa Catarina. Sempre a mesma decepção. O açaí que preparavam era um suco marrom, misturado com guaraná, catuaba, amendoim e sabe-se lá quantas outras coisas. Tinha gosto de xarope. Nada sequer próximo à iguaria que eu provei no nordeste brasileiro.
Assim, desisti do açaí. Toda vez que o encontrava em algum menu, perguntava ressabiado sobre a sua cor. Depois de um tempo, nem mais perguntei. Ficava na saudade, imaginado quando voltaria para São Luís para provar do verdadeiro açaí.
Sentado na mesa da lanchonete com a minha esposa, resolvi me atrever a indagar sobre o açaí que serviam, sem muitas esperanças. O rapaz que me atendeu informou como era o produto. Decidi: arriscaria. Logo veio a tigela. Para minha surpresa, tinha mesmo a cor do açaí. Mas faltava o principal, o gosto. Dei a primeira colherada e…
Naquele momento, aconteceu um transporte. Acionei um gatilho que me levou, inevitavelmente, a muitas milhas de casa. Senti-me de volta no Maranhão, entre os amigos, andando pelas ruas estreitas da capital, entre a população de baixa estatura. Quase vi os peixes sobre lonas nas calçadas e a frota de carros novos circulando por São Luís. Lembre-me de Edgardo, Baima, o irmão Jesus (que sempre reconheceu minha voz pelo telefone), Ricardo e Rafael (do pequeno grupo), Jó, Atencio, e tantos outros, que enumerar nomes tornaria o texto imensurável. Algumas colheradas me devolveram o gosto de um momento especial que vivi. Era o sabor do Maranhão que um paulista sentia em plena Santa Catarina e ao lado de uma gaúcha!
Mas ainda quero tomar o açaí em São Luís. Com minha esposa e entre amigos.

ANTES DA LUZ, UM GANSO



A José Miranda Rocha

Quem viu de perto o inferno? Ante o povo, na rua,
Preso ao expor a Palavra e não o erro da Sé.
Ao Ganso resoluto evita-se que instrua
Aos boêmios na verdade e pureza da fé.


A almucântara em breu. Despem-no. A ofensa crua
Lhe infringem. Cresce o lírio em meio ao massapé
De escárnio e de blasfêmia. E a sorte de gazua
Sofre como o seu Mestre, o Homem de Nazaré.

(...) O último hino saiu de Tabor. Como sigla,
O general caolho ergue o sabre, e com fúria!
Sob a tropa real, cede o gelo e os traga o Igla.

(...) Se em vaus de piche vender soem o erro romano,
Em Leipzig (quase na Boêmia) uniu-se a Cúria,
E a Lutero o Senhor deu armas contra o engano!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A VERDADE OU A VIDA - parte 1



Primeiro, ela: uma jovem cantora, do tipo que hoje está na mídia, para amanhã cair no olvido. Katy Perry fez sucesso com as músicas You’re so gay (“Você é tão gay”) e I Kissed a girl (“Eu beijei uma garota”). O tom provador do CD é propositadamente bem dosado, o que torna o produto mais vendável. Será que as pessoas se lembrarão de Katy daqui a alguns anos? O tempo se encarregará de dizer.
Agora, se você quiser se encontrar com um provocador autêntico, veja ele: a começar pelo visual incomum, com o bigode avantajado escondendo o rosto, até a pena ácida, Friderich Nietzsche marcou a Filosofia ao desferir o golpe na esperança ocidental. Abriu-se a ferida que sangraria profundamente no século XXI. Sua frase mais conhecida resume seu pessimismo: “Deus está morto”.
A esta altura, você deve estar curioso para saber qual a conexão entre uma cantora pop e um filósofo ateu. Na verdade, pelo menos uma coisa em comum ambos possuem: eram filhos de pastores cristãos!

ÁTOMOS DE VERDADE

Tomo esses dois exemplos para representar a forma como indivíduos criados dentro de uma mentalidade cristã se afastam da cosmovisão bíblica. Aliás, o próprio Ocidente já foi catalogado como “pós-cristão”. No entanto, o Cristianismo não se encontra superado, porém dissolvido, infelizmente. Devido a esta solvência da fé, falta sentido em um mundo sem explicações integradas. O quebra-cabeça se desfaz e o que temos são peças isoladas e independentes.
Uma estudiosa, falando sobre a mudança de paradigmas na interpretação literária, comenta sobre como os efeitos do pós-modernismo se fazem sentir sobre o homem comum: “A sociedade do século XX entrou em crise com a fragmentação do sujeito pela força do inconsciente. A noção de totalização que o iluminismo traz, a ilusão da generalização, começa a ruir [1].
Será oportuno indagar: o que gerou a fragmentação do indivíduo?
Sem dúvida, Friderich Nietzsche deu fundamental contribuição para que isso ocorresse. “Ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche nomeia a ruptura que a modernidade introduziu na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências e do fundamento divino”, conclui outra autora [2]. Com sua negação de valores absolutos, Nietzsche abre as portas para pensadores autenticamente pós-modernos, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Richard Rorty. Se Nietzsche atirou a primeira pedra contra o edifício, eles terminaram de o demolir. Veja como estes pensadores fizeram isso.
No entendimento de Michel Foucault, a verdade é uma ficção sustentada pelos sistemas de poder (as classes dominantes, os políticos, os líderes religiosos, etc.), sendo que próprio poder do conhecimento é arbitrário [3]. O Mundo é um discurso, na verdade mais um discurso imposto, sem sentido real (a História não tem qualquer significado) [4]. Daí surge o conceito de Foucault sobre a “genealogia”, pelo qual se interpreta a História como resultado de “conflitos fortuitos” [5]. Até pensamento é um discurso, haja vista que não há ordem quando construímos e desconstruímos o mundo [6]. Se levado a sério, esse conceito implica que nenhum pensamento é confiável – incluindo o próprio pensamento discursivo de Foucault!
A seguir, nos defrontamos com o raciocínio complexo de Jacques Derrida. Para Derrida, significado e significante são inseparáveis. Querendo expressar a relação entre ambos, ele cunhou o neologismo Differance. E sua filosofia vai mais além: Derrida via ligação entre a atividade mental e a linguagem [7]. Assim como as palavras mudam de significado semântico, o pensamento vai se modificando. Todo texto – e também todo discurso – não passa de um jogo de significados, que flui, podendo ser alterado em seu entendimento ao critério do leitor. Assim, uma interpretação textual jamais pode chegar à conclusão alguma [8]! Obviamente, isso foge à lógica mais elementar. As pessoas continuam lendo e interpretando textos como têm feito desde que se inventou a escrita [9] – provavelmente porque não exista outra forma lógica de ler um texto sem recorrer a regras básicas de interpretação. E os vestibulares estão aí para provar que Derrida não foi convincente em sua promoção da livre interpretação…
Richard Rorty, proponente do neo-pragmatismo, parece o menos influenciado por Nietzsche entre os grandes filósofos pós-modernos. Rorty considera a verdade uma questão étnico-social. O indivíduo não pode ultrapassar o contexto de sua sociedade, logo só pode determinar o que é verdade dentro de seu limite cultural [10].
Considere um exemplo da confusão estabelecida aqui pelo filósofo: o rio Ganges é divino na concepção hindu. Milhares se banham em suas águas, cumprindo determinados rituais sagrados de purificação. Igualmente, mulheres lavam ali suas roupas. Também os mortos são lançados em suas águas. Por mais que entidades internacionais alertem para o risco de infecções e demais moléstias, os sacerdotes do Hinduísmo se recusam a permitir o saneamento do rio, alegando que, como um deus, ele é capaz de cuidar muito bem de si mesmo! Pela ótica pós-moderna, você não pode avaliar se o rio Ganges deve ser ou não saneado, para benefício sanitário da população indiana; afinal, os únicos que podem determinar isto, são os próprios indianos. É claro que não há nada de realístico na abordagem de Rorty.
Para onde nos conduz o pensamento pós-moderno? Ele hostiliza a verdade revelada; valoriza a interpretação em detrimento do conhecimento; relativiza a verdade (enfatizando a verdade comunitária, aceita por consenso geral); e se restringe à transitoriedade, admitindo uma maleabilidade nos princípios.
Por conta de seu anti-realismo, o pós-modernismo enfrenta dificuldades, porque, na prática, se torna impossível vivê-lo coerentemente: “´[...] Os pós-modernos continuam a rejeitar a ilusão modernista – negam que os modelos modernistas representem a realidade – mas, por uma questão prática, admitem que os modelos continuam a servir como ‘ficções úteis’ na vida cotidiana.” [11] A isso Schaeffer se referia pela designação “salto”: a incoerência gerada pela irracionalidade leva o homem a viver dentro da realidade, mesmo que isto o faça negar na prática o que ele crê na teoria.
“Eu sou dono da minha vida e faço dela o que quiser”. Até os partidários da anorexia se defendem com o uso dessa frase. E é claro que, levado até as últimas consequências, a premissa justificaria qualquer opção comportamental, inclusive as menos humanitárias, sendo um exemplo a própria anorexia. Em contrapartida, o conceito da premissa é contestado pela noção bíblica de que a vida não é nossa – ela foi comprada pelo sangue do “Cordeiro sem mancha”. Mesmo sem abrirmos a Bíblia, uma contestação lógica à noção de liberdade irrefreável é que ninguém poderá determinar limites éticos para o comportamento individual, caso cada indivíduo seja seu próprio referencial. Consequentemente, perde-se o poder de avaliar as decisões morais. Pedofilia, estupro, necrofilia, infanticídio, pederastia e sexo bestial deixam de ser considerados crimes nefandos para se tornarem mera questão de escolha.
Conforme já vimos, a falta de critérios seguros leva à fragmentação do eu. Andy (personagem de Philip Seymour Hoffman), expressa isto num monólogo fascinante: “O lance da contabilidade é que se pode somar as linhas, as colunas da folha que tudo dá certo. Então tudo, todo o dia, dá só uma parte. O total é sempre a soma das partes – isto é nítido, claro, exato, absoluto. Só que na minha vida a soma não faz sentido e nada se encaixa com nada e eu não sou a soma das minhas partes. A soma das minhas partes não formam o todo, não formam um único eu...” [12].

A SOCIEDADE IMPOSSÍVEL

A Verdade não é apenas uma abstração – precisamos dela, nossa sociedade carece de uma argamassa que torne coesos e sustentáveis seus valores mais humanos. Voltamos a dizer que o pensamento traz consequências. E a melhor análise a ser feita de uma visão de mundo tem que ver com a forma de ela funcionar no mundo real.
Apesar de o Pós-Modernismo nivelar todas as cosmovisões, como se fossem igualmente verdadeiras (ou falsas), cito um fato histórico para ilustrar a diferença que faz escolher entre esta ou aquela cosmovisão: O massacre dos tasmanianos.
Os habitantes nativos da Tasmânia viveram em completo isolamento por milhares de anos, constituindo setenta tribos e cinco grupos linguísticos. Seu modo de vida era simples: construíam cabanas e artefatos, como recipientes rústicos para água, almofadas, colares, cordas, canoas, etc.
O primeiro contato entre os negros da Tasmânia e o branco europeu foi amistoso. Entretanto, com o passar do tempo, as hostilidades surgiram, motivadas pela ganância dos “colonizadores”. Outro fator que contribuiu para o preconceito contra os nativos se explica pela compreensão científica da época.
Ernest Haeckel, em seu The Wonders of life [As maravilhas da vida], enxergava similaridades dos nativos com “símios e cães”, considerando-os inferiores e, portanto, possuidores de vidas com “um valor totalmente diferente” às do “europeu civilizado”. Outros cientistas os avaliavam como “representantes do homem do Paleolítico” e “o povo mais primitivo ainda vivo nos séculos recentes”. Tal visão negativa estimulou a chamada “caça negra”: patrulhas particulares capturavam os povos da Tasmânia, que sofreram sequestro, mutilação, perseguição de cães, estupros, castração, infanticídio, entre outras barbáries. Em trinta anos de colonização (1800-1830) a população de tasmanianos passou de estimados 3000 (ou 5000) a 135 pessoas!
Ninguém perdeu o sono com isto. Afinal, aquilo era parte da luta pela vida. O próprio Charles Darwin, em seu Descent of man [Descendente do homem], alegou que a extinção de raças inferiores era “o processo e a fonte da evolução”. Darwin ainda lutou para entrar na fila de estudiosos que queriam examinar os corpos de nativos mortos, geralmente disputados por grandes museus; o estudo do homem da Tasmânia proveria documentação necessária para confirmar a teoria da evolução! A única ajuda, ainda que modesta, recebida pelos nativos veio da parte de cristãos que criam no valor da vida humana – embora a maioria, mesmo entre cristãos, fosse influenciada pelas ideias evolucionista [13].
Viver pelos pressupostos errados estabelece a tirania e o abuso, normatizando a negação dos princípios humanos mais elementares. Um dos equívocos mais sérios da conceituação pós-moderna está com a admissão de que todos estão certos e que, portanto, não temos elementos para avaliar os princípios alheios. Isto nega a própria realidade e conspira contra a liberdade humana. A incerteza existencial gera uma sociedade sem eixos éticos.
Recentemente li em um jornal um artigo escrito por um padre. Achei formidável a forma como ele enfoca a falsa oposição entre princípios e a vida real: “Frequentemente somos postos diante de escolhas que parecem um dilema: a verdade ou a vida? Há quem se isole na verdade sem atenção com a vida. A verdade é tomada na sua abstração de princípio absoluto, sem enraizamento nos contextos diferenciados da vida. […] Há quem se feche do lado da vida sem considerações para com a verdade. […] Tudo o que venha a contradizer o prazer da vida, deve ser excluído. […] Neste falso dilema está sendo construída uma sociedade impossível de se sustentar.” [14].
Fizemos notar os malefícios do pensamento pós-moderno [15], com suas incertezas que desconfiguram a psique do indivíduo. Há algum tempo, rearranjei a oposição corrente à cosmovisão pós-Moderna da forma como se segue:
1. Afirmar que não há uma verdade absoluta é fazer uma afirmação absoluta;
2. Nenhum sistema filosófico pode ser sustentável se possui contradição interna;
3. Logo, o pós-modernismo não é sustentável.

Esse esquema simplificado ressalta as contradições do modelo pós-moderno, levando ao reconhecimento de que ele deve ser superado. Em outras palavras, a busca pela verdade universal deve prosseguir. Só assim haverá significado para o indivíduo e igualmente para a sociedade.
Não, a verdade não pode ser isolada da vida; muito menos, a vida se sustenta sem a verdade. Nosso século carece da verdade objetiva. Antes de tocar nesse assunto, quero considerar certas características pós-modernas, com o objetivo de revelar, na prática, comportamentos nocivos decorrentes dessa cosmovisão, como o consumismo, a falta de modelos de vida, e a banalização do cotidiano. Por motivo de o espaço ser restrito, procurarei enfocar o papel da mídia televisiva na fomentação da ideologia pós-moderna.

TELEVISÃO: A GENTE SE VÊ POR AQUI

Se não se busca mais a verdade maiúscula, o que resta então para homens e mulheres comuns do século XXI? Numa sociedade composta por indivíduos incompletos, a única satisfação está em aproveitar a transitoriedade da vida. Em nosso primeiro capítulo, já consideramos que uma compensação para o vazio e insatisfação da condição atual é a busca intermitente por prazer. O “ter” ganhou relevância, em detrimento do “ser”. Portanto, nada melhor do que ir às compras. E sendo o consumo um valor pós-moderno universalizado pela mídia, todas as coisas se tornam consumíveis: de bolsas a carros, de celulares a lanches, da aparência à fama. Desenfreadamente, pessoas pós-modernas buscam maneiras infinitas de preencherem a falta de propósito de suas existências irremediavelmente passageiras.
Não à toa, a emissora de televisão mais popular tem um slogan sugestivo: “A gente se vê por aqui”. A frase parece favorecer uma ambiguidade propositada, referindo-se tanto ao canal como um ponto de encontro (a gente se vê por aqui), mas indicando, principalmente, a televisão como um referencial, um espelho, pelo qual o telespectador pode se identificar, em seus amores, princípios, aspirações e sonhos.
Talvez esteja aí a explicação para o sucesso dos reality shows, que infestaram as programações de emissoras televisivas ao redor do mundo. Programas desta natureza oferecem um alto índice de satisfação, prometendo fama a pessoas sem expressão, que supostamente vivem cotidianamente sob os holofotes da imprensa. Simultaneamente, a estrutura do programa eleva ao patamar de heróis os participantes, aos olhos de uma audiência desesperada por modelos de vida e de sucesso.
Essa banalização do modelo de vida ressalta a escassez de valores da presente época [16]. Ainda na década de 60, com lucidez que mantém atualíssimo seu comentário, assim a escritora Clarice Lispector se expressou a respeito dos calouros que apareciam no programa do Chacrinha: “[…]São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo às custas do ridículo ou da humilhação.” Sobre o programa em si, Clarice se diz “triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.” [17] Se ela soubesse quão menos exigentes as pessoas seriam décadas após sua morte…
Obviamente, não se pode demonizar a televisão. Como veículo de comunicação, estamos diante de um meio poderoso. Infelizmente, o conteúdo do que vem se veiculando é discutível. A massificação de conceitos relativistas, do consumismo e de um hedonismo barateado têm ajudado a construir um mundo sem valores estáveis. Como solucionar o problema da falto de princípios em nosso mundo? Retornado à busca da Verdade universal! Vejamos isso com maiores detalhes.


[1] Eliane Yunes, Elementos para uma história da interpretação, em idem (org.), Pensar a leitura: complexidade (Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Edições Loyola, 2002), p. 100.
[2] Anelise Pacheco, Das estrelas móveis do pensamento: ética e verdade em um mundo digital (Rio de Janeiro, RJ: Civilização brasileira, 2001), p. 149.
[3] Stanley J. Grenz, Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia de nosso tempo (São Paulo, SP: Vida, 2008), 2ª ed, p. 187, 190-191.
[4] Idem, 193,196.
[5] Ibidem, 196.
[6] Ibidem, 197.
[7] Ibidem, 207.
[8] Ibidem, 209-210.
[9] “É interessante que mesmo depois da assunção desse sujeito [fragmentado no século XX], depois de Freud, de Niezsche, de Marx, a ideia de deciframento das estruturas permanece. Essa noção da força estrutural da linguagem organizada, que substitui aquela palavra autoral, mantém a noção do sentido intrínseco, imanente. O texto detém sua verdade e a análise será o exercício de simulacro do texto. A reconstrução seguindo certas regras leva à noção de que o sentido é prisioneiro da forma e da estrutura.” Eliane Yunes, Elementos para uma história da interpretação, p.101.
[10] Stanley J. Grenz, Pós-modernismo, p. 224.
[11] Idem, p. 74.
[12] Antes que o diabo saiba que você está morto, Sidney Lumet (direção), 2007, Estúdio: Unity Productions / Michael Cerenzie Productions / Linsefilm, Distribuição: THINKFilm / Europa Filmes.
[13] Este canhestro episódio é narrado por Jerry Bergman, O darwinismo do século XIX e o genocídio da Tasmânia, Folha criacionista, nº 56, março de 1997, ano 26, pp. 21-34. Bergman cita Haeckel, The Wonders of life (New York: Harper, 1905), p. 390 e Charles Darwin, Descent of man and selection in relation to sex (New York: D. Appleton, 1846), p. 182. As citações de ambos os autores são encontradas, respectivamente, nas páginas 23 e 25 do artigo.
[14] Vitor Galdino Feller, A verdade ou a vida?, A Notícia, 30 de Março de 2009, nº 24821, 1º caderno, artigo, p.7. O artigo saiu em defesa do dom José Cardoso Sobrinho, bispo de Olinda e recife, criticado por excomungar uma menina de 9 anos, por ter abortado de gêmeos após ser abusada sexualmente pelo padrasto. O caso gerou protestos internacionais contra a Igreja Católica, a qual foi criticada até pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A despeito disso, as considerações do Padre Feller merecem atenção.
[15] Uma excelente crítica ao relativismo pós-moderno é Isaac Malheiros, Absolufobia no reino do relativismo, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com .
[16] Ver Douglas Reis, O herói que não vencia, capítulo2 de Paixão Cega (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2010).
[17] Em crônica publicada em 7 de Outubro de 1967 no Jornal do Brasil, em Clarice Lispector, A descoberta do Mundo, Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente, org. (Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1999), p. 37.

A VERDADE OU A VIDA - parte 2



A BÍBLIA: VERDADE UNIVERSAL?

Entretanto, a maior crítica à ideologia pós-Moderna não se deve a sua falha em prover um filtro de crenças coerentes, capaz de interpretar a realidade, embora este ponto seja preocupante. Quanto a isso, muitos cristãos são tomados pela influência do pós-modernismo, ainda que desconheçam o significado desse termo. A vida incoerente se reflete na síndrome de Michael, na qual se reduz a crença a uma “ficção útil”, sem relação com a totalidade da vida.
A falta de coerência é crítica, mas o fato de o pós-modernismo advogar a impossibilidade de qualquer meta-narrativa (visão de mundo) corresponder à realidade possui maior gravidade: as narrativas são todas acusadas de proporem uma reconstrução particular em lugar de conhecimento objetivo. Já que todos estamos comprometidos filosoficamente, não podemos justificar com visões particulares objetivamente, do que se segue que a objetividade é impossível.
Por exemplo: imagine alguém defendendo sua crença na Bíblia como Palavra de Deus, alegando que, na própria Bíblia, Deus nos manda confiar em Sua Palavra. Este tipo de defesa se processa utilizando um raciocínio circular (o que se chama em Filosofia de “petição de princípio”) [1].
Você certamente enxerga as implicações desta posição. Se a Bíblia vale apenas para os cristãos, sua mensagem perde seu caráter universal. A própria grande comissão (Mt. 28:18-20) decai em seu sentido, porque não haveria justificativa em se promover uma religião que seja tão boa e necessária quanto qualquer outra. E as afirmações factuais da Bíblia (sobre a Criação, a Queda, a Segunda Vinda) não passam de construções equivalentes a outras afirmações religiosas encontradas em outras crenças. Além disto, é possível interpretar ilimitadamente o texto bíblico de acordo com a opinião do leitor – quantas opiniões houverem, será o número de interpretações distintas. Analisemos estas duas abordagens de forma resumida.
A despeito da alegação de inverossimilhança nos relatos bíblicos, temos um motivo para crer neles: o apoio da Arqueologia, “uma das poucas disciplinas que tratam exclusivamente da realidade – artefatos, edifícios, cidades e terras – fatos tangíveis e tridimensionais que, embora cobertos pelas areias do tempo, dão testemunho de pessoas, lugares e eventos do passado”.
Com efeito, escreve Michael Haesel, especialista em Arqueologia: “Eruditos e historiadores bíblicos que agora enfrentam os desafios do pós-modernismo estão se voltando mais e mais para a arqueologia como fonte principal de informações acerca da história bíblica. Embora a disciplina ainda esteja em sua infância, a arqueologia está começando a preencher os detalhes da grande história bíblica desde seus primórdios. Nessa busca, as reivindicações revisionistas da erudição pós-moderna continuam a ser desafiadas pelos registros das pedras do Oriente Médio.” [2] Por se apoiar na História, o Cristianismo se torna verificável. Quantas religiões possuem suas narrativas corroboradas por fatos arqueológicos bem estudados ou apresentam documentos históricos tão respaldados como a fé cristã [3]?
Quanto à segunda objeção, basta considerarmos que o texto bíblico obedece às regras gerais de interpretação às quais toda Literatura se submete. “Em literatura, um fato só adquire sentido relacionado com o todo que o integra.” [4] Sobre os critérios para interpretar corretamente a Bíblia, o conhecido estudioso da linguagem e romancista Umberto Eco afirma que “Agostinho, em De Doctrina Christiana dizia que uma interpretação, caso pareça plausível em determinado ponto de um texto só poderá ser aceita se for reconfirmada – ou pelo menos se não for questionada – em outro ponto do mesmo texto. É isso que entendo por intentio operis [intenção do texto].” [5] Um estudo da Bíblia em seu contexto histórico, respeitando suas seções, e pautado por comparação sistemática de seus assuntos, levará à uma compreensão exata de suas verdades.
É seguro confiar na Bíblia. Podemos recorrer a ela para enxergar corretamente o mundo e responder as perguntas que temos, em diversas sentidos. Você se sente confuso e cético? Acredita que o lugar da Bíblia é na igreja, mas ainda assim enfrenta dilemas no trabalho, na faculdade, nos relacionamentos?
A solução? Estudando o que o apóstolo Pedro nos deixou, chegaremos à compreensão do que deve ser feito para se alcançar valores pessoais que compensem. Desta maneira, convido você a examinar comigo passagens bíblicas capazes de revolucionar sua vida. Prepare-se para obter as respostas que você julgou serem impossíveis de alcançar.

EXPERIMENTANDO PESSOALMENTE A VERDADE

Ao passo que uma expectativa que não se ajuste à experiência seja fatal para o cristão (o que em síntese, consiste a síndrome de Michael), ninguém está condenado à perpétua incoerência. Deus oferece poder do alto para alinharmos o proceder com a esperança, a mente humana com a promessa divina. Afinal, o “seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e à piedade” (2 Pe. 1:3)!
Apenas uma vida voltada para Deus é satisfatória. No capítulo anterior, vimos que o Cristianismo oferece as melhores respostas sobre o problema do mal, desde uma explicação plausível para seu surgimento, até um caminho para sua erradicação. Mas Cristianismo é muito mais do que vencer o pecado. A fé dos profetas e apóstolos fornece um alicerce para interagir em mundo que se corrompeu.
Para atuarmos decisivamente em prol da vida, precisamos nos submeter ao nosso Criador. E eu me refiro aqui a uma vida separada para Deus – ou, em outras palavras, uma vida de santidade. Somente dentro deste plano consegue-se conciliar a verdade com a vida. “[…] Em vez de agir como um termômetro, apenas refletindo o calor do ambiente, você pode atuar como um termostato, controlando a temperatura do ambiente”, escreve Marcos De Benedicto [6]. Pelo poder dos Céus, somos habilitados a agir eticamente num mundo que se encontra estagnado em um desespero mobilizador.
O Pai Celestial não poupou esforços para nos habilitar à santidade na vida. Seu desejo consiste em inserir cada homem verdadeiramente converso num programa de aperfeiçoamento. Consequentemente, cada cristão poderá participar da natureza divina (v.4), o que se entende como estar em comunhão com Deus e viver dentro de uma perspectiva espiritual. Para transpor a síndrome de Michael é bom começarmos com aquilo que Jon Paulien chama de “conscientização pessoal de nossa posição diante de Deus.” [7]
Por muito tempo, pregadores têm enfatizado o aspecto passivo da vida espiritual. E está correto afirmar que, longe de resultar de esforços ou boa intenção, a vida espiritual somente é possível pela Obra de Cristo. Somos justificados pela fé e nada mais. Entretanto, compete a nós buscar a maturidade espiritual, nos colocando sob a influência do Espírito Santo. A cada dia, eu preciso decidir reservar tempo para avaliar minha experiência cristã, bem como assumir novos graus de compromisso, que aprofundarão minha lealdade a Jesus.
Isto é diferente do legalismo religioso que tende a valorizar as ações humanas em detrimento da operação amorosa de Deus sobre aqueles que não a merecem. Fica claro que, conquanto eu tenha uma parte a desempenhar, isto não resulta na minha salvação, mas na decisão de me aproximar daquele que pode me salvar. É semelhante à criança que, não tendo condições de sair do berço para ir à geladeira e preparar um lanche, pode chorar e chamar a atenção da mãe, a fim de ela lhe dar o que comer. Você e eu podemos chorar para que o Pai celestial aja por nós.
Um livro recente mostra como a Graça de Deus se tornou um infindável “blá blá blá” religioso, ao invés de ser vista como o que é de fato – o favor impagável de um Deus que atende ao homem impotente. O autor compara a Graça a uma bola de futebol chutada de um lado para o outro do campo, dissecada por teólogos e estudiosos. “É um clássico debate em que ninguém ganha.” [8] Contudo, não precisa ser assim. Devemos depender da Graça, mas sem abusar dela. Se há uma parte que nos compete, é justamente recorrer a Graça, com o intuito de crescermos dentro dos propósitos de Deus para nós.
Pedro menciona componentes que devem ser agregadas ao caráter de todo cristão o quanto antes. Note como o apóstolo emprega termos como “diligência” (v.5) e “diligentemente” (v.15) com o objetivo de incutir na mente de seus leitores a urgência da mensagem. O enriquecimento e refinamento do caráter são alvos da visão cristã a serem perseguidos por todos que abraçam a cruz durante o transcurso de sua vida. Para viabilizar esse tipo de busca, se requer uma concepção de Deus como acessível a nós: “[…] Falar com confiança sobre Deus é estar aberto não ao que está acima de nós, e nos é inacessível, mas ao que podemos experimentar aqui e agora.” [9]
Quais os elementos ressaltados na segunda carta de Pedro? São estes:
1. Fé (2 Pe. 1:5): na Bíblia, fé expressa confiança, mas não em algo ilógico ou fantasioso. A fé abraça Deus e o que Ele revela, e tem um toque pessoal – através da fé, temos íntima ligação com Deus;
2. Virtude (v.5): com o sentido de excelência, tem que ver com o segundo passo que se dá depois da resposta de fé ao chamado divino. Somos chamados à semelhança com Cristo, eis o alvo mais elevado;
3. Conhecimento (v.5): o cristão tem que se conhecer para amadurecer na virtude. Ao mesmo tempo, tem de conhecer a Deus através de sua Palavra, o que levará ao conhecimento prático. Sobre o valor do conhecimento, Ellen White assegura que o “o homem iletrado que é consagrado a Deus e aspira a abençoar a outros, pode ser e é utilizado pelo Senhor em Seu serviço. Mas os que, com o mesmo espírito de consagração, tiveram o benefício de uma instrução completa, podem fazer obra muito mais extensa para Cristo. Estão em posição vantajosa.” [10];
4. Domínio próprio (v.6): num tempo em que cada qual segue seus instintos, Pedro nos instrui a exercer o auto-domínio, complemento adequado ao conhecimento. Jamais nos devemos render ao senhoril das paixões, mas nos cumpre dominar os impulsos;
5. Perseverança (v.6): se a luta pelo crescimento requer a dura batalha para nos controlarmos, que isso não dê ensejo ao desânimo – temos de ter fibra para perseverar até o fim;
6. Piedade (v.6): a perseverança se perderia no vazio sem estar entrelaçada com uma autêntica espiritualidade e é nisto que consiste a característica seguinte, a piedade: senso de dever cumprido diante de Deus;
7. Fraternidade (v.7): uma espiritualidade vertical pode descambar para um misticismo ufanista, que isole o crente da convivência com seu semelhante. Por essa razão, Pedro destaca a fraternidade, para nos lembrar que o cristão deve se relacionar bem com Deus, sem olvidar um relacionamento sadio com o próximo;
8. Amor (v.8): finalmente, a vida do cristão será marcada por um amor profundo, muito além do sentimentalismo incongruente a que se nomeia “amor” popularmente. Amor da mais nobre estirpe direcionará a vida do verdadeiro cristão.
Um compromisso pleno com a Verdade propiciará ao caráter agregar estes valores. Você não precisa se sentir um náufrago em um mundo inóspito. A verdade de Deus se encontra acessível àquele que reconhecê-la. Para superar a incerteza pós-moderna, basta apegar-se à proposta divina de uma vida em santidade.
Querido Pai, nosso coração se alegra diante da proposta que nos faze. Dá-nos sabedoria para aceitar a Tua verdade e permitir que desenvolvas nossa vida em santidade. Que o Espírito aprofunde nosso caráter, nos movendo a buscar Sua influência a cada dia. Rogamos-Te, agradecidos, através de Jesus, amém.


[1] J.P. Moreland e William Lane Craig, Filosofia e cosmovisão cristã (São Paulo, SP: Vida Nova, 2005), p. 187. 
[2] Michael Hasel, Os críticos pós-modernos da Bíblia e a arqueologia atual, (2006). Diálogo Universitário, 2006, vol. 18, nº 2, pp. 14-16, 35, disponível em http://dialogue.adventist.org.
[3] O renomado erudito Craig L. Blomberg, em entrevista a Lee Strobel fornece alguns impressionantes dados sobre o Novo Testamento (NT): existem 306 manuscritos unciais (grafados com letras maiúsculas), alguns dos quais remontam ao 3º séc. de nossa época, além de 2856 manuscritos em minúsculas do NT em Grego, além de 8 a 10 mil manuscritos da Vulgata (tradução latina feita por Jerônimo), mais de 8 mil manuscritos em etíope, eslavo antigo e armênio, totalizando cerca de 24 mil manuscritos. Nenhum livro antigo possui um número de cópias tão elevado, alguns bem próximos da data da composição. As variações são de importância secundária: temos 99,5% de prova da confiabilidade do texto. Lee Strobel, Em defesa de Cristo: um jornalista ex-ateu investiga as provas da existência de Cristo (São Paulo, SP: Editora Vida, 2001), pp.80-81, 85.
[4] Donald Schüler, A construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração (Porto Alegre:2004, RS: L&M editores), p. 11. O professor Schüler, corajoso tradutor de Finnegans Wake, faz esta declaração no contexto de sua disputa contra Denys Page relacionada à autoria de Homero no Canto IX do poema Ilíada.
[5] Umberto Eco, Os limites da Interpretação (São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 1999), 1ª ed., p. 3. Cf.: “Como provar uma conjectura sobre a intentio operis? A única forma é checá-la com o texto enquanto um todo coerente. Essa idéia também é antiga e vem de Agostinho (De Doctrina Christiana): qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser. Neste sentido, a coerência interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis.” Umberto Eco, Interpretação e Superinterpretação (São Paulo, SP: Martins fontes, 1997), p. 76.
[6] Marcos De Benedicto, O brilho da Vida: experimente o poder de Deus em seu dia-a-dia (Tatuí, SP:Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 77.
[7] Jon Paulien, Deus no mundo real: segredos para viver o cristianismo na sociedade moderna (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 67.
[8] Charles R. Swindoll, O despertar da Graça (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2009), p. 18.
[9] James Houston, Meu legado espiritual, p. 71.
[10] Ellen White, Parábolas de Jesus (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1997), 10ª ed., p.333.