Seus olhos sondam o ambiente ao redor – não há portas, janelas, dutos de ventilação. O galpão é completamente fechado, não se ouve o menor ruído do lado de fora. Ninguém entra ali para incomodá-lo, fazer ameaças ou simplesmente manter algum tipo de contato. A realidade é exatamente como você a vê, o que está no ambiente presente e pode ser conhecido de forma objetiva; talvez nem exista um motivo ou sequer um responsável pelo seu cativeiro. De qualquer forma, uma hipótese que tentasse explicar a situação não teria como ser comprovada.
O estranho quadro acima não descreve a situação de um refém sequestrado por criminosos ou mesmo mantido em alguma prisão militar. O cativeiro descrito é onde se encontra o homem do Pós-Modernismo. A concepção da realidade, a partir do período iluminista, atravessando a Modernidade até o advento da Pós-Modernidade, impede o homem de se realizar, enquanto ser pessoal, aprisionando-o em um Universo vazio[1]. A única esperança existe em bases subjetivas, fantasiosas. A realidade é implacavelmente desesperadora.
De alguma maneira, o apóstolo Pedro, ao prevenir os crentes do 1 séc d.C. sobre a influência de certos “escarnecedores”, descreve um tipo de raciocínio que vem prevalecendo há séculos no Ocidente (2 Pe. 3:3). Vamos acompanhar as declarações de Pedro, procurando traçar paralelos com o que enfrentamos em nossa própria época, esboçando sucintamente o desenvolvimento histórico do que veio a ser conhecido como Pós-Modernidade. Sem ter a intenção de apresentar toda a ideologia pós-moderna em minúcias, fornecemos um quadro geral para habilitar todo seguidor de Jesus a lidar com os desafios desta época.[2]
QUANDO AS PORTAS SE FECHARAM
“Antes de tudo saibam que, nos últimos dias, surgirão escarnecedores zombando e seguindo suas próprias paixões. Eles dirão: ‘O que houve com a promessa da sua vinda? Desde que os antepassados morreram, tudo continua como desde o princípio da criação’.” 2 Pe. 3:3-4, NVI.
As críticas à esperança na segunda vinda de Cristo repercutiam no final da era apostólica. Não é simplesmente o aparente atraso de Jesus que pende na balança – a própria impossibilidade de uma intervenção divina está no cerne do argumento, porque, para os críticos, “tudo continua como desde o princípio da criação.” A alegação sobre a falta de evidências de que um deus superior atuasse no mundo físico mina o senso de alerta e preparo que Pedro evoca no contexto do julgamento prestes a vir (1 Pe. 1:13; 2:23; 4:45; 5:1; 2 Pe. 2:4-16). Esta visão dos críticos, conforme esboçada pelo apóstolo Pedro – (1) Não há intervenção divina na história humana, (2) Não há um Deus ou entidade superior a quem prestar contas e (3) Tudo o que há é o que se apresenta no mundo físico, o qual permanece inalterável –, é compatível com os pilares do Naturalismo, uma visão de mundo concorrente com a fé cristã. O Naturalismo moldou o curso da História, levando o Ocidente da Idade Média à Idade Moderna. O fruto mais recente do Naturalismo é o Pós-Modernismo.[3]
Como o Naturalismo surgiu no mapa do Ocidente, vindo a desbancar Deus de Seu lugar na consciência do indivíduo e de Seu papel como fundamento para a ordem social? De certa forma, o abandono de noções cristãs, entre as quais citamos Criação, Providência e Mordomia, se deu através do desenvolvimento tecnológico do homem no século XVII, culminando na revolução Científica, que, de forma curiosa, foi promovida dentro de uma mentalidade predominantemente cristã. O homem tratou de conceber o Universo como uma máquina em funcionamento. Bastava o conhecimento necessário sobre os mecanismos para dominar a Natureza. Deus passou a ter um papel reduzido neste quadro: do “Relojoeiro” desinteressado em Sua obra no Deísmo para uma crença desnecessária no Naturalismo Ateísta, sendo, por fim, banido do Ocidente.[4]
Agora, o homem era o centro, com suas conquistas tecnológicas e seus sonhos com uma sociedade que colhesse os benefícios do conhecimento científico. Chegamos à Modernidade, “um feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente”, processos estes relacionados ao capital, à dinâmica do trabalho, aumento da autoridade política, fomentação de identidades nacionais, secularização, entre demais características “modernas”[5]. Com justiça, constatou o teólogo Hans Küng que foram atribuídas ao progresso “qualidades quase divinas, como eternidade, onisciência, onipotência e excelência […] Nasceram a auto-determinação humana e o poder humano sobre o mundo – uma religião substituta para um número cada vez maior de pessoas.”[6]
Todavia, esta revolução no pensamento Ocidental desencadeou uma profunda dicotomia entre a realidade e a esperança, jamais superada pelos filósofos da Era Moderna. Para entender melhor esta questão, vamos averiguar mais de perto as premissas naturalistas em seus resultados práticos.
DEMOLINDO OS ALICERSES DA ESPERANÇA
Ao assumir o Naturalismo como bússola, a Modernidade viu desvanecer os valores tradicionais que faziam parte do legado cristão do Ocidente. Pensemos na moralidade, nosso senso de discriminar as ações entre corretas e incorretas. Sem a presença de um Deus pessoal, torna-se impossível determinar de forma universal o que é o Bem e o que é o Mal. O raciocínio é simples: se Deus não Se importa com o mundo ou simplesmente não existe, não temos ninguém a quem prestar contas, ninguém que nos veja (1 Pe. 3:8-12). Como alguém já notou, “entre a primeira palavra da criação de Deus e a última palavra de seu julgamento o nosso modo de viver é a nossa resposta à Palavra de Deus. […] O que fazemos então, quando ninguém a não ser Deus nos vê, é este o verdadeiro teste de nossa responsabilidade.”[7] Sem Deus, cai por terra o senso de prestação de contas (Mordomia Cristã). Somos livres para viver da forma como bem entendemos.
Um outro ponto que afeta a compreensão básica de moral tem que ver com o senso de propósito para a existência humana. Observe como o biólogo Richard Dawkins, conhecido partidário do Naturalismo, fala sobre as implicações do evolucionismo sobre o senso de propósito: “O processo verdadeiro que dotou as asas e os olhos, os bicos, os instintos de procriação e todos os demais aspectos da vida de uma intensa ilusão de plano proposital está agora bem entendido. É a seleção natural darwiniana. Nossa compreensão disto, de modo espantoso, chegou até nós recentemente, no último século e meio. Antes de Darwin, mesmo as pessoas instruídas que haviam abandonado as perguntas do tipo ‘por quê?’[ou seja, questionavam o propósito destas coisas] com respeito às rochas, cursos d’água e eclipses ainda aceitavam implicitamente este tipo de pergunta sempre que dizia respeito às criaturas vivas. Agora apenas os cientificamente analfabetos a fazem.” Em outro livro, Dawkins deixa claro que apenas os loucos depositariam “as esperanças de sua vida no destino final do cosmo”; para ele, “todo tipo de ambições e percepções humanas” regeriam nossa vida[8], ao invés de algum senso de propósito transcendente, uma vez que a natureza é fruto do acaso e do trabalho cego da seleção natural.
Há tremendas implicações na admissão do conceito naturalista de um universo fechado regido por forças impessoais. Se não existe um propósito para a existência humana, e estamos fadados a ter no mundo físico a única realidade externa, acaba todo o fundamento para o estabelecimento de conceitos como Bem e Mal, já que num mundo manchado pelo pecado, Bem e Mal andam de mãos dadas, só podendo ser explicados e diferenciados por algum referencial externo ao próprio mundo (o que a Teologia chama de “Revelação especial”, ou seja, a atividade profética que se acha registrada na Bíblia). Dinesh D’Souza assim resume as consequências da visão naturalista: “ O homem nada mais é do que matéria em movimento. A alma? Um produto da fantasia. A vida após a morte? Um mito. O propósito humano? Uma ilusão.”[9]
Leia a segunda parte
[1] Esta descrição é uma ampliação das afirmações de James W. Sire, no seu clássico “O Universo ao lado: a vida examinada:” (São Paulo, SP:Editora Hagnos, 2004), p. 106.
[2] Em certo sentido, o texto bíblico de que iremos tratar já tem sido explorado em suas implicações contrárias à concepção de um universo fechado até por autores não-adventistas; para um exemplo, ver Michael Green, “II Pedro: Introdução e Comentário” (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2007), série Cultura Bíblica, 5ª reimpressão, pp. 121-124.
[3] “O pós-modernismo como apresentado não é uma cosmovisão completa. Mas é uma perspectiva que tem modificado várias cosmovisões, sendo uma das mais conhecidas o naturalismo. Na verdade, o melhor caminho para pensar sobre grande parte do pós-modernismo é vê-lo como a mais recente fase do moderno, a mais recente forma de naturalismo.” James Sire, opus. cit., p.232.
[4] Uma interessante e sucinta história do surgimento da Ciência, dentro de um contexto cristão, e seu desenvolvimento cada vez mais autônomo, sob o influxo do Naturalismo, pode ser encontrada em Colin A. Russel, “Correntes cruzadas: interações entre a ciência e a fé” (São Paulo, SP: Hagnos, 2004).
[5] Jürgen Habermas, “O discurso filosófico da modernidade” (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998), p. 14
[6] Hans Küng, “A Igreja Católica” (Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2002), p. 190.
[7] Os Guiness, “O Chamado: uma iluminadora reflexão sobre o propósito da vida e seu cumprimento” (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2001), pp.99 e 101.
[8] Richard Dawkins, “O Rio que saía do Éden: uma visão darwiniana da vida” (Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1996), p. 91 e “Desvendando o arco-íris: Ciência, ilusão e encantamento” (São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000), p. 9. Grifos meus.
[9] Dinesh D’Souza, “A verdade sobre o Cristianismo: Por que a religião criada por Jesus é moderna, fascinante e inquestionável” (Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2008), p.46. O autor está parafraseando o pensamento de Daniel Dennet, autor de “A perigosa Ideia de Darwin”.
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