Quero
começar com uma parábola: imagine três meninos numa jangada, levados pela
correnteza de um rio para uma grande queda d’água. O primeiro acredita que os
bombeiros da cidade serão mobilizados e darão conta de socorrê-los. A convicção
parte da experiência de já ter conhecido pessoas que foram resgatadas por eles.
O segundo dos garotos, olha com frieza, divertindo-se sarcasticamente com o
espanto dos colegas. Ele parece muito racional. Sabe que estão a poucos metros
da morte e se entretém calculando em quanto tempo encontrarão o fim. Sua impassibilidade
esconde seu medo. E o terceiro dos ocupantes do barquinho? Ele não acredita nos
bombeiros, mas imagina que o coelho da Páscoa ou o Papai Noel virão salvar o
trio da tragédia.
Eu afirmo que os três representam perspectivas
diferentes, que de forma alguma se equivalem. A diferença entre eles se
relaciona não à iminência da tragédia, justamente o ponto em que concordam.
Chamemos ao primeiro menino de representante de uma esperança possível. Ele não
conhece os bombeiros, mas tampouco os inventou. Ele sabe deles pelas evidências
de suas ações na vida de outros.
O segundo companheiro do barco ilustra o desespero
não-intervencionista. Sua concepção se restringe à admissão da tragédia, sem
possibilidade de auxílio externo. A única coisa que salvaria os meninos seriam
seus próprios esforços, os quais, infelizmente, não seriam suficientes.
O último ocupante da jangada representa a esperança
absurda. Diferente dos dois primeiros, que se baseiam em opções racionais e
prováveis, o menino que aguarda pelo Papai Noel não faz outra coisa senão
recorrer à fantasia. Ora, a questão não é se o ilustre velhinho do Pólo Norte
já resgatou ou resgataria alguém; afinal, Papai Noel não existe! Apenas por um
devaneio essa saída seria aceita.
No fundo, entre o segundo menino e o terceiro, as
diferenças não são profundas – afinal, o terceiro menino tem consciência de que
Papai Noel não existe e de que irão morrer, mas procura subterfúgios pueris
para não admiti-lo. A única esperança real é a possível, baseada em evidências de
situações concretas. Não importa quão absurdo seja afirmar que pássaros rosas
voaram pela Avenida Paulista transportando um trapezista; se o evento foi visto
por uma série de pessoas, que pudessem ter seus depoimentos reunidos e
contrastados, provando ser unânimes nos pontos essenciais (e isso sem estarem
previamente combinadas ou coagidas de alguma forma), seríamos obrigados a
concluir: pássaros rosas voaram pela Avenida Paulista transportando um
trapezista! Apenas na ficção (e comumente na péssima ficção) a lógica rege os
acontecimentos; na vida cotidiana, o absurdo pode ser real, desde que produza
um rastro inequívoco de sólidas evidências.
Infelizmente, a sociedade tem abrigado cada vez
mais um número de pessoas que seguem a cartilha do terceiro menino. A esperança
absurda vem dando nova configuração à crença no terceiro milênio. Prova disso é
a matéria que estampa a capa da mais recente edição da revista Época,
intitulada Em nome de Deus [1]. O articulista serve-se das
ideias de Karen Armstrong para oferecer uma defesa da religião nos moldes da
esperança absurda.
Ex-freira e dedicada aos estudos de manifestações
religiosas, Armstrong tem conceitos muito próximos aos dos teólogos liberais.
Ela própria se auto define como “monoteísta free-lance”,
para deixar claro que não está engajada em nenhum movimento religioso
específico [2]. Em seu livro, The case of God: what religion really
means (algo como: Em defesa de Deus: o que a religião realmente
pretende) procura contra-atacar as iniciativas dos neoateus. “[…] Para Karen, o
engano comum a ambos [neoteus e fundamentalistas religiosos] é analisar os
textos sagrados em sua literalidade.” [3]
A posição da estudiosa é interessante;
primeiramente, ela nivela os textos sagrados, como se todos fossem produzidos
dentro de uma mesma mentalidade, ou mesmo representassem modelos equivalentes.
É claro que poucas das grandes religiões reivindicam ser históricas; dessas,
nenhuma possui tanto respaldo da História às suas afirmações quanto o
Cristianismo. Um outro ponto: enquanto alguns discutem se há evidências para se
crer ou não na Bíblia, Karen desmerece esse questionamento; para ela, é
possível a complementaridade entre fé e razão porque tais coisas se referem a
facetas diferente da Humanidade [4].
E qual seria o papel da religião? “[…] ‘A religião
não existe para nos explicar a origem do Universo. Esse é o papel da ciência.
[…] Religiões nos ajudam a lidar com os aspectos da vida para os quais não
existem respostas fáceis: a morte, a dor, o sofrimento, as injustiças da vida e
as crueldades da natureza.’” [5] Assim, não causa surpresa que Armstrong defina
fé como “fonte de fortalecimento espiritual” [6] e o próprio Deus como “o
mistério que foi, é e, por muito tempo, ainda será.” [7] Ou seja: a esperança
que ela nos oferece é esvaziada de seus fundamentos lógicos [8]. Embora o
Cristianismo se oponha fortemente ao racionalismo (tendência de pensamento que
somente admite verdades via empirismo e dá plenos poderes à razão autônoma),
ele ainda é extremamente racional e dispõe de evidências para se firmar.
Todavia, Armstrong reduz o Cristianismo (e qualquer
fé em geral) a uma esperança absurda, baseada em porções míticas, que oferecem
um consolo que pertence à categoria das expectativas do terceiro menino de
nossa história inicial. No fim, tanto faz no que se crê, porque nenhuma crença
pode se definir como verdadeira.
Em meio a tudo isso, a religião cristã perde seu
potencial transformador. Como definiu Luc Ferry: “[…] a religião se tornou uma
opinião particular entre outras, uma crença pessoal entre outras e que ela não
estrutura mais o espaço público e nem é mais a matriz da lei.” [9] Por outro
lado, os efeitos da atuação do Cristianismo na História perduram até os nossos
dias, mostrando que precisamos dessa cosmovisão poderosa para oferecer não
apenas esperança, mas esperança possível.
Com efeito, Vásquez pondera que “o cristianismo deu
aos homens, pela primeira vez, incluindo os mais oprimidos e explorados, a
consciência da sua igualdade, exatamente quando não existiam as condições
reais, sociais de uma igualdade efetiva, quando – como hoje sabemos – passa
historicamente por uma série de eliminações de desigualdades concretas
(políticas, raciais, jurídicas, sociais e econômicas)”, embora os cristãos
medievais não seguissem a proposta cristã de forma integral [10]. Talvez, Deus
precise menos de quem o defenda, mas de quem viva como “sal da Terra” e “Luz do
mundo” (Mt 5:13-16), consciente de que a Bíblia não é uma opção, porém a única
opção; não uma verdade, porém a Verdade (Jo 17:17).
[1] José Ruy Gandra, “Em nome de Deus”,
Época, edição no 605, 21
de Dezembro de 2009, 88-92. De agora em diante, DND.
[2] DND, 90.
[3] Idem, 91.
[4] Idem.
[5] Idem, 91-92.
[6] Idem, 92.
[7] Idem.
[8] Armstrong mesmo admite: “[…] O auge da
experiência religiosa consiste em alcançar um estado de reverência, mesmo
sabendo que Deus não pode ser traduzido racionalmente.” Idem. É claro que a
razão tem seus limites, o que é muito diferente de legitimar o estabelecimento
completo do irracionalismo. Ver ainda Douglas Reis, “A racionalidade e suas travas”,
disponível em
http://questaodeconfianca.blogspot.com/2008/09/racionalidade-e-suas-travas.html
.
[9] Luc Ferry e Marcel Gauchet, Depois da religião: o que será do
homem depois que a religião deixar de ditar a lei? Rio de Janeiro. DIFEL, 2008, 22.
[10] Adolfo Sánchez Vázquez, Ética. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 2008, 277.
Nenhum comentário:
Postar um comentário