terça-feira, 24 de novembro de 2009

NÃO HÁ LUGAR PARA JOCELYN



Enrico estacionou o sedan preto que conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório. Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola, segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima, tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.

Enrico estacionou o sedan preto que conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório. Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola, segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima, tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.
Então, era isto! Desrespeitado em seu próprio lar. Jocelyn estava ali, conversando com a mãe. A moça mostrava-se inchada, vermelha, com aspecto descuidado, muito além do desleixo adolescente que cultivava. Suas roupas largas e o cabelo desgrenhado quase apagavam a impressão favorável que os olhos azuis deixariam sobre quem a conhecesse. Ela o viu e, como uma criança apanhada em uma ação errada, buscou segurança no olhar da mãe. Isadora era bem diferente de Jocelyn. Era morena e franzina, com manchas salpicando o pescoço longo, o qual lhe conferia um ar indisfarçavelmente esnobe. Naquele momento, porém, tinha franqueza no semblante, num gesto de solidariedade à filha, abrindo-lhe um sorriso encorajador.
Enrico estancou à porta do quarto, talvez buscando palavra. Jocelyn trazia marcas de choro recente no rosto e ele, um homem atento, logo o percebeu. Bufando, por fim, abandonou a decisão de falar algo. Sentia que não valeria o esforço. Foi direto ao escritório, lembrando-se subitamente do que viera fazer em casa.
O documento se achava à mão. Tomou-o e afluiu para a escada. Seu vulto furtivo foi seguido por Jocelyn, agora em pé, desconcertada, enquanto dirigia-se à saída do quarto da mãe. Ao cruzar a porta, seguiu-a a mãe. “Não posso fazer nada, pai. Você não compreende, caramba?” esbravejou pelo corredor. Chorava de forma doída.
O pai fez-se de surdo, apressando a passada no momento em descia a escada e se dirigia ao quintal. Isadora persignou-se. Abraçou sua menina por trás, beijando-lhe docemente o ombro esquerdo, sobre o qual pousou o rosto com delicadeza. Apoiada no corrimão, Jocelyn ouvia a porta bater. Seu pai se recusava a lhe dirigir a palavra – e isso era mil vezes pior do que quando lhe insultava.
Enrico já cruzara muitos quarteirões e chegava ao estacionamento. Ao regressar à firma, um estranho torpor lhe sobreviera. Sua mente flanou por frivolidades mesquinhas, as quais costumava evocar, a título de dispersar os sentimentos. Uma amenidade impostora dominava seus gestos, à medida em que usava o elevador. Chegara mesmo a sorrir para os colegas que subiam com ele para o mesmo andar.
Em pouco tempo, sentava em sua poltrona e o trabalho tinha sua atenção. Não demorou, porém, até que o celular tocasse. Conferiu e o número na tela era o de sua residência. Um desânimo lhe percorreu o corpo, estremecendo a medula, a costela, as axilas, tudo, tudinho. Bem que queria evitar desgastes!… Já deixara claro o que pensava de divórcio, ele, criado em um lar cristão. Não podia concordar com uma falha como aquela. Após vários toques, atendeu. Na voz estampava a indisposição. Havia um atenuante: era Isadora na outra linha. Ouviu sobre sua obrigação paterna; todavia, concordava formalmente, de forma quase sincronizada com as pausas da interlocutora. A mente? Ora, a mente simplesmente não estava na conversa, apenas a voz. Isadora percebeu que sua desatenção indicava irredutibilidade crônica. A conversa se encerrou com um desalentador “Assim que puder, converso em particular com você”, a única frase completa que ele pôde dizer em toda a conversa. Aliás, o diálogo rendeu pouco, e Isadora não queria parecer sentimental ou apelativa. Deixou para chorar depois que desligasse.
Enrico saiu mais cedo do trabalho. Recusou um ou dois convites para sair com os amigos. Embora não quisesse voltar para casa, queria, acima de tudo, permanecer só. Saiu pelas lojas do centro, em direção a um parque. O sol diminuía em intensidade, embora a tarde se conservasse iluminada e agradabilíssima. Ele comprou um jornal que mal leu. Sentou-se em um banco. Sentia-se ridículo por perder tempo ali, parado, absorto em seus dilemas particulares. Nunca quisera aquilo. Sonhara com uma família grande, muitos filhos e uma casa espaçosa. Tirou um cigarro e ascendeu. Olhou para os prédios antigos, os quais abrigavam comércios de roupas e brinquedos. Mesmo sendo época de Natal, os enfeites muito discretamente se infiltravam nos fios elétricos e grades. Luzes pequenas e nada atraentes. O cigarro consumia-se mais rápido do que conseguia aproveitar, consumido por um dissabor que não poderia compensar. Deixou o jornal no banco e saiu, refletindo em como o centro da cidade parecia menos alegre do que em sua juventude. Tossia um pouco, porque não fumava tanto quanto nessas últimas semanas, desde que soube.
 “Uma ajuda, irmão, por favor.” Sequer pensou antes de abrir a carteira e dar a única nota de vinte para um transeunte maltrapilho que lhe surpreendera na esquina. Se Isadora o visse, seria censurado. Ela diria que caridade se deve mostrar primeiro aos de casa. Até esboçou um sorriso, imaginando a expressão da mulher dizendo aquelas palavras. Mas ela não entendia? Não poderia fazer aquilo, de jeito nenhum! Quer dizer, como aceitar que ela voltasse? Não, era errado e ponto. Homem e mulher foram feitos para viver um com o outro. Ele criou sua Jôce dentro de um padrão moral. Por isso os jovens de hoje estão perdidos – não sabem o que seja moral, bons costumes, decência. Então é assim? Casa, não dá certo, e daí voltam os dois, cada qual, para o lar dos pais?
O cigarro chegava ao fim. Antes, automaticamente puxou outro da cartela, e acendeu com aquele que terminava. Deu uma tragada funda. Era hora de voltar.
Chegou perto das sete da noite. Roberta já terminara o expediente e, por questão de minutos, não a pegara fechando o portão. Teria dado uma carona para ela até o ponto. Chegou a permanecer no carro, até o segundo cigarro acabar. Colocando uma bala de menta na boca, entrou em casa, sem alarde. Pelo silêncio, intuiu que Isadora estava só.

Sentou-se no sofá e assistiu o noticiário, enquanto bebericava a última cerveja da geladeira. A ansiedade o apertava. Quando seria abordado? Como se defenderia? Chegou mesmo a adormecer no sofá, antes de se decidir por levantar e tomar um banho. Que dia complicado!
Ao entrar no quarto, viu Isadora. Falaram-se cordialmente sobre a rotina, de forma sucinta e ordinária. Saiu do chuveiro e a mulher já se deitara, lendo O caso dos dez negrinhos. Ele pôs o pijama e deitou-se, simulando um bocejo. Ela, entendeu, marcou o capítulo e apagou o abajur. Enrico dormiu sem saber que a filha tinha se arranjado no apartamento de uma amiga de faculdade.


3 comentários:

Danivia disse...

Muito bacana o conto...
me lembra muito o estilo de escrever do escritor Ildeu Brandão. Sou revisora e acabo de ler um livro dele que vai sair como reedição: "Um míope no zoo".
fiquei presa até o final!
parabéns!!!

Anônimo disse...

Está legal!! Escreveu muito bem...

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto!! Muito bem escrito. Um bom material para se trabalhar em aulas de Port.