A maioria
dos autores reconhece a Reforma Protestante como um movimento primeiramente
religioso. Quando Martinho Lutero, que lecionava em Witemberg, afixou 95 tese
contra as indulgências papais, em 31 de Outubro de 1517, iniciou-se um
despertamento bíblico, ao mesmo tempo que uma controvérsia entre a posição
tradicional mantida pelo Catolicismo e o que aquele monge alemão ensinava.
“Basicamente […] até os adversários romanos e alemães cultos de Lutero poderiam
ter visto onde ele estava certo, se não tivessem colocado os interesses do papa
acima da compreensão das escrituras.” [1] Apesar de essencialmente
religiosa, a mensagem de Lutero ocasionou uma nova forma de se entender o plano
geral de Deus para o homem nesta vida.
Basta nos
lembrarmos de que a sociedade medieval, a partir de sua estrutura eclesiástica,
separa o clero dos leigos, discriminando os últimos, como se fossem “cristãos
de segunda classe.” Lutero se levantou contra essa distorção:
[…]
todos os cristãos são verdadeiramente de estado ‘clerical’, isto é, espiritual,
e não há qualquer diferença entre eles, a não ser, exclusivamente, por força do
seu ofício, conforme Paulo diz em 1 Coríntios 12.12ss: todos somos um corpo,
mas cada membro tem sua própria função, com a qual serve ao outro: tudo isso
faz com que tenhamos um batismo, um evangelho, uma fé e sejamos cristãos
iguais, porque batismo, evangelho e fé é que exclusivamente tornam as pessoas
espirituais e cristãs. [2]
Max Weber,
em seu trabalho clássico sobre a relação entre a mentalidade protestante e o
surgimento do capitalismo, apresenta algumas das consequências das declarações
feitas pela pena de Lutero. Para Weber, a Reforma tinha como resultado uma
“regulamentação levada a sério” no que diz respeito à “conduta de vida como um
todo, que penetrava todas as esferas da vida doméstica e pública até os limites
do concebível.” Essa nova visão afetou, inclusive, a maneira de enxergar o
trabalho: surgiu a ideia de trabalho no sentido de “missão”, “vocação
profissional”, “desígnio divino” [3] Tal visão, baseada em uma compreensão
bíblica do mundo, conferiu dignidade à toda profissão. Como diz Schaeffer: “A
vocação de um comerciante ou de uma dona de casa honesta passava [a partir da
Reforma] a ser vista como tão digna quanto a do rei.” [4]
No campo
cultural, a Bíblia tornou-se “o principal sustentáculo da cultura popular”,
passando a influenciar a “forma de pensar do povo, inclusive das pessoas não
religiosas.” [5] Assim é justo que Schaeffer faça distinção entre autores
cristãos em dois sentidos: (1) o convencional (ou seja, aquele que aceitou a
Cristo e suas doutrinas) e (2) quem “vive dentro dos limites do consenso gerado
pelo Cristianismo. [6] Em várias áreas do conhecimento, sentiu-se o
influxo da Reforma: nas Ciências, Artes Plásticas, Música, Política,
Literatura, etc.
O pensamento
protestante é herdeiro da tendência luterana de considerar o trabalho não
meramente como um “meio de vida”, porém tido por digno aos olhos de Deus. “Nos
capítulos iniciais de Gênesis, aprendemos que os seres humanos foram criados à
imagem de Deus, para refletir o seu caráter, portanto, somos convocados para
refletir a sua atividade criativa através da nossa própria criatividade –
cultivando o mundo, extraindo o seu potencial e dando-lhe forma. Todo trabalho
tem dignidade, como uma expressão da imagem divina.”
[7] Ellen
White pinta, com cores vivas, a importância do trabalho:
[...]
todo serviço que fazemos e que é necessário ser feito, seja lavar a louça, pôr
a mesa, cuidar de um doente, cozinhar ou lavar, é de importância moral [...] As
humildes tarefas que estão diante de nós, devem ser executadas por alguém; e os
que as fazem devem sentir estarem realizando uma obra necessária e honrosa, e
que em sua missão, por humilde que seja, estão fazendo uma obra de Deus, tão
certo como o estava Gabriel, quando enviado aos profetas. Todos, em suas
respectivas esferas, estão trabalhando por sua ordem. As mulheres em seu lar,
cumprindo os simples deveres da vida que precisam ser atendidos, podem e devem
manifestar fidelidade, obediência e amor tão sinceros como os anjos em sua
esfera. A conformidade com a vontade de Deus torna qualquer obra que precise
ser feita uma tarefa honrosa. [8]
Cada pastor
precisa fornecer aos membros de sua igreja de que o trabalho (mesmo no que se
refere ao trabalho secular) é sagrado e deve ser executado dentro de uma
perspectiva cristã, contribuindo para representar a criatividade com a qual
Deus nos dotou e redundar na glória do Senhor. Em tudo quanto fizermos através
de nossas mãos, devemos representar Aquele que nos criou, redimiu e em breve
virá nos resgatar, influenciando à Sociedade ao redor – eis uma forma de atuar
como “sal da terra” (Mateus 5:13).
[2] Martinho Lutero. “À nobreza cristã de nação
alemã, acerca do melhoramento do estado cristão”, in Pelo Evangelho de Cristo.
Porto Alegre, Concórdia editora Ltda;
São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, 80.
[3] Max Weber. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo,
Companhia das Letras: 2005, 30, 72,73, 77. Edição de Antônio
Flávio Pierucci, 3ª reimpressão.
[4] Francis Schaeffer. Como viveremos? São Paulo, Editora Cultura Cristã:
2003, 52-53.
[5] Felipe Fernández-Arnesto, Derek Wilson. Reforma: o Cristianismo e o mundo
1500-2000. Rio de Janeiro; São Paulo, Editora Record: 1997,
66.
[7] Charles Colson, Nancy Pearcey. O cristão na cultura de hoje: desenvolvendo
uma visão de mundo autenticamente cristã. Rio de Janeiro, Casa Publicadora
das Assembleias de Deus: 2006, 174-175. Vale notarmos que a autora
Nancy Pearcey é luterana.
[8] Ellen White. Testemunhos Seletos, vol. 1. Tatuí: 2006, 297-298.
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