O cotidiano é muito mais do que a
rotina estabelecida, o número de atividades que cabe em um dia: trata-se,
principalmente, de como se percebe o tempo. A vida cotidiana na contemporaneidade
é marcada pela dispersão. Dispersão de propósitos, em meio a tantas opções de
modelos de vocação; dispersão de identidade, em meio à possibilidade de se
reconfigurar e assumir diversos papéis; dispersão do próprio tempo, com a
valorização engajante do momento presente – a vida, entendida como um processo,
uma série de etapas, fica reduzida ao momento presente, ao agora. Isso é o que
importa.
Em contrapartida, pela ótica bíblica, até as atividades cotidianas fazem parte da providência divina (Ec
3:12-13), porque cada atividade humana encontra, na forma ilustrativa do sábio
dizer, um tempo determinado (Ec 3:1-8). Todas as atividades elencadas são
realizadas dentro do tempo; aliás, são mencionados recortes, momentos da
existência humana, os quais são vislumbrados da perspectiva finita – deve-se notar a
expressão “debaixo do céu”, um marcador usado no livro de Eclesiastes quando se fala do ponto
de vista secular, para formar um contraste com a vontade de Deus, geralmente
apresentada em seguida.
As atividades humanas são logo
confrontadas com as atividades divinas, insondáveis e misteriosas (Ec
3:11), eternas e perfeitas (Ec 3:14). Em Eclesiastes, embora a vida pareça
cíclica (Ec 1:4-11; 2:12; 3:15), ou, ao menos, aborrecidamente repetitiva, é preciso dizer que o foco do livro não é a apresentação de uma filosofia da história. O
que se pretende é discutir o propósito da vida (Ec 1:3, 14; 2:11; 12:1-7); a
solução final do livro constitui um retorno à sabedoria bíblica (Ec 2:26; 7:12,
19; 8:1; 9:18; 10:10) – portanto, o que se vê em Eclesiastes é um modo não convencional
de apresentar o ensino tradicional. A sabedoria ganha expressão no fim do livro
diante do horizonte desenhado por Deus – preparar-se para o julgamento divino
por meio de uma vida de obediência (Ec 12:13-14). Diante de realidades
inexoráveis como a morte (Ec 12:1-7) e o julgamento, nada melhor do que uma
vida sábia e comprometida com os mandamentos.
No Novo Testamento, Jesus também
trata da adoção da perspectiva correta para o cotidiano. Se a vida gravitar
essencialmente na aquisição de roupas ou provisão de alimentos (Mt 6:25), isso
não seria evidência de que o dinheiro ocupa o lugar de Deus (Mt 6:24)? Os dois
versos são ligados pela preposição grega Διὰ, que, entre vários
significados, pode ser traduzida como “através de”, “devido a”, “de outra feita”,
“eficazmente”, “de forma adequada”, “por causa de”, etc. Assim, Mateus 6:25-33
seria uma continuação de Mateus 6:19-24. A impossibilidade de “servir a dois
senhores” (Mt 6:24) seria uma conclusão inicial da atitude de ajuntar riquezas
(Mt 6:19), ecoando na observação de que a vida é mais do que o que se têm (Mt
6:25) e na instrução de tornar o Reino de Deus uma prioridade (Mt 6:33) – o que
implica em escolher servir a um só Senhor de forma integral e comprometida.
A excessiva preocupação em
conseguir as coisas básicas da vida, resumindo o cotidiano ao imediatismo, é
assinalada como maneira de viver pagã (Mt 6:32, ou, literalmente, dos gentios).
Uma vida sem Deus leva a um cotidiano ordinário, sem a devida confiança na
providência. Não é possível reconhecer o cuidado divino sobre os seres mais
simples, o extraordinário sustentando invisivelmente o ordinário; ao contrário, Jesus apresenta o cuidado detalhista de Deus sobre as aves
do céu (Mt 6:26) e os lírios do campo (Mt 6:28-30). Jesus termina Seu
ensinamento afirmando que Seus discípulos não deveriam se preocupar “com o
amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu
próprio mal.” (Mt 6:34). Evidentemente, deve-se ter cuidado para não
interpretar isso como total falta de planejamento ou descaso contra o futuro.
Preocupar-se aqui (greg.: μεριμνάω) significa estar dividido, mostrar-se
distraído ou, diríamos, sem foco. Isso apresenta uma interessante ligação com o
coração divido entre dois senhores (Mt 6:24). As preocupações quanto ao futuro
não podem levar à dependência de recursos próprios, enquanto se olvida o
foco espiritual e se deixa de enxergar a providência divina.
Seja no Antigo ou no Novo Testamento, o cristão encontrará
incentivo para entender que a vida é mais do que o agora. A vida não é usufruto
constante de prazeres imediatos, sem responsabilidade. O que os sentidos humanos
percebem não esgota a existência. As Escrituras conclamam a todos a gastarem
seu tempo com responsabilidade, enquanto confiam na providência e se preparam
para o julgamento. O cotidiano humano não é algo isolado da esfera em que Deus
atua. Ele Se faz presente no tempo e atua em favor de todos, o que é
efetivamente aproveitado por aqueles que reconhecem Seu cuidado e correspondem
com Seus planos.
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