segunda-feira, 30 de novembro de 2009

PRAZO VENCIDO

A cada semana, temos publicado uma história Acompanhe hoje o relato de Carlos.

A noite desnudava seus milhões de sorrisos, invariáveis sobre a escuridão. Apenas um apartamento no bloco tem luz. Não que se esquecesse de apagá-la. Carlos Z precisa dela, desesperadamente. Debruçado, ele aproveita a luminária para conferir a arte-final. Não, o braço não está parecendo humano, mas apresenta o aspecto de uma massa disforme, como um macarrão que cozinhou demais. Com a curva-francesa em mãos, define melhor e – pronto, temos um braço! Suas mãos suam, espreme os olhos, que negócio cansativo, minucioso ao extremo até, embora faça parte de um processo necessário, principalmente tendo em vista o resultado final e o prazo.

Com o outro estúdio teve problemas. A bem da verdade, ele ainda atuava como um amador, estava “verde” demais. Queriam algumas sequências para uma animação em molde tradicional. Ele e o Manda-Brasa pegaram o trabalho com prazo apertado. E não deram conta. Quando quiseram negociar uma nova data de entrega, o estúdio já contratara outros free-lances.

Desde aquela época, restara ilustrar livros infantis: dragões, elfos, animais e escolas… Faltava algo grande.

A luz da luminária dava indícios de que queimaria em breve. Procurou na escrivaninha da sala a lâmpada reserva. Hum… onde estaria? O carpete não está limpo, dá para sentir o pó subindo, o que não chega a combinar com sua rinite. Ei, o que é isto?

Um álbum? Deu uma olhada superficial. Abriu, finalmente. Fotos dos amigos. De quando eram? Via e lutava para se recordar. Na verdade, as fotografias vinham de várias épocas e lugares, formando um mosaico de fases e afetos, de vivências e convivências. Campings, feriados passados na casa dos tios, em Mogi Mirim, aquela ida ao parque de diversão com os amigos, passeios de formatura na escola, e tantos outros acontecimentos. Parou alguns minutos, disperso. Algumas fotos estavam distantes, sem foco ou escuras demais. Outras estavam em boa condição. Se soubessem, não teria gasto tanto tempo buscando referências para seu trabalho em revistas. Alguma coisa poderia aproveitar dos próprios álbuns pessoais. Gastou um tempo olhando outros na mesma estante. Quando olharia o terceiro, acabou se deparando com a lâmpada que fora procurar há vinte minutos.

Voltou para o estúdio improvisado. À esquerda da porta, um quadro solitário lhe chamou a atenção. Lia-o sempre, ao entrar ali, e parecia se encher de motivação. Ele mesmo o desenhara: constituía-se de uma mão segurando um pincel, enquanto desenhava sobre a prancheta. Abaixo, a frase: “cada um deve ocupar-se na cidade de uma única tarefa, aquela para a qual é mais bem dotado por natureza". Trocou a lâmpada queimada e voltou à labuta. Eram três horas.

Terminou a menos de uma hora para a alvorada. O sable da noite se banhava de tons pastéis e de um grená discreto. Adormeceu ouvindo Josh Groban cantando Vincent.

O relógio despertou-o às nove e meia. Um zumbido lhe incomodava o ouvido e a respiração era dificultosa. Tomou banho enquanto pensava em tirar um tempo para aspirar o pó do carpete. Saiu com uma torrada dormida na boca;a matisgação se revezava com os instantes que assobiava Aquarela, de Toquinho.

Sentia-se estranho. Usava uma camiseta branca, na qual uma Monalisa multicolorida se estampava, quase de todo encoberta pela jaqueta de couro. Usava uma calça de couro, que a Pamela lhe dera. Por onde ela estaria agora? Ficou pensando nas fotos com a moça, vistas no segundo álbum; seu rosto redondo coberto pelos cabelos desfiados, de um preto bem brilhoso. Não conseguia se lembrar desde quando cultivava pela garota aquele tipo espontâneo de afeição. Provavelmente, passou a sentir isso quando a conhecera. Meditava nas recordações associadas com Pamela, se esqueceu do acanhamento inicial, causado por seu figurino inadequado a um dia de sol.

Depois de sair do metrô, Carlos Z andou três quarteirões até chegar ao estúdio. Ao passar pela imponente porta de vidro na entrada, o ar condicionado refrescou-o. O lugar estava abarrotado de gente. Mesmo assim, não precisou ficar por muito tempo sentado no banco de espera até que o recebessem.

O diretor artístico, Seu Paiva, apareceu sorridente, dando-lhe um abraço. Seu Paiva tinha um currículo invejável como desenhista de pôsteres e capas de revistas. “Tudo certo com o material, né?”, iniciou o diretor, com sua voz roufenha. “Claro, claro. Terminei as últimas cenas durante esta madrugada. Só um momentinho…” Carlos abriu uma imensa pasta de plástico, contendo diversas folhas de papel vergê, exibindo o history-board de um filme. Era o próximo lançamento de um grande estúdio hollywoodiano. A história se passaria em São Paulo. Depois de acertarem as locações com as autoridades da cidade, os produtores pensaram em convidar um artista brasileiro para desenhar history-board. Dali a um mês começariam as filmagens.

Seu Paiva tirou os óculos do bolso e examinou as páginas em silêncio. Não era um homem muito expansivo. Porém, os músculos de sua face pareciam indicar aprovação. Foi bem sucinto: “Perfeito!” Deixou o trabalho sobre a mesa e conduziu o artista até o setor financeiro. Carlos saiu dali feliz pela recompensa da noite insone. Teria que retornar ao metrô e voltar para seu apartamento. Poderia até escolher um daqueles restaurantes do centro e almoçar bem, para fugir da rotina de penúria. A ideia perambulou pela cabeça dele, até que se decidiu por uma visita a uma lanchonete nas cercanias, o que era, infinitamente, mais econômico.

Entrou em certo estabelecimento, localizado em uma esquina movimentada. As mesas eram brancas e laranjas e a decoração tinha imagens de super-herois. Até mesmo os nomes de lanches e bebidas remontavam às histórias em quadrinhos. Carlos gastou um tempo maravilhado, parecia voltar aos cinco anos, contemplando atentamente a riqueza dos detalhes dos personagens. Reconhecia o estilo dos desenhos, muitos decalcados do trabalho de artistas de renome. Quando a garçonete apareceu, pediu um duende verde para beber e um Mutano sem cebola, acompanhado por batatas fritas. Seus olhos estavam vermelhos e tinha uma leve tontura. A noite mal dormida parecia tê-lo debilitado. Quando trabalhava desenhando um fanzine com Manda-Brasa e André J, ficara muitas vezes acordado por madrugadas a fio, sem dormir antes de concluir as páginas da história. Tinha vontade de ligar para o Manda-Braza, um amigo com quem aprendera tanto! Mas perderam o contato há uns dois anos, e diziam que ele estava na França, publicando suas histórias em uma conceituada revista. Na França – quem diria! O velho parceiro comendo escargot e curtindo a sombra da Torre Eiffel! Como a trajetória das pessoas ganha contornos inesperados, parecendo fugir daquilo que elas estavam destinadas a ser – isto é, se de fato existe um destino.

As considerações ainda lhe perseguiam, ao adentrar novamente no Metrô. Sentou-se à esquerda, na frente de uma senhora elegantemente uniformizada. Tomou um bloco de desenho e passou a rabiscar. Adquirira o costume de fazer croquis dos passageiros a partir de quando lera que o desenhista Katsuhiro Otomo tinha esse costume. Ficava intrigado com todas aquelas pessoas. As secretárias, de mangas puídas e sapados besuntados. Os estudantes, que viajavam o tempo todo com fones de ouvidos. Os aposentados, com aquele ar distraído, a ler um jornal, conversar ou simplesmente contemplar o trajeto pela janela. Quantas pessoas se encontravam ali todos os dias, sem travarem qualquer conhecimento com quem se assentava no banco ao lado. Como diferiam em assuntos como política, religião, futebol, tendência sexual, jeito de se vestir, e em tantas outras áreas. Para onde iriam elas agora? Que fariam daqui a trinta minutos? Viveriam até o final do mês? Como às vezes sentia vontade de pesquisar a vida de algumas pessoas! Aquela senhora ali na frente: porque uma mulher já de cãs esbranquiçadas haveria tatuado um dragão no ombro? Quem seria ela: uma roqueira convertida a alguma igreja evangélica? Uma professora radical? Ou ainda, uma dessas pessoas excêntricas, que sai por aí viajando, atrás de experiências inusitadas? Quantas possibilidades surgiram por causa de um detalhe curioso – mas o que dizer das centenas de pessoas que estavam ali, no mesmo transporte? Seria impossível encontrar um professor universitário, um vendedor bem-sucedido, uma escritora de suspenses, um filósofo ou uma jogadora inveterada?

Carlos sentia-se oprimido quando tais curiosidades lhe sobrevinham, porque não podia responder nada daquilo. Mas tinha a impressão de que a vida não diferia muito de um grande roteiro, escrito sabe-se lá se por Deus ou pelo próprio homem, ou até mesmo pelos dois, por que não? Um roteiro com orçamento curto, pouco tempo de filmagem e com muitos atores. Essa concepção suscitava outro pensamento: para que viver? Apenas em nome de um espetáculo, ou por alguma causa mais nobre, como ajudar as crianças pobres da Índia ou os desabrigados na Ásia?

Coçou os olhos. Cochilava entre as dúvidas. Olhou com cautela para o cheque, dobrado e posto na carteira. Estava ali, sorrido para ele. Talvez a vida lhe acenasse, ou poderia ser esta mais uma oportunidade frustrada. Como saber? Era mais fácil traçar alguma coisa com lápis do que esboçar o próprio futuro. Estava quase chegando sua estação. Pegou o celular e discou. Atende, atende. Finalmente, estava falando com Pamela!

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