É
bem propalado o polêmico julgamento do astrônomo Galileu Galilei pelos
tribunais do Santo Ofício. Em 22 de Junho de 1633, o cientista florentino foi
considerado culpado e mantido sob inflexível vigilância. Mas culpado de quê? A
opinião pública em geral vê uma relação estrita entre a condenação de Galileu
com sua defesa do heliocentrismo, numa época em que a Igreja Católica advogava
o geocentrismo – baseada na premissa de que a Terra ocupava um lugar de
destaque na obra divina.
O
episódio protagonizado pelo cientista transmutou-se em um ícone da batalha
entre fé e ciência, explorado por iluministas e modernos de forma caricata.
Assim, a igreja (não mais o Catolicismo, mas a Cristandade em geral) passa por
defensora retrógrada de um tradicionalismo insustentável, enquanto a Ciência
ganha contornos de uma empreitada humana romântica e desafiadora, capaz de
conduzir a nossa espécie a um patamar miraculoso de desenvolvimento.
O
constrangimento por aquele julgamento histórico repercute no seio do
Catolicismo até a atualidade. Em 15 de Fevereiro de 2009, o arcebispo
Gianfranco Ravasi, presidente do conselho pontifício para a cultura, rezou uma
missa para Galileu e em comemoração ao ano da Astronomia. Vários cientistas
assistiram à cerimônia, que teve lugar na basílica de Santa Maria degli angeli.
[1] No mesmo local, membros da Federação Mundial de cientistas organizaram uma
exposição intitulada “Testemunho cultural da ligação existente entre razão, fé
e ciência”, composta de obras de artistas contemporâneos. A exposição reconta
as descobertas de Galileu, a quem, juntamente com Darwin, recebe homenagens
através de iniciativas culturais promovidas pelo Vaticano. [2]
Ao
contrário do que se faz crer, a condenação de Galileu não foi um ato originado
tanto pela descoberta em si quanto por uma série de fatores históricos. Às
ciências, no distante século XXVII, era dado um tratamento filosófico. Em
geral, a prática científica se pautava por deduções lógicas, levando a
conclusões a priori (a La Aristóteles), ao contrário de seguir observações
empíricas. A própria Teologia, a partir de Tomás de Aquino, buscava uma
reconciliação com a filosofia aristotélica, então dominante. Copérnico, quando
propôs o heliocentrismo, agia mais pela influência do neoplatonismo do que por
descobertas comprováveis. [3]
Mas
não tardou para as concepção aristotélica sofresse um revés quando o astrônomo
Kepler propôs que a Terra se movia em órbitas elípticas. [4] Em meio a tanta
mudança de paradigma, a divulgação dos trabalhos de Galileu poderiam marcar
apenas mais um capítulo. O diferencial foi a própria forma como o cientista de
Florença reagiu à censura.
Em
21 de Dezembro de 1613, através de uma carta, Galileu expressou sua confiança
na Bíblia como padrão de moral, embora julgasse que as Escrituras não deveriam
servir de empecilho para os “direitos do pensamento científico”. Quase 20 anos
após, ele publicou seu Diálogo, no qual apresenta 3 personagens: Simplício, arquétipo
da filosofia cristã de seu tempo, moldada pelas opiniões de Aristóteles. Em
oposição a esta personagem, encontramos Salviati, figura do empreendedorismo da
ciência, “observador agudo, raciocinador prudente, nunca dogmático”. Tais
características de Salviati atraem a admiração de Sagredo, o terceiro
participante, o qual representa o novo homem de um novo tempo, já cansado de superstição
e decidido a se aventurar pelo progresso prometido pelo colega. [5]
A
obra Diálogo foi considerada um insulto, e na personagem Simplício (em Latim
“Simplório”) se via uma caricatura do papa. Ainda que Galileu tenha recebido
punição menos rigorosa, levando-se em conta que muitos “hereges” tinham sido
queimados e torturados, é necessário reconhecer que a Igreja Católica agiu fora de sua
competência ao atribuir isolamento ao cientista, além de censurar sua
correspondência e privá-lo de expor livremente suas ideias. Do lado
protestante, embora a aceitação do heliocentrismo tenha gerado alguma
controvérsia, parece que Calvino, um século antes estabelecera as bases para se
analisar as descobertas científicas aparentemente contraditórias com a Bíblia:
para o reformador, o “Espírito Santo se acomodava aos usos tradicionais da
época ao falar do mundo natural” e isto com respeito à linguagem empregada
pelas Escrituras, e não sobre os eventos em si [6].
No
caso em que Deus suspendeu temporariamente a rotação terrestre a pedido de
Josué (Js 6:12-14), o texto diz que o “sol se deteve” apenas porque, a olhos
comuns, e séculos antes da invenção de lunetas e observatórios astronômicos,
era o sol que se movia, e não a Terra! Mas a narrativa bíblica não pode ser
tomada como fantasiosa somente por acomodar-se à cultura antiga (mesmo na
atualidade, nós nos referimos ao “pôr do sol”, como se fosse o sol que
andasse…).
A
verdade é que, o incidente com Galileu abriu precedentes, ajudando a alimentar
o clima de animosidade entre religiosos e cientistas, hoje vistos como grupos
antagônicos. Embora nada justifique a intromissão católica, Galileu também teve
sua parcela de culpa, ao polemizar de forma desrespeitosa com oficiais da
igreja, traindo um acordo que mantinha com a Santa Sé. Parece que, a partir
do episódio, um cisma entre ciência e fé tornou-se inevitável no Ocidente. Entretanto,
a jornada da Ciência, que adotou conceitos naturalistas ligados ao projeto do
Iluminismo (e que resultou num divórcio da razão com a religião cristã)
mostrou-se insuficiente para a promoção do progresso autônomo da humanidade, em todas as áreas. Ganhamos com o avanço tecnológico, mas perdemos com a visão
mecanicista do homem. Usando as personagens do diálogo de Galileu, poderíamos
dizer que Sagredo se decepcionou com Salviati. A maior lição que podemos
aprender com a história é que se há oposição entre Cristianismo e Ciência, pelo
menos um dos dois lados está equivoca – senão ambos! A verdadeira fé não
conflita com a verdadeira ciência, como Newton, Kepler, Pascal e tantos outros
bem souberam mostrar.
[1] “Em 400 anos, missa para Galileu”, Diário catarinense, ano 23, nº 8.333, 15 de Fevereiro de 2009,
seção mundo, 28
[2] “Missa é celebrada pelos 445 anos de nascimento de Galileu”, disponível
em .
[3] Colin A. Russell, Correntes Cruzadas: interações entre a
ciência e a fé (São Paulo, SP: Hagnos, 2004), 38, 40.
[4] Idem, 44.
[5] Antonio Banfi, Galileu (Lisboa; Edições 70, 1992), 20, 23.
[6] Colin A. Russell, Correntes Cruzadas, 51-ss.
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