quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A VERDADE OU A VIDA - parte 1



Primeiro, ela: uma jovem cantora, do tipo que hoje está na mídia, para amanhã cair no olvido. Katy Perry fez sucesso com as músicas You’re so gay (“Você é tão gay”) e I Kissed a girl (“Eu beijei uma garota”). O tom provador do CD é propositadamente bem dosado, o que torna o produto mais vendável. Será que as pessoas se lembrarão de Katy daqui a alguns anos? O tempo se encarregará de dizer.
Agora, se você quiser se encontrar com um provocador autêntico, veja ele: a começar pelo visual incomum, com o bigode avantajado escondendo o rosto, até a pena ácida, Friderich Nietzsche marcou a Filosofia ao desferir o golpe na esperança ocidental. Abriu-se a ferida que sangraria profundamente no século XXI. Sua frase mais conhecida resume seu pessimismo: “Deus está morto”.
A esta altura, você deve estar curioso para saber qual a conexão entre uma cantora pop e um filósofo ateu. Na verdade, pelo menos uma coisa em comum ambos possuem: eram filhos de pastores cristãos!

ÁTOMOS DE VERDADE

Tomo esses dois exemplos para representar a forma como indivíduos criados dentro de uma mentalidade cristã se afastam da cosmovisão bíblica. Aliás, o próprio Ocidente já foi catalogado como “pós-cristão”. No entanto, o Cristianismo não se encontra superado, porém dissolvido, infelizmente. Devido a esta solvência da fé, falta sentido em um mundo sem explicações integradas. O quebra-cabeça se desfaz e o que temos são peças isoladas e independentes.
Uma estudiosa, falando sobre a mudança de paradigmas na interpretação literária, comenta sobre como os efeitos do pós-modernismo se fazem sentir sobre o homem comum: “A sociedade do século XX entrou em crise com a fragmentação do sujeito pela força do inconsciente. A noção de totalização que o iluminismo traz, a ilusão da generalização, começa a ruir [1].
Será oportuno indagar: o que gerou a fragmentação do indivíduo?
Sem dúvida, Friderich Nietzsche deu fundamental contribuição para que isso ocorresse. “Ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche nomeia a ruptura que a modernidade introduziu na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências e do fundamento divino”, conclui outra autora [2]. Com sua negação de valores absolutos, Nietzsche abre as portas para pensadores autenticamente pós-modernos, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Richard Rorty. Se Nietzsche atirou a primeira pedra contra o edifício, eles terminaram de o demolir. Veja como estes pensadores fizeram isso.
No entendimento de Michel Foucault, a verdade é uma ficção sustentada pelos sistemas de poder (as classes dominantes, os políticos, os líderes religiosos, etc.), sendo que próprio poder do conhecimento é arbitrário [3]. O Mundo é um discurso, na verdade mais um discurso imposto, sem sentido real (a História não tem qualquer significado) [4]. Daí surge o conceito de Foucault sobre a “genealogia”, pelo qual se interpreta a História como resultado de “conflitos fortuitos” [5]. Até pensamento é um discurso, haja vista que não há ordem quando construímos e desconstruímos o mundo [6]. Se levado a sério, esse conceito implica que nenhum pensamento é confiável – incluindo o próprio pensamento discursivo de Foucault!
A seguir, nos defrontamos com o raciocínio complexo de Jacques Derrida. Para Derrida, significado e significante são inseparáveis. Querendo expressar a relação entre ambos, ele cunhou o neologismo Differance. E sua filosofia vai mais além: Derrida via ligação entre a atividade mental e a linguagem [7]. Assim como as palavras mudam de significado semântico, o pensamento vai se modificando. Todo texto – e também todo discurso – não passa de um jogo de significados, que flui, podendo ser alterado em seu entendimento ao critério do leitor. Assim, uma interpretação textual jamais pode chegar à conclusão alguma [8]! Obviamente, isso foge à lógica mais elementar. As pessoas continuam lendo e interpretando textos como têm feito desde que se inventou a escrita [9] – provavelmente porque não exista outra forma lógica de ler um texto sem recorrer a regras básicas de interpretação. E os vestibulares estão aí para provar que Derrida não foi convincente em sua promoção da livre interpretação…
Richard Rorty, proponente do neo-pragmatismo, parece o menos influenciado por Nietzsche entre os grandes filósofos pós-modernos. Rorty considera a verdade uma questão étnico-social. O indivíduo não pode ultrapassar o contexto de sua sociedade, logo só pode determinar o que é verdade dentro de seu limite cultural [10].
Considere um exemplo da confusão estabelecida aqui pelo filósofo: o rio Ganges é divino na concepção hindu. Milhares se banham em suas águas, cumprindo determinados rituais sagrados de purificação. Igualmente, mulheres lavam ali suas roupas. Também os mortos são lançados em suas águas. Por mais que entidades internacionais alertem para o risco de infecções e demais moléstias, os sacerdotes do Hinduísmo se recusam a permitir o saneamento do rio, alegando que, como um deus, ele é capaz de cuidar muito bem de si mesmo! Pela ótica pós-moderna, você não pode avaliar se o rio Ganges deve ser ou não saneado, para benefício sanitário da população indiana; afinal, os únicos que podem determinar isto, são os próprios indianos. É claro que não há nada de realístico na abordagem de Rorty.
Para onde nos conduz o pensamento pós-moderno? Ele hostiliza a verdade revelada; valoriza a interpretação em detrimento do conhecimento; relativiza a verdade (enfatizando a verdade comunitária, aceita por consenso geral); e se restringe à transitoriedade, admitindo uma maleabilidade nos princípios.
Por conta de seu anti-realismo, o pós-modernismo enfrenta dificuldades, porque, na prática, se torna impossível vivê-lo coerentemente: “´[...] Os pós-modernos continuam a rejeitar a ilusão modernista – negam que os modelos modernistas representem a realidade – mas, por uma questão prática, admitem que os modelos continuam a servir como ‘ficções úteis’ na vida cotidiana.” [11] A isso Schaeffer se referia pela designação “salto”: a incoerência gerada pela irracionalidade leva o homem a viver dentro da realidade, mesmo que isto o faça negar na prática o que ele crê na teoria.
“Eu sou dono da minha vida e faço dela o que quiser”. Até os partidários da anorexia se defendem com o uso dessa frase. E é claro que, levado até as últimas consequências, a premissa justificaria qualquer opção comportamental, inclusive as menos humanitárias, sendo um exemplo a própria anorexia. Em contrapartida, o conceito da premissa é contestado pela noção bíblica de que a vida não é nossa – ela foi comprada pelo sangue do “Cordeiro sem mancha”. Mesmo sem abrirmos a Bíblia, uma contestação lógica à noção de liberdade irrefreável é que ninguém poderá determinar limites éticos para o comportamento individual, caso cada indivíduo seja seu próprio referencial. Consequentemente, perde-se o poder de avaliar as decisões morais. Pedofilia, estupro, necrofilia, infanticídio, pederastia e sexo bestial deixam de ser considerados crimes nefandos para se tornarem mera questão de escolha.
Conforme já vimos, a falta de critérios seguros leva à fragmentação do eu. Andy (personagem de Philip Seymour Hoffman), expressa isto num monólogo fascinante: “O lance da contabilidade é que se pode somar as linhas, as colunas da folha que tudo dá certo. Então tudo, todo o dia, dá só uma parte. O total é sempre a soma das partes – isto é nítido, claro, exato, absoluto. Só que na minha vida a soma não faz sentido e nada se encaixa com nada e eu não sou a soma das minhas partes. A soma das minhas partes não formam o todo, não formam um único eu...” [12].

A SOCIEDADE IMPOSSÍVEL

A Verdade não é apenas uma abstração – precisamos dela, nossa sociedade carece de uma argamassa que torne coesos e sustentáveis seus valores mais humanos. Voltamos a dizer que o pensamento traz consequências. E a melhor análise a ser feita de uma visão de mundo tem que ver com a forma de ela funcionar no mundo real.
Apesar de o Pós-Modernismo nivelar todas as cosmovisões, como se fossem igualmente verdadeiras (ou falsas), cito um fato histórico para ilustrar a diferença que faz escolher entre esta ou aquela cosmovisão: O massacre dos tasmanianos.
Os habitantes nativos da Tasmânia viveram em completo isolamento por milhares de anos, constituindo setenta tribos e cinco grupos linguísticos. Seu modo de vida era simples: construíam cabanas e artefatos, como recipientes rústicos para água, almofadas, colares, cordas, canoas, etc.
O primeiro contato entre os negros da Tasmânia e o branco europeu foi amistoso. Entretanto, com o passar do tempo, as hostilidades surgiram, motivadas pela ganância dos “colonizadores”. Outro fator que contribuiu para o preconceito contra os nativos se explica pela compreensão científica da época.
Ernest Haeckel, em seu The Wonders of life [As maravilhas da vida], enxergava similaridades dos nativos com “símios e cães”, considerando-os inferiores e, portanto, possuidores de vidas com “um valor totalmente diferente” às do “europeu civilizado”. Outros cientistas os avaliavam como “representantes do homem do Paleolítico” e “o povo mais primitivo ainda vivo nos séculos recentes”. Tal visão negativa estimulou a chamada “caça negra”: patrulhas particulares capturavam os povos da Tasmânia, que sofreram sequestro, mutilação, perseguição de cães, estupros, castração, infanticídio, entre outras barbáries. Em trinta anos de colonização (1800-1830) a população de tasmanianos passou de estimados 3000 (ou 5000) a 135 pessoas!
Ninguém perdeu o sono com isto. Afinal, aquilo era parte da luta pela vida. O próprio Charles Darwin, em seu Descent of man [Descendente do homem], alegou que a extinção de raças inferiores era “o processo e a fonte da evolução”. Darwin ainda lutou para entrar na fila de estudiosos que queriam examinar os corpos de nativos mortos, geralmente disputados por grandes museus; o estudo do homem da Tasmânia proveria documentação necessária para confirmar a teoria da evolução! A única ajuda, ainda que modesta, recebida pelos nativos veio da parte de cristãos que criam no valor da vida humana – embora a maioria, mesmo entre cristãos, fosse influenciada pelas ideias evolucionista [13].
Viver pelos pressupostos errados estabelece a tirania e o abuso, normatizando a negação dos princípios humanos mais elementares. Um dos equívocos mais sérios da conceituação pós-moderna está com a admissão de que todos estão certos e que, portanto, não temos elementos para avaliar os princípios alheios. Isto nega a própria realidade e conspira contra a liberdade humana. A incerteza existencial gera uma sociedade sem eixos éticos.
Recentemente li em um jornal um artigo escrito por um padre. Achei formidável a forma como ele enfoca a falsa oposição entre princípios e a vida real: “Frequentemente somos postos diante de escolhas que parecem um dilema: a verdade ou a vida? Há quem se isole na verdade sem atenção com a vida. A verdade é tomada na sua abstração de princípio absoluto, sem enraizamento nos contextos diferenciados da vida. […] Há quem se feche do lado da vida sem considerações para com a verdade. […] Tudo o que venha a contradizer o prazer da vida, deve ser excluído. […] Neste falso dilema está sendo construída uma sociedade impossível de se sustentar.” [14].
Fizemos notar os malefícios do pensamento pós-moderno [15], com suas incertezas que desconfiguram a psique do indivíduo. Há algum tempo, rearranjei a oposição corrente à cosmovisão pós-Moderna da forma como se segue:
1. Afirmar que não há uma verdade absoluta é fazer uma afirmação absoluta;
2. Nenhum sistema filosófico pode ser sustentável se possui contradição interna;
3. Logo, o pós-modernismo não é sustentável.

Esse esquema simplificado ressalta as contradições do modelo pós-moderno, levando ao reconhecimento de que ele deve ser superado. Em outras palavras, a busca pela verdade universal deve prosseguir. Só assim haverá significado para o indivíduo e igualmente para a sociedade.
Não, a verdade não pode ser isolada da vida; muito menos, a vida se sustenta sem a verdade. Nosso século carece da verdade objetiva. Antes de tocar nesse assunto, quero considerar certas características pós-modernas, com o objetivo de revelar, na prática, comportamentos nocivos decorrentes dessa cosmovisão, como o consumismo, a falta de modelos de vida, e a banalização do cotidiano. Por motivo de o espaço ser restrito, procurarei enfocar o papel da mídia televisiva na fomentação da ideologia pós-moderna.

TELEVISÃO: A GENTE SE VÊ POR AQUI

Se não se busca mais a verdade maiúscula, o que resta então para homens e mulheres comuns do século XXI? Numa sociedade composta por indivíduos incompletos, a única satisfação está em aproveitar a transitoriedade da vida. Em nosso primeiro capítulo, já consideramos que uma compensação para o vazio e insatisfação da condição atual é a busca intermitente por prazer. O “ter” ganhou relevância, em detrimento do “ser”. Portanto, nada melhor do que ir às compras. E sendo o consumo um valor pós-moderno universalizado pela mídia, todas as coisas se tornam consumíveis: de bolsas a carros, de celulares a lanches, da aparência à fama. Desenfreadamente, pessoas pós-modernas buscam maneiras infinitas de preencherem a falta de propósito de suas existências irremediavelmente passageiras.
Não à toa, a emissora de televisão mais popular tem um slogan sugestivo: “A gente se vê por aqui”. A frase parece favorecer uma ambiguidade propositada, referindo-se tanto ao canal como um ponto de encontro (a gente se vê por aqui), mas indicando, principalmente, a televisão como um referencial, um espelho, pelo qual o telespectador pode se identificar, em seus amores, princípios, aspirações e sonhos.
Talvez esteja aí a explicação para o sucesso dos reality shows, que infestaram as programações de emissoras televisivas ao redor do mundo. Programas desta natureza oferecem um alto índice de satisfação, prometendo fama a pessoas sem expressão, que supostamente vivem cotidianamente sob os holofotes da imprensa. Simultaneamente, a estrutura do programa eleva ao patamar de heróis os participantes, aos olhos de uma audiência desesperada por modelos de vida e de sucesso.
Essa banalização do modelo de vida ressalta a escassez de valores da presente época [16]. Ainda na década de 60, com lucidez que mantém atualíssimo seu comentário, assim a escritora Clarice Lispector se expressou a respeito dos calouros que apareciam no programa do Chacrinha: “[…]São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo às custas do ridículo ou da humilhação.” Sobre o programa em si, Clarice se diz “triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.” [17] Se ela soubesse quão menos exigentes as pessoas seriam décadas após sua morte…
Obviamente, não se pode demonizar a televisão. Como veículo de comunicação, estamos diante de um meio poderoso. Infelizmente, o conteúdo do que vem se veiculando é discutível. A massificação de conceitos relativistas, do consumismo e de um hedonismo barateado têm ajudado a construir um mundo sem valores estáveis. Como solucionar o problema da falto de princípios em nosso mundo? Retornado à busca da Verdade universal! Vejamos isso com maiores detalhes.


[1] Eliane Yunes, Elementos para uma história da interpretação, em idem (org.), Pensar a leitura: complexidade (Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Edições Loyola, 2002), p. 100.
[2] Anelise Pacheco, Das estrelas móveis do pensamento: ética e verdade em um mundo digital (Rio de Janeiro, RJ: Civilização brasileira, 2001), p. 149.
[3] Stanley J. Grenz, Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia de nosso tempo (São Paulo, SP: Vida, 2008), 2ª ed, p. 187, 190-191.
[4] Idem, 193,196.
[5] Ibidem, 196.
[6] Ibidem, 197.
[7] Ibidem, 207.
[8] Ibidem, 209-210.
[9] “É interessante que mesmo depois da assunção desse sujeito [fragmentado no século XX], depois de Freud, de Niezsche, de Marx, a ideia de deciframento das estruturas permanece. Essa noção da força estrutural da linguagem organizada, que substitui aquela palavra autoral, mantém a noção do sentido intrínseco, imanente. O texto detém sua verdade e a análise será o exercício de simulacro do texto. A reconstrução seguindo certas regras leva à noção de que o sentido é prisioneiro da forma e da estrutura.” Eliane Yunes, Elementos para uma história da interpretação, p.101.
[10] Stanley J. Grenz, Pós-modernismo, p. 224.
[11] Idem, p. 74.
[12] Antes que o diabo saiba que você está morto, Sidney Lumet (direção), 2007, Estúdio: Unity Productions / Michael Cerenzie Productions / Linsefilm, Distribuição: THINKFilm / Europa Filmes.
[13] Este canhestro episódio é narrado por Jerry Bergman, O darwinismo do século XIX e o genocídio da Tasmânia, Folha criacionista, nº 56, março de 1997, ano 26, pp. 21-34. Bergman cita Haeckel, The Wonders of life (New York: Harper, 1905), p. 390 e Charles Darwin, Descent of man and selection in relation to sex (New York: D. Appleton, 1846), p. 182. As citações de ambos os autores são encontradas, respectivamente, nas páginas 23 e 25 do artigo.
[14] Vitor Galdino Feller, A verdade ou a vida?, A Notícia, 30 de Março de 2009, nº 24821, 1º caderno, artigo, p.7. O artigo saiu em defesa do dom José Cardoso Sobrinho, bispo de Olinda e recife, criticado por excomungar uma menina de 9 anos, por ter abortado de gêmeos após ser abusada sexualmente pelo padrasto. O caso gerou protestos internacionais contra a Igreja Católica, a qual foi criticada até pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A despeito disso, as considerações do Padre Feller merecem atenção.
[15] Uma excelente crítica ao relativismo pós-moderno é Isaac Malheiros, Absolufobia no reino do relativismo, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com .
[16] Ver Douglas Reis, O herói que não vencia, capítulo2 de Paixão Cega (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2010).
[17] Em crônica publicada em 7 de Outubro de 1967 no Jornal do Brasil, em Clarice Lispector, A descoberta do Mundo, Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente, org. (Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1999), p. 37.

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