Todos saem da cama aos pulos, fazem fila para lavar o rosto em uma
tina larga e se assentam à mesa, enquanto a mãe tira do forno os pãezinhos de
batata, levemente impregnados com cheiro de fumaça, algo que provoca o
interesse dos agitados garotos, que, entre risos, cochichos, se banham à luz
sorrateira e crescente vinda da janela.
Josenoíno pisca para Joseantônio, em confirmação do pacto. No
momento em que oram pelo pão, Joseantônio tem de conter seu riso traquinas.
Aquelas ideias do primogênito sempre lhe rendiam alguns momentos de deleite
imaginativo, daqueles que acometem as crianças antes de aprontarem. Josemaria,
ao lado de Josenantônio ficou cutucando o irmão, rindo com ele. Às vezes,
Josenoíno censurava os dois cúmplices, olhando-os do outro canto da mesa, para
que o plano alcançasse êxito. Ao lado do mentor do grupo, Mariacândida
aproveitou o fim da oração para comer seu pão coberto de manteiga produzida em
uma fazenda vizinha. Ela era a segunda mais velha da casa, mas pouca
ascendência possuía sobre os meninos. Seu gênio brando contrastava com a índole
enérgica da mãe, cujas palavras saíam severas, como as das demais mães de
outrora, quase sempre a sobrepor disciplina à candura.
Ao lado da mãe, Mariazeferina pensava na trama dos irmãos. Queria
tanto ser amiga deles, mas, nas horas em que brincavam pelo campo, a mãe exigia
que ela ajudasse carregando a bacia com roupas para o rio. Mariazeferina já
estava na idade em que sua inteligenciazinha percebia que a mãe a treinava para
ser moça responsável apenas porque ela não era tão bonita quanto Mariacândida.
A evidência? A mais velha realizava sempre as tarefas mais leves. Anos mais
tarde, Mariacândida formou-se em direito e chegou a se tornar uma famosa
advogada – aliás, a única entre todos os irmãos que chegou a graduar-se em
nível superior. Nunca se casou.
Na outra ponta, entre desconsertado e alienado, estava
Joãojerônimo, que vinha depois de Mariacândida. Os vizinhos diziam que ele
deveria ter algum probleminha, embora o assunto jamais chegasse a ser comentado
muito próximo da fazenda em que o garoto morava com a família. Tabu de outros
tempos. Joãojerônimo sai logo após o desjejum com os irmãos, fato inédito.
Foram para uma colina, na extremidade das terras do pai. As árvores eram
sisudas, o rio lá embaixo translucidamente enrugado pelo vento. Os meninos
piscavam entre si, rindo tão desenfreadamente que Joãojerônimo ria com eles,
sem saber que ele era o motivo da graça toda. E tudo tinha que ver com um pneu,
ali perto, não casualmente depositado na véspera sob o comando de Josegenoíno.
Bastava um sinal…
Trouxeram o pneu, um baita exemplar de um caminhão Ford. Estava
coberto por limo recente e cheirava borracha queimada. Os irmãos ouviam
empolgados Josegenoíno contar da brincadeira que inventara – chama-a
“roda-rodopio”. Perguntou se havia alguém dos irmãos que teria coragem de
entrar na roda com ele. Seguiu-se um silêncio ensaiado. Inocentemente,
Joãojerônimo levantou a mão, extasiado. Todos os irmãos o aplaudiram, com
malícia e galhofa (não que ele percebesse). Todos se ofereceram para ajudá-lo a
se acomodar no interior do pneu. Josegenoíno, este mal continha o riso.
Em poucos instantes, as crianças empurraram o pneu ladeira abaixo.
Todos viram seu irmão descendo vertiginosamente. Era algo muito gozado ouvir os
gritos de Joãojerônimo, que somente agora percebia estar só no pneu. No fim da
ladeira havia uma curva acentuada à direita, a qual era interrompida por uma
árvore enorme. As crianças esperavam ver o pneu fazer a curva e trombar com o
tronco da árvore. Seria cômico, daquelas coisas que faz a gente rir por muitos
anos. Mas algo deu errado…
Ninguém combinou com o pneu que ele teria de acompanhar a curva.
Como descia embalado, ele continuou em linha reta, atravessando um cercado, e
indo finalmente parar em um lago. Nesta hora, os risos se tornaram gritos de
desespero. Os meninos desceram desesperados a ladeira, e chegaram no lago, a
ponto de ver o pneu boiando. Joãojerônimo conseguira sair e estava longe do
“roda-rodopio” dos irmãos. Poderia nadar até o pneu e boiar com ele. Poderia,
se soubesse nadar. Seus gritos passaram a exprimir um pânico gigantesco.
Ninguém sabia o que fazer direito. Alguns tentavam incentivar
Joãojerônimo a nadar para a margem, mas seus gritos mais o faziam
desesperar-se! Josegenoíno estava quase aos prantos, pensando no que
aconteceria com ele quando a mãe soubesse de quem partira a ideia do
“roda-rodopio”. Naquele momento, Josemaria tirou a camiseta e se lançou às águas.
Com braçadas firmes de menino de sítio, logo alcançou o irmão, que, desde a
entrada súbita no lago, bebera água por um mês inteiro!
Os outros irmãos conseguiram um galho seco. Estenderam-no a
Joãojerônimo e seu salva-vidas quando os viram mais próximos da margem. Ao
passar o susto, voltaram para casa. Ninguém dava um pio.
No zênite, Mariazeferina veio correndo, avisar Joãojerônimo que o
almoço estava servido. Ele se acorara perto do pasto, achando paz na
contemplação dos bovinos. “Você já soube?”, ele quis saber. “Já”. Depois de
alguns instantes, Mariazeferina sentou-se ao lado do irmão, ainda encharcado.
“Não liga, não. Agora, você faz parte do grupo deles. Quem me dera me jogassem
no lago…”
Nenhum comentário:
Postar um comentário