Em primeira instância, o Dr. Bandarra se vale de um conceito popular para aquilatar a fé cristã. Para o autor, "a fé é uma força de intolerância importante no mundo", uma vez que sua característica mais perceptível seja a irracionalidade. A argumentação circular até chega a admitir que "fé sempre é irracional. Senão, não seria fé. Seria evidência." O equívoco é flagrante: embora a fé exija confiança (presente no termo grego "pistis"), esta confiança está condicionada a um relacionamento com Deus e às evidências que Ele fornece. Fé e evidência não são elementos mutuamente excludentes, tanto que a palavra hebraica para fé traz a conotação de algo correto, confiável, digno de crédito. A tradução de Hebreus 11:1, segundo sugerem alguns comentários, poderia perfeitamente ser: "Agora, fé é a substância das coisas esperadas [uma espécie de prêmio antecipado], a evidência das coisas que não se vêm." A genuína fé cristã se relaciona com a evidência bíblica (Rm. 10:17), mas também com a própria realidade externa, dentro da ótica de um Universo aberto. (para uma discussão mais ampla sobre diferentes concepções de realidade, veja mais aqui e aqui).
Outra confusão recorrente na mídia em geral é tomar racionalismo por racionalidade. O primeiro se refere a uma postura filosófica, para qual a necessidade de metafísica fica reduzida ao campo do incognoscível ou, pior, do inexistente. Para o racionalista, a razão humana é plenamente confiável e constitui nosso único guia para o conhecimento dentro do universo fechado. Mas, curiosamente, o racionalismo acaba levando à irracionalidade (além da referência anterior, consultar "A racionalidade e suas travas"). A racionalidade, para um teísta bíblico, é algo admissível, sem representar um fim em si mesma, porque se entende que a razão não expressa o homem em sua totalidade, além de a razão ter sido afetada pelo pecado. Assim, mesmo a razão pode ser vítima de uma vontade distorcida, fazendo do otimismo humanista mera ilusão (leia sobre isto aqui).
Além das confusões supra-citadas, o médico de Porto Alegre relativiza o Cristianismo. Bandarra se esquece (ou desconhece) que, mesmo em uma leitura superficial dos evangelhos se chega à conclusão de que Jesus não deixou muitas opções; Cristo tratava a verdade como algo absoluto, oferecendo aos Seus ouvintes a oportunidade de crer ou descrer, nada mais. Quando ouvimos de Seus lábios a sentença "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim." (Jo. 14:6), não podemos imaginar que haja um espaço para verdades alternativas - afinal, Ele não afirmou ser "um dos possíveis caminhos, uma das prováveis verdades e um tipo de vida". A segunda afirmação é ainda mais radical: "ninguém vem ao Pai, senão por mim". Sem dúvida, Jesus mostrou-Se audacioso em negar outros sistemas religiosos enquanto reivindicava a veracidade exclusiva de Sua própria Pessoa e de Suas doutrinas. Cristianismo mais ameno ou "tolerante" do que isso não corresponde à intenção original do Messias audacioso.
Da ótica de que o cristão é governado por uma Revelação supra-natural, que transcende o mundo físico sem negá-lo, a seguinte acusação se torna descabida: "[...] Assim, crer em que Jesus do mito foi Deus faz parte das possibilidades das pessoas simples em se enganarem e serem enganadas por pregação, textos e imagens criadas com este fim. A cristandade não inovou isto, a não ser negando o judaísmo. Assim com as crenças em deuses que foram descartados com o tempo e melhor reflexão. O que mostra que não são imortais e nem que os sentimentos sejam bons conselheiros da verdade." Seja o que for que o autor tenha tentado expressar com esse texto truncado, não fez mais do que criar uma multidão de sons desconexos. O Cristianismo não é uma fuga, mas uma interpretação da realidade, que deve ser avaliado em suas propostas, assim como o Naturalismo esposado por Bandarra. Acontece que é mais cômodo atribuir à fé cristã a categoria de irracionalidade, de mito, para descartá-la como possível concorrente de uma postura racionalista. Curiosamente, o doutor de Porto-Alegre critica acidamente o Cristianismo, sem abrir a possibilidade para que se questione sua filosofia pessoal, tratando-a a priori como verdadeira e superior, numa nítida demonstração de falta de senso auto-crítico.
O que se percebe, sobretudo, é uma estratégia antiquada: a negação da plausibilidade do Cristianismo a partir de seu livro-texto, a Bíblia, taxado como mitológico. Perceba-se a falta de nexo e embasamento histórico na construção medíocre de Bandarra: "Assim, este homem que nada deixou escrito e sabemos apenas por seus propagandistas não mostrou dotes superiores. Podia menos do que o mito de Moisés. Fez muito menos e durou pouco tempo para um profeta do antigo testamento. Que, por sinal, nem sabemos de que forma foi escrito, pois não existem provas de que Matheus, Lucas, Marcos e João realmente escreveram os chamados evangelhos sinóticos, e assim mesmo foram escritos décadas depois de ocorrido os fatos. Fácil de inventar vaticínios, profecias de ocorrências anteriores do escrito. Nada de novo na história do ilusionismo. E aqueles textos que desagradaram o catolicismo foram destruídos definitivamente."
Pobre doutor, hóspede em Teologia! Ninguém lhe avisou que (1) Jesus, embora não deixando registros escritos, influenciou a mentalidade ocidental muito mais do que qualquer outro na História; (2) O próprio Moisés era um instrumento humano, que cometeu falhas, enquanto Cristo foi tido como isento de pecado (Hb. 4:15); (3) João não escreveu nenhum evangelho sinótico, porque apenas os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são considerados sinóticos (ou seja, são semelhantes entre si); (4) Numa cultura em que não havia facilidade de se registrar literariamente fatos, a memória era muito importante e, por isso, os estudiosos atribuem a preservação das palavras de Jesus à tradição oral, o que combina com o método que Lucas usou para escrever seu relato da vida de Jesus (Lc 1); (5) Os evangelhos ditos apócrifos foram rejeitados séculos antes do surgimento do Catolicismo. Qualquer leitor bem informado conhece esses fatos que Bandarra ignora ou finge não saber (Leia mais sobre a autoria dos evangelhos e resposta aos críticos aqui e aqui).
De fato, a leitura da Bíblia feita em "O ovo da intolerância" prova as lacunas intelectuais de seu redator. Ler apressadamente um texto pode levar a conclusões aparentemente cabíveis, que, sob análise mais acurada, mostram-se estapafúrdias. Quem lesse, por exemplo, o parágrafo citado acima, escrito pelo senhor Paulo Bandarra, chegaria à indubitável conclusão de que não se estuda gramática ou rudimento de lógica nas faculdades de Medicina, percepção que o convívio com médicos mais respeitáveis facilmente desfaria! Semelhantemente, o descuido com a leitura da Bíblia e a ignorância com relação aos debates teológicos mais recentes desqualificam o trabalho do bem intencionado residente de Porto-Alegre.
De alguém que apresente esta deficiência quanto à leitura da Bíblia, é de se esperar que leia de forma igualmente seletiva opiniões contrárias às suas, como de fato pode-se ver que Bandarra tem feito em relação ao que escrevi. Mas ninguém pode negar que o Cristianismo forneceu as bases para uma revolução cultural, inclusive científica, a partir do século XXVI (Veja mais sobre isto). Seria mais produtivo que Bandarra avaliasse a questão sobre as origens a partir das duas propostas, Criacionismo e Evolucionismo, levando em conta que ambas possuem um elemento científico e outro filosófico. A partir daí, ele poderia verificar as evidências que favoressem esse e aquele modelo, para optar, racionalmente, qual das duas propostas possui maior coerência. Seria pedir demais?
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