Enrico estacionou o sedan preto que
conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o
portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório.
Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola,
segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima,
tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a
censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.
Enrico estacionou o sedan preto que
conduzia em frente à garagem do vizinho. Desceu esbaforido e correu até o
portão de casa. Esquecera-se de um documento sobre a mesa do escritório.
Detestara voltar em casa e dar de cara com a mulher, desocupada e frívola,
segundo o seu juízo. A empregada abriu-lhe o portão e ele saiu escada acima,
tropicando. Previa cruzar com a esposa, que não saía do computador. Já tinha a
censura na ponta da língua. Porém, a cena que viu pegou-o desprevenido.
Então, era isto! Desrespeitado em seu
próprio lar. Jocelyn estava ali, conversando com a mãe. A moça mostrava-se
inchada, vermelha, com aspecto descuidado, muito além do desleixo adolescente
que cultivava. Suas roupas largas e o cabelo desgrenhado quase apagavam a
impressão favorável que os olhos azuis deixariam sobre quem a conhecesse. Ela o
viu e, como uma criança apanhada em uma ação errada, buscou segurança no olhar
da mãe. Isadora era bem diferente de Jocelyn. Era morena e franzina, com
manchas salpicando o pescoço longo, o qual lhe conferia um ar
indisfarçavelmente esnobe. Naquele momento, porém, tinha franqueza no
semblante, num gesto de solidariedade à filha, abrindo-lhe um sorriso
encorajador.
Enrico estancou à porta do quarto,
talvez buscando palavra. Jocelyn trazia marcas de choro recente no rosto e ele,
um homem atento, logo o percebeu. Bufando, por fim, abandonou a decisão de
falar algo. Sentia que não valeria o esforço. Foi direto ao escritório,
lembrando-se subitamente do que viera fazer em casa.
O documento se achava à mão. Tomou-o e
afluiu para a escada. Seu vulto furtivo foi seguido por Jocelyn, agora em pé,
desconcertada, enquanto dirigia-se à saída do quarto da mãe. Ao cruzar a porta,
seguiu-a a mãe. “Não posso fazer nada, pai. Você não compreende, caramba?”
esbravejou pelo corredor. Chorava de forma doída.
O pai fez-se de surdo, apressando a
passada no momento em descia a escada e se dirigia ao quintal. Isadora
persignou-se. Abraçou sua menina por trás, beijando-lhe docemente o ombro esquerdo,
sobre o qual pousou o rosto com delicadeza. Apoiada no corrimão, Jocelyn ouvia
a porta bater. Seu pai se recusava a lhe dirigir a palavra – e isso era mil
vezes pior do que quando lhe insultava.
Enrico já cruzara muitos quarteirões e
chegava ao estacionamento. Ao regressar à firma, um estranho torpor lhe
sobreviera. Sua mente flanou por frivolidades mesquinhas, as quais costumava
evocar, a título de dispersar os sentimentos. Uma amenidade impostora dominava
seus gestos, à medida em que usava o elevador. Chegara mesmo a sorrir para os
colegas que subiam com ele para o mesmo andar.
Em pouco tempo, sentava em sua poltrona
e o trabalho tinha sua atenção. Não demorou, porém, até que o celular tocasse.
Conferiu e o número na tela era o de sua residência. Um desânimo lhe percorreu
o corpo, estremecendo a medula, a costela, as axilas, tudo, tudinho. Bem que
queria evitar desgastes!… Já deixara claro o que pensava de divórcio, ele,
criado em um lar cristão. Não podia concordar com uma falha como aquela. Após vários
toques, atendeu. Na voz estampava a indisposição. Havia um atenuante: era
Isadora na outra linha. Ouviu sobre sua obrigação paterna; todavia, concordava
formalmente, de forma quase sincronizada com as pausas da interlocutora. A
mente? Ora, a mente simplesmente não estava na conversa, apenas a voz. Isadora
percebeu que sua desatenção indicava irredutibilidade crônica. A conversa se
encerrou com um desalentador “Assim que puder, converso em particular com
você”, a única frase completa que ele pôde dizer em toda a conversa. Aliás, o
diálogo rendeu pouco, e Isadora não queria parecer sentimental ou apelativa.
Deixou para chorar depois que desligasse.
Enrico saiu mais cedo do trabalho.
Recusou um ou dois convites para sair com os amigos. Embora não quisesse voltar
para casa, queria, acima de tudo, permanecer só. Saiu pelas lojas do centro, em
direção a um parque. O sol diminuía em intensidade, embora a tarde se
conservasse iluminada e agradabilíssima. Ele comprou um jornal que mal leu.
Sentou-se em um banco. Sentia-se ridículo por perder tempo ali, parado, absorto
em seus dilemas particulares. Nunca quisera aquilo. Sonhara com uma família
grande, muitos filhos e uma casa espaçosa. Tirou um cigarro e ascendeu. Olhou
para os prédios antigos, os quais abrigavam comércios de roupas e brinquedos.
Mesmo sendo época de Natal, os enfeites muito discretamente se infiltravam nos
fios elétricos e grades. Luzes pequenas e nada atraentes. O cigarro consumia-se
mais rápido do que conseguia aproveitar, consumido por um dissabor que não
poderia compensar. Deixou o jornal no banco e saiu, refletindo em como o centro
da cidade parecia menos alegre do que em sua juventude. Tossia um pouco, porque
não fumava tanto quanto nessas últimas semanas, desde que soube.
“Uma
ajuda, irmão, por favor.” Sequer pensou antes de abrir a carteira e dar a única
nota de vinte para um transeunte maltrapilho que lhe surpreendera na esquina.
Se Isadora o visse, seria censurado. Ela diria que caridade se deve mostrar
primeiro aos de casa. Até esboçou um sorriso, imaginando a expressão da mulher
dizendo aquelas palavras. Mas ela não entendia? Não poderia fazer aquilo, de
jeito nenhum! Quer dizer, como aceitar que ela voltasse? Não, era errado e
ponto. Homem e mulher foram feitos para viver um com o outro. Ele criou sua
Jôce dentro de um padrão moral. Por isso os jovens de hoje estão perdidos – não
sabem o que seja moral, bons costumes, decência. Então é assim? Casa, não dá
certo, e daí voltam os dois, cada qual, para o lar dos pais?
O cigarro chegava ao fim. Antes,
automaticamente puxou outro da cartela, e acendeu com aquele que terminava. Deu
uma tragada funda. Era hora de voltar.
Chegou perto das sete da noite. Roberta
já terminara o expediente e, por questão de minutos, não a pegara fechando o
portão. Teria dado uma carona para ela até o ponto. Chegou a permanecer no
carro, até o segundo cigarro acabar. Colocando uma bala de menta na boca,
entrou em casa, sem alarde. Pelo silêncio, intuiu que Isadora estava só.
Sentou-se no sofá e assistiu o noticiário,
enquanto bebericava a última cerveja da geladeira. A ansiedade o apertava.
Quando seria abordado? Como se defenderia? Chegou mesmo a adormecer no sofá,
antes de se decidir por levantar e tomar um banho. Que dia complicado!
Ao entrar no quarto, viu Isadora.
Falaram-se cordialmente sobre a rotina, de forma sucinta e ordinária. Saiu do
chuveiro e a mulher já se deitara, lendo O caso dos dez negrinhos. Ele pôs o
pijama e deitou-se, simulando um bocejo. Ela, entendeu, marcou o capítulo e
apagou o abajur. Enrico dormiu sem saber que a filha tinha se arranjado no
apartamento de uma amiga de faculdade.
3 comentários:
Muito bacana o conto...
me lembra muito o estilo de escrever do escritor Ildeu Brandão. Sou revisora e acabo de ler um livro dele que vai sair como reedição: "Um míope no zoo".
fiquei presa até o final!
parabéns!!!
Está legal!! Escreveu muito bem...
Parabéns pelo texto!! Muito bem escrito. Um bom material para se trabalhar em aulas de Port.
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