segunda-feira, 30 de novembro de 2009

NOVEMBRO JÁ ENTROU PARA A HISTÓRIA



Terminou-se mais um mês, e fica-se a impressão de que, até agora, tivemos a oportunidade de contemplar onze velocistas em atividade, cada qual mais ligeiro do que o predecessor. Acredito que quem estabelecerá o record de velocidade será Dezembro, o mês mais próximo ao desempenho de um queniano em corrida de São Silvestre (a qual, por sua vez, acontece justamente em Dezembro!).

Seja como for, este foi mês decisivo para o Questão de Confiança: novas abordagens, um novo design, e mais textos inéditos. Para os leitores que manifestaram sua aprovação ao conto Não há lugar para Jocelyn, trazemos a público um novo texto: Prazo Vencido.

Já que estamos falando em blog, seria extremamente egocêntrico falar apenas deste blog; assim, aproveito a deixa para felicitar o Nota na Pauta, que fez 3 anos de existência, sempre contribuindo para subir o tom (com perdão do trocadilho) nas discussões sobre música sacra. Um forte abraço a você, leitor, responsável pelo crescimento deste blog. Nosso próximo encontro será na primeira segunda-feira do mês, dia 7 de Dezembro. Até lá!

PRAZO VENCIDO

A cada semana, temos publicado uma história Acompanhe hoje o relato de Carlos.

A noite desnudava seus milhões de sorrisos, invariáveis sobre a escuridão. Apenas um apartamento no bloco tem luz. Não que se esquecesse de apagá-la. Carlos Z precisa dela, desesperadamente. Debruçado, ele aproveita a luminária para conferir a arte-final. Não, o braço não está parecendo humano, mas apresenta o aspecto de uma massa disforme, como um macarrão que cozinhou demais. Com a curva-francesa em mãos, define melhor e – pronto, temos um braço! Suas mãos suam, espreme os olhos, que negócio cansativo, minucioso ao extremo até, embora faça parte de um processo necessário, principalmente tendo em vista o resultado final e o prazo.

Com o outro estúdio teve problemas. A bem da verdade, ele ainda atuava como um amador, estava “verde” demais. Queriam algumas sequências para uma animação em molde tradicional. Ele e o Manda-Brasa pegaram o trabalho com prazo apertado. E não deram conta. Quando quiseram negociar uma nova data de entrega, o estúdio já contratara outros free-lances.

Desde aquela época, restara ilustrar livros infantis: dragões, elfos, animais e escolas… Faltava algo grande.

A luz da luminária dava indícios de que queimaria em breve. Procurou na escrivaninha da sala a lâmpada reserva. Hum… onde estaria? O carpete não está limpo, dá para sentir o pó subindo, o que não chega a combinar com sua rinite. Ei, o que é isto?

Um álbum? Deu uma olhada superficial. Abriu, finalmente. Fotos dos amigos. De quando eram? Via e lutava para se recordar. Na verdade, as fotografias vinham de várias épocas e lugares, formando um mosaico de fases e afetos, de vivências e convivências. Campings, feriados passados na casa dos tios, em Mogi Mirim, aquela ida ao parque de diversão com os amigos, passeios de formatura na escola, e tantos outros acontecimentos. Parou alguns minutos, disperso. Algumas fotos estavam distantes, sem foco ou escuras demais. Outras estavam em boa condição. Se soubessem, não teria gasto tanto tempo buscando referências para seu trabalho em revistas. Alguma coisa poderia aproveitar dos próprios álbuns pessoais. Gastou um tempo olhando outros na mesma estante. Quando olharia o terceiro, acabou se deparando com a lâmpada que fora procurar há vinte minutos.

Voltou para o estúdio improvisado. À esquerda da porta, um quadro solitário lhe chamou a atenção. Lia-o sempre, ao entrar ali, e parecia se encher de motivação. Ele mesmo o desenhara: constituía-se de uma mão segurando um pincel, enquanto desenhava sobre a prancheta. Abaixo, a frase: “cada um deve ocupar-se na cidade de uma única tarefa, aquela para a qual é mais bem dotado por natureza". Trocou a lâmpada queimada e voltou à labuta. Eram três horas.

Terminou a menos de uma hora para a alvorada. O sable da noite se banhava de tons pastéis e de um grená discreto. Adormeceu ouvindo Josh Groban cantando Vincent.

O relógio despertou-o às nove e meia. Um zumbido lhe incomodava o ouvido e a respiração era dificultosa. Tomou banho enquanto pensava em tirar um tempo para aspirar o pó do carpete. Saiu com uma torrada dormida na boca;a matisgação se revezava com os instantes que assobiava Aquarela, de Toquinho.

Sentia-se estranho. Usava uma camiseta branca, na qual uma Monalisa multicolorida se estampava, quase de todo encoberta pela jaqueta de couro. Usava uma calça de couro, que a Pamela lhe dera. Por onde ela estaria agora? Ficou pensando nas fotos com a moça, vistas no segundo álbum; seu rosto redondo coberto pelos cabelos desfiados, de um preto bem brilhoso. Não conseguia se lembrar desde quando cultivava pela garota aquele tipo espontâneo de afeição. Provavelmente, passou a sentir isso quando a conhecera. Meditava nas recordações associadas com Pamela, se esqueceu do acanhamento inicial, causado por seu figurino inadequado a um dia de sol.

Depois de sair do metrô, Carlos Z andou três quarteirões até chegar ao estúdio. Ao passar pela imponente porta de vidro na entrada, o ar condicionado refrescou-o. O lugar estava abarrotado de gente. Mesmo assim, não precisou ficar por muito tempo sentado no banco de espera até que o recebessem.

O diretor artístico, Seu Paiva, apareceu sorridente, dando-lhe um abraço. Seu Paiva tinha um currículo invejável como desenhista de pôsteres e capas de revistas. “Tudo certo com o material, né?”, iniciou o diretor, com sua voz roufenha. “Claro, claro. Terminei as últimas cenas durante esta madrugada. Só um momentinho…” Carlos abriu uma imensa pasta de plástico, contendo diversas folhas de papel vergê, exibindo o history-board de um filme. Era o próximo lançamento de um grande estúdio hollywoodiano. A história se passaria em São Paulo. Depois de acertarem as locações com as autoridades da cidade, os produtores pensaram em convidar um artista brasileiro para desenhar history-board. Dali a um mês começariam as filmagens.

Seu Paiva tirou os óculos do bolso e examinou as páginas em silêncio. Não era um homem muito expansivo. Porém, os músculos de sua face pareciam indicar aprovação. Foi bem sucinto: “Perfeito!” Deixou o trabalho sobre a mesa e conduziu o artista até o setor financeiro. Carlos saiu dali feliz pela recompensa da noite insone. Teria que retornar ao metrô e voltar para seu apartamento. Poderia até escolher um daqueles restaurantes do centro e almoçar bem, para fugir da rotina de penúria. A ideia perambulou pela cabeça dele, até que se decidiu por uma visita a uma lanchonete nas cercanias, o que era, infinitamente, mais econômico.

Entrou em certo estabelecimento, localizado em uma esquina movimentada. As mesas eram brancas e laranjas e a decoração tinha imagens de super-herois. Até mesmo os nomes de lanches e bebidas remontavam às histórias em quadrinhos. Carlos gastou um tempo maravilhado, parecia voltar aos cinco anos, contemplando atentamente a riqueza dos detalhes dos personagens. Reconhecia o estilo dos desenhos, muitos decalcados do trabalho de artistas de renome. Quando a garçonete apareceu, pediu um duende verde para beber e um Mutano sem cebola, acompanhado por batatas fritas. Seus olhos estavam vermelhos e tinha uma leve tontura. A noite mal dormida parecia tê-lo debilitado. Quando trabalhava desenhando um fanzine com Manda-Brasa e André J, ficara muitas vezes acordado por madrugadas a fio, sem dormir antes de concluir as páginas da história. Tinha vontade de ligar para o Manda-Braza, um amigo com quem aprendera tanto! Mas perderam o contato há uns dois anos, e diziam que ele estava na França, publicando suas histórias em uma conceituada revista. Na França – quem diria! O velho parceiro comendo escargot e curtindo a sombra da Torre Eiffel! Como a trajetória das pessoas ganha contornos inesperados, parecendo fugir daquilo que elas estavam destinadas a ser – isto é, se de fato existe um destino.

As considerações ainda lhe perseguiam, ao adentrar novamente no Metrô. Sentou-se à esquerda, na frente de uma senhora elegantemente uniformizada. Tomou um bloco de desenho e passou a rabiscar. Adquirira o costume de fazer croquis dos passageiros a partir de quando lera que o desenhista Katsuhiro Otomo tinha esse costume. Ficava intrigado com todas aquelas pessoas. As secretárias, de mangas puídas e sapados besuntados. Os estudantes, que viajavam o tempo todo com fones de ouvidos. Os aposentados, com aquele ar distraído, a ler um jornal, conversar ou simplesmente contemplar o trajeto pela janela. Quantas pessoas se encontravam ali todos os dias, sem travarem qualquer conhecimento com quem se assentava no banco ao lado. Como diferiam em assuntos como política, religião, futebol, tendência sexual, jeito de se vestir, e em tantas outras áreas. Para onde iriam elas agora? Que fariam daqui a trinta minutos? Viveriam até o final do mês? Como às vezes sentia vontade de pesquisar a vida de algumas pessoas! Aquela senhora ali na frente: porque uma mulher já de cãs esbranquiçadas haveria tatuado um dragão no ombro? Quem seria ela: uma roqueira convertida a alguma igreja evangélica? Uma professora radical? Ou ainda, uma dessas pessoas excêntricas, que sai por aí viajando, atrás de experiências inusitadas? Quantas possibilidades surgiram por causa de um detalhe curioso – mas o que dizer das centenas de pessoas que estavam ali, no mesmo transporte? Seria impossível encontrar um professor universitário, um vendedor bem-sucedido, uma escritora de suspenses, um filósofo ou uma jogadora inveterada?

Carlos sentia-se oprimido quando tais curiosidades lhe sobrevinham, porque não podia responder nada daquilo. Mas tinha a impressão de que a vida não diferia muito de um grande roteiro, escrito sabe-se lá se por Deus ou pelo próprio homem, ou até mesmo pelos dois, por que não? Um roteiro com orçamento curto, pouco tempo de filmagem e com muitos atores. Essa concepção suscitava outro pensamento: para que viver? Apenas em nome de um espetáculo, ou por alguma causa mais nobre, como ajudar as crianças pobres da Índia ou os desabrigados na Ásia?

Coçou os olhos. Cochilava entre as dúvidas. Olhou com cautela para o cheque, dobrado e posto na carteira. Estava ali, sorrido para ele. Talvez a vida lhe acenasse, ou poderia ser esta mais uma oportunidade frustrada. Como saber? Era mais fácil traçar alguma coisa com lápis do que esboçar o próprio futuro. Estava quase chegando sua estação. Pegou o celular e discou. Atende, atende. Finalmente, estava falando com Pamela!

A NOVA DO JAPONÊS

Nene: ela realizou o sonho de toda mulher, mesmo não sendo exatamente uma mulher

Tan-ram-ram; tan-ram-ram; ta-ram-tan-tan; tan-ram-tan-tan; tan-ram-tan-tan; tan-ram-tan-tan; tan-tan-tan-ram-tan-tan-tan... Enquanto provavelmente essa música tocava, Sal9000 (pseudônimo) se emocionava. O rapaz, um típico nerd, daqueles que usam óculos a tira-colo, trajava terno branco, alguns números a mais do que o seu, acompanhado pela gravata com nó frouxo.

Os convidados e o padre se faziam presentes. Parecia uma cerimônia convencional, se não fosse pela noiva. Sob grinaldas postiças, estava a fictícia Nene Anegasaki, personagem do jogo Love plus. O relato heterodoxo apareceu no site da revista Época.

De fato, a tecnologia é capaz de proporcionar milagres, principalmente no campo da comunicação e, mais particularmente, no caso dos relacionamentos pessoais. Hoje, os sites que mais crescem são os de relacionamento (especialmente no Brasil), que permitem interação, exibição de perfis, encontrar novos amigos e reencontrar aquele seu amigo da pré-escola.

Ao mesmo tempo, muitas vezes a tecnologia fomenta o fim de relações saudáveis, através da presença sufocante da pornografia na Web e da falta de segurança no contato com desconhecidos, isso sem falar na traição virtual, problema cada vez mais frequente, e que tem afetado as relações conjugais.

Hora ou outra, surge uma anomalia internética, para nos fazer repensar o mundo em que vivemos. Talvez falte um debate mais amplo sobre tecnologia e ética. Como talvez isso não aconteça numa escala mais ampla, ao menos os líderes cristãos poderiam dialogar dentro de suas comunidades, a fim de instruir e repensar malefícios e benefícios do casamento entre homens e máquinas - uma união que não precisa ser tão literal como a de Sal9000 com Nene, mas que pode ser feliz.

Leia também:

QUEM É SUFICIENTEMENTE JUSTO?

No mês de Outubro, o Pr. Daniel Fritoli realizou uma semana de oração em nosso colégio. Os alunos e funcionários vibraram com os temas apresentados.

Em um dos dias, o Pr. Fritoli apresentou um vídeo, o qual estou postando aqui. Seus ensinamentos são bem evidentes, mas valem uma boa reflexão


QUANDO O DINHEIRO FALA MAIS ALTO

Aproveitando a lição desta semana, aqui vai um soneto, também parte de minha contribuição à obra Poetas Adventistas do Brasil (Certeza editorial). Originalmente, não tem título (da forma como publicado abaixo), embora aparecesse na obra apresentado como "Balaão".

Ouro em grãos. Ignora o Céu um vidente falho.
Rasga o breu veia lilás. Em Pitru é dia.
Animais. Ocre o ar se faz. Galope e farfalho;
E é tão cediço, por sua teimosia
.

Ouro tem Moabe – quer agouro e trabalho…
Vez a vez, a irracional mula se desvia
Do que o olhar ignora, mas que interrompe o atalho;
E atrai a bronca por parecer vadia.

Entre seu amo e o clarão de um gume, argumenta
Com calor – quem creia ser a mesma jumenta?
Só então ao Anjo ele vê, após vê-lo a mula!

Vê que igual à mula a rés vai do que lhe instiga
(O ouro com as rédeas vis da ganância antiga)
Ou à fé rende a visão – E o ouro lhe estimula!…

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PRÓXIMO ENCONTRO


Antes de dizer "até a próxima", cabe a última nota da semana: recebi uma cartinha mal-criada, destes dissidentes que rondam o Brasil. O remetente era um certo Fernando Ramos Pinheiro Calvo. Não compensa gastar meu tempo corrigindo seus erros de conduta, ou mesmo, suas agressões à Língua Portuguesa.

Em verdade, a missiva não se dirige contra mim; trata-se de uma destas iniciativas insolentes de se criticar os administradores da igreja, com um espírito que não seria justificável, por maior que fossem as razões iniciais. Entretanto, arrisco-me a dizer que não há, de fato, razões, somente o espírito de insubordinação, o qual caracteriza toda rebelião, desde a primeira, encabeçada por Lúcifer. E se o arqui-inimigo achou motivos para criticar o próprio Deus, não seria surpreendente que aqueles que têm um espírito como o dele não se contentem com líder algum.

Acho que certas pessoas aboliram o capítulo 18 de Mateus de suas Bíblias - do contrário, como explicar a falta de sabedoria em lidar com crises ou com aquilo que julgam pecaminoso em um irmão? Jesus não nos ensinou a publicar erros alheios, mas a corrigir os errados, e com amor. Qualquer "documento" produzido pelos ex-membros insatisfeitos não me parece lá muito amorável...

Feitas tais considerações, marque aí: na próxima segunda-feira, dia 30, teremos um novo encontro. Eu o espero neste mesmo endereço; abraços.

CULPA NA INDULGÊNCIA

“Mas há culpa quando as pessoas, que vivem de maneira diferente dos maus e aborrecem a sua conduta, são todavia indulgentes para com os pecados dos outros quando os deviam corrigir e exprobar.”

Santo Agostinho, “A cidade de Deus” (tradução: J. Dias Pereira, Lisboa, Portugal: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), volume 1, p.122, IX.

NÃO HÁ LUGAR PARA JOCELYN



Enrico estacionou o sedan preto que conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório. Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola, segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima, tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.

Enrico estacionou o sedan preto que conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório. Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola, segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima, tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.
Então, era isto! Desrespeitado em seu próprio lar. Jocelyn estava ali, conversando com a mãe. A moça mostrava-se inchada, vermelha, com aspecto descuidado, muito além do desleixo adolescente que cultivava. Suas roupas largas e o cabelo desgrenhado quase apagavam a impressão favorável que os olhos azuis deixariam sobre quem a conhecesse. Ela o viu e, como uma criança apanhada em uma ação errada, buscou segurança no olhar da mãe. Isadora era bem diferente de Jocelyn. Era morena e franzina, com manchas salpicando o pescoço longo, o qual lhe conferia um ar indisfarçavelmente esnobe. Naquele momento, porém, tinha franqueza no semblante, num gesto de solidariedade à filha, abrindo-lhe um sorriso encorajador.
Enrico estancou à porta do quarto, talvez buscando palavra. Jocelyn trazia marcas de choro recente no rosto e ele, um homem atento, logo o percebeu. Bufando, por fim, abandonou a decisão de falar algo. Sentia que não valeria o esforço. Foi direto ao escritório, lembrando-se subitamente do que viera fazer em casa.
O documento se achava à mão. Tomou-o e afluiu para a escada. Seu vulto furtivo foi seguido por Jocelyn, agora em pé, desconcertada, enquanto dirigia-se à saída do quarto da mãe. Ao cruzar a porta, seguiu-a a mãe. “Não posso fazer nada, pai. Você não compreende, caramba?” esbravejou pelo corredor. Chorava de forma doída.
O pai fez-se de surdo, apressando a passada no momento em descia a escada e se dirigia ao quintal. Isadora persignou-se. Abraçou sua menina por trás, beijando-lhe docemente o ombro esquerdo, sobre o qual pousou o rosto com delicadeza. Apoiada no corrimão, Jocelyn ouvia a porta bater. Seu pai se recusava a lhe dirigir a palavra – e isso era mil vezes pior do que quando lhe insultava.
Enrico já cruzara muitos quarteirões e chegava ao estacionamento. Ao regressar à firma, um estranho torpor lhe sobreviera. Sua mente flanou por frivolidades mesquinhas, as quais costumava evocar, a título de dispersar os sentimentos. Uma amenidade impostora dominava seus gestos, à medida em que usava o elevador. Chegara mesmo a sorrir para os colegas que subiam com ele para o mesmo andar.
Em pouco tempo, sentava em sua poltrona e o trabalho tinha sua atenção. Não demorou, porém, até que o celular tocasse. Conferiu e o número na tela era o de sua residência. Um desânimo lhe percorreu o corpo, estremecendo a medula, a costela, as axilas, tudo, tudinho. Bem que queria evitar desgastes!… Já deixara claro o que pensava de divórcio, ele, criado em um lar cristão. Não podia concordar com uma falha como aquela. Após vários toques, atendeu. Na voz estampava a indisposição. Havia um atenuante: era Isadora na outra linha. Ouviu sobre sua obrigação paterna; todavia, concordava formalmente, de forma quase sincronizada com as pausas da interlocutora. A mente? Ora, a mente simplesmente não estava na conversa, apenas a voz. Isadora percebeu que sua desatenção indicava irredutibilidade crônica. A conversa se encerrou com um desalentador “Assim que puder, converso em particular com você”, a única frase completa que ele pôde dizer em toda a conversa. Aliás, o diálogo rendeu pouco, e Isadora não queria parecer sentimental ou apelativa. Deixou para chorar depois que desligasse.
Enrico saiu mais cedo do trabalho. Recusou um ou dois convites para sair com os amigos. Embora não quisesse voltar para casa, queria, acima de tudo, permanecer só. Saiu pelas lojas do centro, em direção a um parque. O sol diminuía em intensidade, embora a tarde se conservasse iluminada e agradabilíssima. Ele comprou um jornal que mal leu. Sentou-se em um banco. Sentia-se ridículo por perder tempo ali, parado, absorto em seus dilemas particulares. Nunca quisera aquilo. Sonhara com uma família grande, muitos filhos e uma casa espaçosa. Tirou um cigarro e ascendeu. Olhou para os prédios antigos, os quais abrigavam comércios de roupas e brinquedos. Mesmo sendo época de Natal, os enfeites muito discretamente se infiltravam nos fios elétricos e grades. Luzes pequenas e nada atraentes. O cigarro consumia-se mais rápido do que conseguia aproveitar, consumido por um dissabor que não poderia compensar. Deixou o jornal no banco e saiu, refletindo em como o centro da cidade parecia menos alegre do que em sua juventude. Tossia um pouco, porque não fumava tanto quanto nessas últimas semanas, desde que soube.
 “Uma ajuda, irmão, por favor.” Sequer pensou antes de abrir a carteira e dar a única nota de vinte para um transeunte maltrapilho que lhe surpreendera na esquina. Se Isadora o visse, seria censurado. Ela diria que caridade se deve mostrar primeiro aos de casa. Até esboçou um sorriso, imaginando a expressão da mulher dizendo aquelas palavras. Mas ela não entendia? Não poderia fazer aquilo, de jeito nenhum! Quer dizer, como aceitar que ela voltasse? Não, era errado e ponto. Homem e mulher foram feitos para viver um com o outro. Ele criou sua Jôce dentro de um padrão moral. Por isso os jovens de hoje estão perdidos – não sabem o que seja moral, bons costumes, decência. Então é assim? Casa, não dá certo, e daí voltam os dois, cada qual, para o lar dos pais?
O cigarro chegava ao fim. Antes, automaticamente puxou outro da cartela, e acendeu com aquele que terminava. Deu uma tragada funda. Era hora de voltar.
Chegou perto das sete da noite. Roberta já terminara o expediente e, por questão de minutos, não a pegara fechando o portão. Teria dado uma carona para ela até o ponto. Chegou a permanecer no carro, até o segundo cigarro acabar. Colocando uma bala de menta na boca, entrou em casa, sem alarde. Pelo silêncio, intuiu que Isadora estava só.

Sentou-se no sofá e assistiu o noticiário, enquanto bebericava a última cerveja da geladeira. A ansiedade o apertava. Quando seria abordado? Como se defenderia? Chegou mesmo a adormecer no sofá, antes de se decidir por levantar e tomar um banho. Que dia complicado!
Ao entrar no quarto, viu Isadora. Falaram-se cordialmente sobre a rotina, de forma sucinta e ordinária. Saiu do chuveiro e a mulher já se deitara, lendo O caso dos dez negrinhos. Ele pôs o pijama e deitou-se, simulando um bocejo. Ela, entendeu, marcou o capítulo e apagou o abajur. Enrico dormiu sem saber que a filha tinha se arranjado no apartamento de uma amiga de faculdade.


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

SERÁ AMANHÃ...


...o nosso próximo encontro. Prepare-se. E divulgue as matérias de sua preferência; vamos ampliar a rede de amigos de confiança!

Recebi na última semana um e-mail, expressando gratidão por receber o texto Quando o deserto se aproxima. A pessoa que agradecia contou que repassara a postagem para os colegas de trabalho e demais contatos. Fiquei impressionado com a iniciativa. E digo que os textos postados aqui servem justamente para divulgar o Evangelho e alcançar o maior número de pessoas.

Desta segunda-feira, destaco o texto escrito pela Jéssica, uma aluna, a qual elaborou um belo trabalho de pesquisa e argumentação. Empolgo-me ao ver jovens dedicando-se para Cristo (ei, também não sou velho! Quis dizer "outros jovens"). Confira e veja que não se trata de exagero de um professor orgulhoso de seus alunos. Mas ainda haverá mais novidades para esta semana.

Dito assim, ficamos de nos encontrar amanhã. Até.

ANÁLISE DA ENCÍCLICA NA MINISTÉRIO


A Revista Ministério, voltada para pastores e obreiros, publicou, em sua edição de Novembro/Dezembro, minha análise da última encíclica papal, a Caritas in Veritate. Na carta apostólica, o papa Bento XVI afirma que o mundo precisa de uma altoridade moral para gerenciar o processo de globalização. Leia na íntegra a análise da encíclica aqui e aqui.

QUADRINHOS: JANELA PARA UMA SEXUALIDADE DISTORCIDA

O Comediante: personagem amoral de Watchmen

Maurício de Souza chega aos cinquenta anos de carreira disposto a renovar seu público. Prova inequívoca disso é a empreitada da Turma da Mônica Jovem, adaptação ao estilo mangá de suas criações mais conhecidas. Mas, a exemplo dos quadrinistas americanos, o maior nome das HQs tupiniquins está de olho em outro nicho: o público GLS.

A iniciativa está agregada ao contexto das histórias da Tina, reformuladas e voltadas atualmente para o público jovem adulto. Na 6ª edição da nova revista, surge um novo componente na trama, um rapaz conhecido como Caio, já definido como melhor amigo da Tina. Apesar do ciúme do namorado da moça, Tina e Caio se apressam em explicar que não têm nada, fora a amizade. Caio afirma até ser comprometido e aponta para outro rapaz! A história é maliciosamente intitulada "O triângulo da confusão". A notícia foi veiculada no G [1] .

Recentemente, a Batwoman (distinta da Batgirl), outra personagem tradicional que entrou de vez no mundo GLS, foi definida como uma socialite que namora uma ex-policial.[2] A tendência aponta para o surgimento de novos personagens gays, tanto nos quadrinhos como nas telonas. Porém, como tudo isso começou?

Dos anos 1980 para cá, a sensualidade passou a desfilar nas histórias de super-heróis de forma aberta, a seguir desembocando em um erotismo bizarro, visível desde as roupas coladas que revelam as formas físicas das heroínas, até situações de coerção sexual, envolvimento erótico ou linguagem obscena. Em Watchmen (que voltou ao estrelato graças ao filme recente), por exemplo, não faltam referências a conflitos sexuais e constrangedores, como o momento em que o Comediante mata a sangue frio uma vietnamita que o feriu, ao vê-lo recusar-se a assumir o filho deles; ou a declaração de que o envolvimento do Dr. Manhattam com a jovem Spectral se deu quando a moça era adolescente, cabendo a acusação de pedofilia, feita dentro da trama por Janey Slater, ex-namorada de Manhattam.

Evidentemente, a década de 1990 viu uma exacerbação da sensualidade, principalmente promovida pela companhia Image Comics, fundada por artistas que fizeram fama nas gigantes Marvel e DC Comics - as quais, por sua vez, seguiram o "fluxo", promovendo uma considerável redução dos uniformes de suas heroínas. Um exemplo é a versão "turbinada" da Mulher-Maravilha, desenhada pelo brasileiro Mike Deodato Jr. O mesmo Deodato desenhou Glory (Image) e Elektra (Marvel).

Sendo que a distorção da sexualidade ganhou tanto espaço nos quadrinhos, não era de se estranhar que comportamentos sexuais não-convencionais figurassem nas suas páginas cobertas por nanquim. O que pode ser pior do ponto de vista da moralidade? É verdade que quadrinhos eróticos, como Valentina e Druuna, tiveram alcance sobre alguns leitores. De pior qualidade, apenas As Meninas Perdidas, criação de Alan Moore (o mesmo que idealizou os Watchmen), obra que defende toda e qualquer expressão sexual, inclusive a pedofilia e o sexo bestial (entre homens e animais).[3]

Nenhuma dessas obras, porém, teve alcance tão grande como as novas produções, que igualmente postulam a depravação moral, direta ou indiretamente. O acesso a esse material contamina a imaginação dos jovens e os acostuma ao prazer barato, em que o estímulo visual incentiva a pornografia, desconfigurando a beleza e complexidade do relacionamento sexual, por natureza entendido como ocorrendo entre gêneros complementares, ou, mais explicitamente, um homem e uma mulher. E ainda acham que os quadrinhos são inocente diversão para crianças...


Também publicado no site Outra Leitura


[1] "'Interpretação depende do leitor', diz Mauricio de Sousa sobre personagem gay", disponível em http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL1382317-7084,00-INTERPRETACAO+DEPENDE+DO+LEITOR+DIZ+MAURICIO+DE+SOUSA+SOBRE+PERSONAGEM+GAY.html [2] Douglas Reis, "Santa Cássia Eller, Batman!", disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com/2009/02/santa-cassia-eller-batman.html.
[3] Omelete: entrevista com Alan Moore, disponível em http://www.omelete.com.br/quad/100006266/Omelete_Entrevista__Alan_Moore___Parte_1.aspx (parte 1) e http://www.omelete.com.br/quad/100006359.aspx (parte 2).

PENTECOSTALISMO E EXPLORAÇÃO DA FÉ


Por Jéssica Clemente

“Eu, o Senhor Todo-Poderoso, ordeno que tragam todos os seus dízimos aos depósitos do Templo, para que haja bastante comida na minha casa. Ponham-me à prova e verão que eu abrirei as janelas do céu e farei cair sobre vocês as mais ricas bênção.”[1]
“ Por isso eu digo: peçam e vocês receberam; procurem e vocês acharão; batam, e a porta será aberta para vocês. Porque todos aqueles que pedem recebem; aqueles que procuram acham; e a porta será aberta para quem bate.”[2]

Interpretações de textos bíblicos, como os acima, serviram de bases para a doutrina da teologia da prosperidade, que afirma que os verdadeiros fiéis desfrutam de uma excelente condição financeira, de saúde etc. “Este movimento nasceu na década de 40 nos EUA de um ramo pentecostal que pregava a crença fervorosa na intervenção divina, que se revelaria por meio da causa de doenças graves, por exemplo(...)” [3]

Dentre os inúmeros movimentos sociais que surgiram na América Latina, destacam-se os pentecostais, que enfatizam a cura de doenças, dons de línguas e enriquecimento. A justificativa que se dá para essa ênfase se encontra no livro de Atos 2, que fala sobre o derramamento do Espírito Santo, o que ficou conhecido como Pentecostes.

O Pentecostalismo, como qualquer outro movimento importante, deu origem a um grande número de organizações, com diferenças políticas, sociais e teológicas. No início, os pentecostais se viam como peregrinos na sociedade, dedicando-se exclusivamente a preparar o caminho para a volta de Cristo.

O movimento pentecostal é dividido em três “ondas”:

1.Na primeira onda do pentecostalismo, tem-se a criação da Congregação Cristã no Brasil e da Assembléia de Deus. Ambas as igrejas caracterizam-se pelo anti-catolicismo, pela ênfase na crença no batismo no Espírito Santo e por um ascetismo que rejeita os valores do mundo e defende a plenitude da vida moral e espiritual.

2.A segunda onda pentecostal surgiu com a chegada de dois missionários à São Paulo. Na capital paulista, eles criaram a Cruzada Nacional de Evangelização e, centrados na cura divina, iniciaram a evangelização das massas, principalmente pelo rádio, contribuindo bastante para a expansão do pentecostalismo no Brasil. Em seguida, fundaram a Igreja do Evangelho Quadrangular.

3.Fundadas por brasileiros, as mais antigas denominações da terceira ordem são a Igreja Universal do Reino de Deus (Rio de Janeiro, 1977), liderada pelo bispo Edir Macedo, e a Igreja Internacional da Graça de Deus (Rio de Janeiro, 1980), liderada e fundada pelo missionário R. R. Soares, ambas presentes na área televisiva com seus tele-evangelistas. De um modo geral, utilizam intensamente a mídia eletrônica e aplicam técnicas de administração empresarial, com uso de marketing, planejamento estatístico, análise de resultados etc. Algumas pregam a Teologia da Prosperidade, pela qual o cristão está destinado à prosperidade terrena, rejeitando os tradicionais usos e costumes austeros dos pentecostais. O neo-pentecostalismo constitui a vertente pentecostal mais influente, a que mais cresce e também a mais liberal em questões de costumes.

Atualmente, vários escândalos envolvendo igrejas pentecostais, principalmente da terceira onda, apareceram na mídia. A principal causa dos escândalos é o dinheiro. A igreja Universal do Reino de Deus, cujo fundador é o bispo Edir Macedo, fatura milhões por ano do dinheiro dos fiéis, e utiliza grande parte desse dinheiro para fins pessoais. “Macedo colocou o dinheiro no centro do seu discurso teológico (...). A igreja se inspirou nos princípios da Teologia da Prosperidade”. [4]

“Na Universal, ensina-se que a felicidade terrena é uma concessão divina. Apenas quem é abençoado consegue ter uma vida livre de sofrimento e repleta saúde e prosperidade material. Para alcançar a graça, no entanto, é preciso viver fervorosamente a experiência da fé e, sobretudo, demonstrá-la. E a melhor forma de fazer isso é entregar dinheiro aos representantes de Deus (...), para que ele seja misticamente multiplicado. A doação é um investimento. Quanto mais o fiel dar à igreja, mais receberá de Deus no futuro.” [5]

Esses preceitos, porém, contém vários erros se contratados com a Bíblia:

1.Não precisamos conquistar a graça. “Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom GRATUITO de Deus é a vida eterna, que temos em união com Cristo Jesus, o nosso Salvador.”[6]

2.Deus abençoa aquele que segue seus mandamentos e faz o que é certo. “Pois tu, ó Senhor Deus, abençoas os que te obedecem, a tua bondade os protege como um escudo”[7]

3.Deus nos diz que não devemos nos preocupar em ajuntar riquezas na Terra e, sim, no céu. “Não ajuntem riquezas aqui na Terra, onde as traças e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e roubam. Pelo contrário, ajuntem riquezas no céu, onde as traças e a ferrugem não podem destruí-las, e os ladrões não podem arrombar e rouba-las. Pois onde estiverem as suas riquezas, aí estará o coração de vocês.”[8]

Não há nada de errado em doar dinheiro para a igreja; Deus diz que devemos devolver o dízimo, a décima parte de tudo o que ganhamos, porém esse dinheiro deve ser usado para a pregação do evangelho e não para o uso pessoal. “Quando o dinheiro dos fiéis é usado para comprar empresas e jatinhos, a justiça tem de ser acionada.”[9]

“Quem se propõe a guiar um rebanho deveria saber que uma alma que busca conforto na religião para superar um momento de fragilidade emocional atravessa um período de vulnerabilidade. É capaz de tomas atitudes impensadas, com consequências drásticas para seu destino.” Muitas pessoas são enganadas pelos líderes dessas igrejas e doam tudo o que possuem, acabando na miséria e entrando em depressão. Deus não precisa de dinheiro, Ele é o dono de tudo. “Todo o grupo religioso, seja qual for sua origem, deve ter o direito de professar sua fé em paz. Esse é um dos pilares que sustentam o estado democrático de direito”[10] , porém ninguém tem o direito de explorar as outras pessoas em nome de Deus.

Nota: Cansado de trabalhos feitos à base de Control C/Control V, comecei a trabalhar com as turmas de Ensino Médio a metodologia de pesquisa. Gastei tempo, para ensinar e corrigir. Houve muitos trabalhos competentemente escritos. Este, sobretudo, me impressionou. A Jéssica é uma aplicada aluna do segundo ano. Com o consentimento dela, publiquei seu texto, em uma hora sobremodo oportuna, quando se discute justamente a influência de determinados líderes religiosos.

[1]Malaquias 3:10. Bíblia Sagrada NTLH.
[2]Lucas 11: 9,10. Bíblia Sagrada NTLH.
[3]Marcelo Carneiro. DÓLAR ATÉ NA BÍBLIA. Veja, 17 de Janeiro de 2007, p. 48.
[4]Adriana Dias Lopes e Fábio Portela. PORQUE OS FIÉIS DOAM TANTO. Veja, 19 de Agosto de 2009, p. 91.
[5]Idem.
[6]Romanos 6:23 Bíblia Sagrada NTLH; ênfase suprida.
[7]Salmos 5:12 Bíblia Sagrada NTLH.
[8]Mateus 6:19-21 Bíblia Sagrada NTLH.
[9]Laura Diniz. CHEQUE AO BISPO. Veja, 19 de Agosto de 2009, p. 85 e 86.
[10]Adriana Dias Lopes e Fábio Portela. PORQUE OS FIÉIS DOAM TANTO. Veja, 19 de Agosto de 2009, p. 94.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MARQUE NA SUA AGENDA

Retomamos o Questão de Confiança - até que enfim, diriam alguns. Uma aluna vivia me perguntando quando voltaria a postar. Outros ficaram até preocupados. Mas, conforme prometêramos, hoje, dia 16, retomaríamos as nossas postagens, e ei-nos aqui!

Agora, muita atenção: marque em sua agenda a data de nosso próximo encontro, que será no dia 23 de Novembro, com mais novidades. Até lá.

PALESTRA SOBRE ÉTICA CRISTÃ


Palestra proferida em 23 de Outubro, no auditório da Faculdade Anhamguera, em Joinville (SC). Para fazer o download, clique aqui.

QUANDO O DESERTO SE APROXIMA


O pó se juntara aos seus poros. Suava, muito, a fronte abaixada, em perceptível exaustão. Foi quando achou uma pedra na qual se apoiar. O descanso era despretensioso, quase uma parada à toa, rápida. O corpo pedia um leito, mas a mente decidira-se a prosseguir. Poderia ser que o sol abaixasse, e a poeira vermelha não enfeitiçasse a vista, com contornos de mistério repetido, ironia de um cenário entediante.

Ainda assentado, levantou os olhos. Antes, sozinho, mas a presença se apresentou sem vir, surgida sabe-se de que ponto remoto do espaço-tempo. A contemplação do estranho exigiu que uma mecha do cabelo saísse de sobre os olhos, exprimidos diante da figura bem composta, impressionante até - um corpo longilíneo, que se movia com disposição e exprimia um ar seguro de nobreza e preocupação. A testa larga, olhos que ora se abriam, ora cintilavam de azul cerúleo. Um minuto durou o silêncio entre eles, algo sem estudo ou reticência. Apenas a impressão do contraste.

A primeira frase quebra a rotina de calor. A voz de carnaúba vinda do intruso chega aos ouvidos do caminhante, como uma promessa de regresso ao lar, uma sinfonia rica e delicada. A voz lhe lembrava de sua identidade. Ainda que fosse agradável, era promíscua, ambivalente em suas exigências. Propunha um desafio velado – tornar pedras em pães. Calmo em sua fadiga, o jovem judeu se ergue, como que possuidor de nova energia, saído de algures. Sua resposta iniciava um colóquio sutil e carregado de perigos. Duas forças contrastavam, para além das aparências. E o sol queimava apenas ao viajante que deixara o Jordão na certeza de Sua filiação.

As três dúvidas: Podes fazer de pedras pães? Por que não te atiras e exiges que anjos venham em teu socorro? Abra mão de teu suplício e me reconheças como Teu superior. Havia um quê onírico e cósmico no confronto, ambientado em meio ao deserto, para de repente conduzir-se no imprevisível teto do templo e, enfim, oferecer um panorama esmagador da História, com suas conquistas e prazeres humanos. Quanto durou a viagem? Quem sabe...

Os requícios do duelo ficam entrelaçados em um rosto ainda mais erodido. A cútis sulcada, gelada até, olhos arroxeados e laços. Mal se equilibra, tal o desgaste ao qual o Galileu submetera-Se. Somente na suficiência do Pai pudera equilibrar-Se. A jornada de volta ao Jordão se abria como senda de celeumas. Sua vida estivera sempre em risco e Ele terminaria com ela dali a poucos anos. Disso, nãoduvidava.

Mas agora, anjos descem do Infinio e O acolhem em braços potentes. A Palavra de Deus, que Ele usou para Se defender, é dita nos céus, para servir o Filho sofredor.

LER EM SUPER-MERCADOS



Semanalmente, ao menos, eu necessito fazer compras. Geralmente, frequento com alternância dois super-mercados: um maior, com dezenas de prateleiras, gôndolas e a exibir variedade imensa de produtos. O segundo, mais modesto, apresenta, no entanto, a vantagem de situar-se próximo à minha casa, dando-me a liberdade de fazer uma boa caminhada, se eu assim me dispuser. Em ambos, encontro revistas e livros a granel.

Ler durante as compras é um exercício de anos, prática que me ajuda a manter-me informado, simplesmente ao dar uma furtiva passada de olhos pelos periódicos semanais. Folheio páginas e mais páginas, atento ao que me pareça relevante – em meio à futilidade da mídia, algumas notícias merecem a atenção.

Ontem, levantei-me mais tarde do que o costume e, em virtude do horário, aboli a primeira refeição. Corri ao mercado, digo, ao segundo, aquele que as circunstâncias fizeram estar perto de casa. Assim, daria tempo de comprar certos artigos e retornar, a fim de almoçar mais cedo. Entretanto, vi-me forçado a gastar uns minutinhos com um livro exposto na frente de um dos caixas: era um romance, maçudo (como se dizia antigamente), da autoria do português Lobo Antunes. Enquanto me dirigia aos corredores, abri na primeira página e li para mim as palavras iniciais, sempre intrigantes e caudalosas de Antunes.

Ao abandonar o livro, saciado pela impressão funda daqueles parágrafos, ocorreu-me refletir sobre a diferença produzida por essa leitura e aquela, das revistas. Quase não logrei usufruto do romance, porque Lobo Antunes exige que se leia algumas páginas, para se adequar ao seu estilo, antes de apreciá-lo devidamente – de forma semelhante a um ante-pasto. Em contrapartida, jornais e revistas, grosso modo, são de assimilação mais rápida.

Posso arriscar-me a dizer que jornalistas e escritores expressam afeição pelo mundo de formas peculiares, não opostas, nem de todo complementares: os primeiros amam o mundo exato, objetivo, formado pela cobertura completa, os editoriais racionais, as colunas espirituosas e as reportagens que buscam reconstruir ao máximo a realidade. Já os escritores, amam o mundo retratado, personalizado, intrigante em seus jogos de palavra e suas formulações subjetivas, que não deixam de demandar pesquisa e contato íntimo com a realidade, embora deixem margem à imagética reconstrutiva.

É inconcebível um jornalista que ousasse escrever como Antunes, com seu palavrório pesado, suas frases longas – a pobre alma ganharia um manual de escrita de algum editor contrafeito, que lhe cobrasse mais agilidade. Afinal, ninguém escreve mais com a elegância de Bilac, que, além de poeta (um poeta chato, na maior parte do tempo!), exibia morosidade agradável em suas contribuições para os jornais. O que hoje se exige de um redator? Linguagem condensada, enxuta e precisa.

Estou certo de que muitos escritores não se arriscam a enveredar pela imprensa porque se sentiriam castrados, sem a liberdade de escrever sem limites de caracteres ou com a responsabilidade de informar em poucas linhas sobre determinado fato. O escritor não quer escrever pouco, justamente porque o escrever muito parece indicar fôlego, audácia e inventividade (nem sempre a premissa é verdadeira). A maior parte dos escritores também é por demais aborrecida com a trivialidade do cotidiano, e, quanto a isso, há uma longa lista de nomes que poderíamos usar para justiçar-nos – Kafka, por exemplo, era indiferente à vida familiar, ou a qualquer coisa que lhe ocupasse o tempo em que poderia produzir literatura. O próprio José Saramago, polêmico autor do romance Caim e desafeto de Lobo Antunes, seu conterrâneo, desmerece a própria existência, dizendo que o homem é indigno dela (a declaração, dada a jornalistas da Folha, arrancou do blogueiro Reinaldo de Azevedo a conclusão de que, ou Saramago não se considerava humano, ou que deveria, pelo menos, ser coerente e cometer suicídio!).

Embora flertasse recentemente com o cotidiano, em seu blog O caderno de Saramago, o Nobel do além-mar logo se cansou de postar, abrindo mão da iniciativa em prol de outros projetos. Curiosamente, Saramago elogiou em uma de suas últimas postagens dois escritores contemporâneos que são, simultaneamente, jornalistas.
Seja como for, da próxima vez que for fazer compras, priorizarei revistas e jornais – livros lerei em casa, deitado em meu sofá.