quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A UM OVO PODRE NÃO SE CHOCA

É difícil dizer o que mais choca (com o perdão do trocadilho) em "O ovo da intolerância", texto palavroso e desnecessariamente arrogante de um certo médico de Porto Alegre. O senhor Paulo Bandarra, autor da "peça", podia nos poupar de seus descuidos gramaticais gritantes e de seu raciocínio tortuoso. Acima de tudo, seu preconceito salta à vista. Ele não esconde sua fúria justiceira contra os cristãos. Ora, até aí nada de assombroso, estamos em um país livre. No demais, sua escrita poderia passar sem ser notada, por sequer se mostrar digna de alguma atenção. Todavia, quem sabe ocorra que alguma alma bem intencionada se confunda com as linhas virulentas de Bandarra; diante desta possibilidade, apresentamos algumas ponderações, para que os leitores imparciais comparem as linhas de argumentação e decidam por si mesmos pelo que lhes pareça mais razoável. Afinal, por mais que o Sr. Bandarra insista em atribuir irrazoabilidade à fé (talvez pretendendo vacinar o leitor contra os criacionistas), penso que o diálogo aberto ainda se constitui em uma maneira civilizada para se promover reflexão, tanto em nível pessoal, quanto social.

Em primeira instância, o Dr. Bandarra se vale de um conceito popular para aquilatar a fé cristã. Para o autor, "a fé é uma força de intolerância importante no mundo", uma vez que sua característica mais perceptível seja a irracionalidade. A argumentação circular até chega a admitir que "fé sempre é irracional. Senão, não seria fé. Seria evidência." O equívoco é flagrante: embora a fé exija confiança (presente no termo grego "pistis"), esta confiança está condicionada a um relacionamento com Deus e às evidências que Ele fornece. Fé e evidência não são elementos mutuamente excludentes, tanto que a palavra hebraica para fé traz a conotação de algo correto, confiável, digno de crédito. A tradução de Hebreus 11:1, segundo sugerem alguns comentários, poderia perfeitamente ser: "Agora, fé é a substância das coisas esperadas [uma espécie de prêmio antecipado], a evidência das coisas que não se vêm." A genuína fé cristã se relaciona com a evidência bíblica (Rm. 10:17), mas também com a própria realidade externa, dentro da ótica de um Universo aberto. (para uma discussão mais ampla sobre diferentes concepções de realidade, veja mais aqui e aqui).

Outra confusão recorrente na mídia em geral é tomar racionalismo por racionalidade. O primeiro se refere a uma postura filosófica, para qual a necessidade de metafísica fica reduzida ao campo do incognoscível ou, pior, do inexistente. Para o racionalista, a razão humana é plenamente confiável e constitui nosso único guia para o conhecimento dentro do universo fechado. Mas, curiosamente, o racionalismo acaba levando à irracionalidade (além da referência anterior, consultar "A racionalidade e suas travas"). A racionalidade, para um teísta bíblico, é algo admissível, sem representar um fim em si mesma, porque se entende que a razão não expressa o homem em sua totalidade, além de a razão ter sido afetada pelo pecado. Assim, mesmo a razão pode ser vítima de uma vontade distorcida, fazendo do otimismo humanista mera ilusão (leia sobre isto aqui).

Além das confusões supra-citadas, o médico de Porto Alegre relativiza o Cristianismo. Bandarra se esquece (ou desconhece) que, mesmo em uma leitura superficial dos evangelhos se chega à conclusão de que Jesus não deixou muitas opções; Cristo tratava a verdade como algo absoluto, oferecendo aos Seus ouvintes a oportunidade de crer ou descrer, nada mais. Quando ouvimos de Seus lábios a sentença "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim." (Jo. 14:6), não podemos imaginar que haja um espaço para verdades alternativas - afinal, Ele não afirmou ser "um dos possíveis caminhos, uma das prováveis verdades e um tipo de vida". A segunda afirmação é ainda mais radical: "ninguém vem ao Pai, senão por mim". Sem dúvida, Jesus mostrou-Se audacioso em negar outros sistemas religiosos enquanto reivindicava a veracidade exclusiva de Sua própria Pessoa e de Suas doutrinas. Cristianismo mais ameno ou "tolerante" do que isso não corresponde à intenção original do Messias audacioso.

Da ótica de que o cristão é governado por uma Revelação supra-natural, que transcende o mundo físico sem negá-lo, a seguinte acusação se torna descabida: "[...] Assim, crer em que Jesus do mito foi Deus faz parte das possibilidades das pessoas simples em se enganarem e serem enganadas por pregação, textos e imagens criadas com este fim. A cristandade não inovou isto, a não ser negando o judaísmo. Assim com as crenças em deuses que foram descartados com o tempo e melhor reflexão. O que mostra que não são imortais e nem que os sentimentos sejam bons conselheiros da verdade." Seja o que for que o autor tenha tentado expressar com esse texto truncado, não fez mais do que criar uma multidão de sons desconexos. O Cristianismo não é uma fuga, mas uma interpretação da realidade, que deve ser avaliado em suas propostas, assim como o Naturalismo esposado por Bandarra. Acontece que é mais cômodo atribuir à fé cristã a categoria de irracionalidade, de mito, para descartá-la como possível concorrente de uma postura racionalista. Curiosamente, o doutor de Porto-Alegre critica acidamente o Cristianismo, sem abrir a possibilidade para que se questione sua filosofia pessoal, tratando-a a priori como verdadeira e superior, numa nítida demonstração de falta de senso auto-crítico.

O que se percebe, sobretudo, é uma estratégia antiquada: a negação da plausibilidade do Cristianismo a partir de seu livro-texto, a Bíblia, taxado como mitológico. Perceba-se a falta de nexo e embasamento histórico na construção medíocre de Bandarra: "Assim, este homem que nada deixou escrito e sabemos apenas por seus propagandistas não mostrou dotes superiores. Podia menos do que o mito de Moisés. Fez muito menos e durou pouco tempo para um profeta do antigo testamento. Que, por sinal, nem sabemos de que forma foi escrito, pois não existem provas de que Matheus, Lucas, Marcos e João realmente escreveram os chamados evangelhos sinóticos, e assim mesmo foram escritos décadas depois de ocorrido os fatos. Fácil de inventar vaticínios, profecias de ocorrências anteriores do escrito. Nada de novo na história do ilusionismo. E aqueles textos que desagradaram o catolicismo foram destruídos definitivamente."

Pobre doutor, hóspede em Teologia! Ninguém lhe avisou que (1) Jesus, embora não deixando registros escritos, influenciou a mentalidade ocidental muito mais do que qualquer outro na História; (2) O próprio Moisés era um instrumento humano, que cometeu falhas, enquanto Cristo foi tido como isento de pecado (Hb. 4:15); (3) João não escreveu nenhum evangelho sinótico, porque apenas os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são considerados sinóticos (ou seja, são semelhantes entre si); (4) Numa cultura em que não havia facilidade de se registrar literariamente fatos, a memória era muito importante e, por isso, os estudiosos atribuem a preservação das palavras de Jesus à tradição oral, o que combina com o método que Lucas usou para escrever seu relato da vida de Jesus (Lc 1); (5) Os evangelhos ditos apócrifos foram rejeitados séculos antes do surgimento do Catolicismo. Qualquer leitor bem informado conhece esses fatos que Bandarra ignora ou finge não saber (Leia mais sobre a autoria dos evangelhos e resposta aos críticos aqui e aqui).

De fato, a leitura da Bíblia feita em "O ovo da intolerância" prova as lacunas intelectuais de seu redator. Ler apressadamente um texto pode levar a conclusões aparentemente cabíveis, que, sob análise mais acurada, mostram-se estapafúrdias. Quem lesse, por exemplo, o parágrafo citado acima, escrito pelo senhor Paulo Bandarra, chegaria à indubitável conclusão de que não se estuda gramática ou rudimento de lógica nas faculdades de Medicina, percepção que o convívio com médicos mais respeitáveis facilmente desfaria! Semelhantemente, o descuido com a leitura da Bíblia e a ignorância com relação aos debates teológicos mais recentes desqualificam o trabalho do bem intencionado residente de Porto-Alegre.

De alguém que apresente esta deficiência quanto à leitura da Bíblia, é de se esperar que leia de forma igualmente seletiva opiniões contrárias às suas, como de fato pode-se ver que Bandarra tem feito em relação ao que escrevi. Mas ninguém pode negar que o Cristianismo forneceu as bases para uma revolução cultural, inclusive científica, a partir do século XXVI (Veja mais sobre isto). Seria mais produtivo que Bandarra avaliasse a questão sobre as origens a partir das duas propostas, Criacionismo e Evolucionismo, levando em conta que ambas possuem um elemento científico e outro filosófico. A partir daí, ele poderia verificar as evidências que favoressem esse e aquele modelo, para optar, racionalmente, qual das duas propostas possui maior coerência. Seria pedir demais?

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