sábado, 6 de dezembro de 2008

QUEM ESCREVEU [COM TANTA IMPROPRIEDADE SOBRE] A BÍBLIA? - parte 2


Após minar a confiança na Bíblia como registro histórico objetivo, fica fácil atribuir a ela guerras e uma atmosfera belicista, preconceituosa e até criminosa [1], como se este Livro fosse produto de uma cultura primitiva. Não vou me deter neste ponto, mas aqueles que sentem curiosidade de entender alguns aspectos da justiça divina que soam estranhos para a mentalidade pós-moderna, podem consultar meu artigo "A destruição dos cananeus".

Aliás, partindo do ponto de que toda a Bíblia foi mera produção cultural, o autor chega a afirmar que, para buscar suas origens e afirmar sua identidade, os cristãos "criaram um novo gênero literário: o evangelho." [2] Este é o cúmulo da desinformação! O doutor Craig L. Blomberg, um dos mais qualificados eruditos do Novo Testamento, afirma que "os evangelhos são como as biografias antigas: destacavam a essência do que o biografado" dissera ou fizera [3]. Ou seja, não só o gênero era corriqueiro na época, como até a forma dos 4 evangelhos segue o padrão da biografia antiga. Isto é tão primário que qualquer estudante sério da Bíblia o sabe. Seria muito esperar um grau mínimo de informação numa revista de circulação nacional? Ou será que só se informa aquilo que é concorde a um certo tipo de opinião, enquanto se omite fatos que corraborem um pensamento contrário?

Outro exemplo desta tendência de seguir um preconceito sem conferir sua veracidade: ""[...] A pressão de Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, surgiu o canône do cristianismo - a lista oficial de livros que, segundo a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus." [4] Ninguém avisou o aticulista da Superinteressante que o romance "O Código Da Vinci" não era a fonte histórica mais exata -pois justamente no maior best-seller de Dan Brown a teoria da formação do cânon a partir de Constantino é ventilada como uma verdade inconteste. Seria isto crível?

Para início de conversa, haviam alguns livros no segundo século que se intitulavam "evangelhos", escritos por grupos gnósticos. Estes livros jamais receberam a mesma aceitação dentro da comunidade cristã que os evangelhos canônicos (os quatro evangelhos, que ainda hoje figuram em nossas Bíblias). Por sua vez, a corrente gnóstica se encarregara de afirmar que a salvação se dava através de um conhecimento revelado aos iniciados, o que, de cara, já criava uma oposição natural entre gnósticos e os demais cristãos.

Esta oposição se aprofunda à medida em que os aspectos teológicos dos evangélicos gnósticos e canônicos são contrastados e vistas suas abissais diferenças. Os primeiros líderes cristãos da era pós-apostólica (chamados de "pais da igreja") já assinalvam essa oposição - entre os quais podemos citar Irineu (cc. 130-200), Hipólito (cc. 170-236), Tertuliano (cc.160 - após 220) e Epifânio (310 -430)[5]. O que os pais da igreja escreveram nos mostra que, mesmo em épocas remotas, as comunidades formadas pelos apóstolos combatiam os evangelhos gnósticos, sendo, portanto, que a rejeição da literatura orientada pela gnose não foi um acontecimento tardio.

Em contrapartida, a "canonicidade" de Mateus, Marcos, Lucas e João foi reconhecida bem cedo, por pais da igreja como Papias (em cc. 125) e Irineu (cc. 180)[6]. O chamado "Cânone Muratoriano" (em homenagem ao italiano Ludovico Antonio Muratori, que o descobriu em 1740) aponta a existência de quatro evangelhos lidos e usados pelas comunidades cristãs num período tão longínquo quanto o final do segundo século [7]. Parece, em vista destas informações, improvável que o cânon passasse a existir sobre exigência política de Constantino (além do que, ao contrário do que o jornalista da Super tentou passar, nunca se confirmou que aquele imperador romano tenha se convertido integralmente ao Cristianismo).

Agora, o erro mais assinalado cometido por "Quem escreveu a Bíblia?" está na infundada afirmação de que a Bíblia foi vítima ou da incompetência ou da má-intenção de seus copistas, que, ao longo dos séculos, supostamente adulteraram a mensagem das Escrituras [8]. Temos de analisar essa presuposição à luz dos fatos.

Embora houvessem erros não-intencionais por parte dos escribas [9], os estudiosos geralmente asseguram que se tratem de variações sem importância. Alguns chegam a afirmar que nossas Bíblias cheguem a ter "99, 5% de pureza" [10]. Nenhuma obra da Antiguidade possui tantos, tão bem conservados e tão antigos manuscritos que sobreviveram aos nossos dias. Isso sem contar nos manuscritos do Mar Morto, descobertos acidentalmente a partir de 1948 [11].

Com a ciência da crítica textual é possível reconstituir o que provavelmente os autógrafos (os escritos originais) realmente diziam. Vale lembrar que as muitas variantes disponíveis não trazem grandes diferenças quanto ao fraseado do texto e nada que chegue perto de comprometer às doutrinas bíblicas. Podemos confiar na integridade dos textos do Velho e do Novo Testamento. [12]

Finalmente, ao invés da alardeada "revolução" sobre a leitura da Bíblia, o que se percebe nas páginas da Superinteressante é um caudal de preconceitos, em que a falta de perspectiva histórica e de irreponsabilidade jornalística grassam oportunamente. Em vista deste bombardeio de notícias parciais, é natural que a reportagem conclua afirmando que "[...] Hoje, os principais estudiosos [de qual corrente? Isto representa a opinião abalizada por todos, ou pelos, a maioria dos estudiosos, ou somente daqueles que agradam ao articulista?] afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um manual de regras literais - e sim como o relato da jornada, tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de história regada há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença num sentido transcendente da existência."

Este reducionismo grosseiro passa longe das reais reivindicações da Bíblia. Jesus mesmo ensinou que a palavra de Deus é a Verdade (Jo. 17:17). Não encontramos nas páginas do divino livro "fábulas artificialmente compostas" (II Pe. 1:16), mas aquilo que é "divinamente inspirado", com o propósito de nos preparar para servir perfeitamente a Deus (II Tm. 3:16 e 17). Pena que as pessoas, esperando fugir de sua responsabilidade perante Deus, tenham de dispor dos mais fúteis estratagemas na vã tentativa de desqualificar a própria Bíblia...


Leia também

[1] "[...] Para os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia." José Francisco Botelho, idem, p. 62. Fica novamente claro que o articulista falha em generalizar a opinião de alguns estudiosos, como se esta opinião fosse oficial e comum a todos os que realizam pesquisas na área de Interpretação bíblica. É de se perguntar se tal generalização não se constitui em uma estratégia para vacinar o leitor, na tentativa de constrangê-lo com uma opinião dos "especialistas". Somente os que desconheçam a literatura especializada entrariam nesta "canoa furada"!
[2] Idem, p. 63.
[3] Em entrevista a Lee Strobel, que a publicou em seu livro "Em defesa da verdade de Cristo: um jornalista ex-ateu investiga as provas da existência de Cristo" (São Paulo, SP: Editora Vida, 2001), pp. 31 e 32.
[4] José Francisco Botelho, idem, p. 64.
[5] Darrell L. Bock, "Quebrando o Código Da Vinci: respostas às perguntas que todos estão fazendo" (Osasco, SP: Novo Século Editora Ltda, 2004), p. 80. Nas páginas seguintes, Bock caracteriza os pontos comuns entre os evangelhos e literatura gnóstica em geral, mostrando como suas concepções sobre o Pleroma (Deus Puro, Absoluto, Inantigível), o Demiurgo (o deus imperfeito que criou o mundo físico, inerentemente mau), o feminino sagrado, a soteriologia através da experiência da gnose, entre outros pontos, tornam impossível a aceitação dos evangelhos gnósticos ao lado dos quatro evangelhos tradicionais, visto serem tão divergentes (e também se distanciarem da mensagem Bíblia como um todo).
[6] Lee Strobel, idem, p. 30.
[7] Darrel L. Bock, idem, pp. 124 e 125.
[8] "[...] O problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais." José Francisco Botelho, idem p. 63. Ver também afirmações semelhantes nas pp. 65 e 66.
[9] Gleason Archer Jr. as discute apropriadamente na sua "Enciclopédia de dificuldades bíblicas" (São Paulo, SP: Editora Vida, 1997), pp. 35-46.
[10] Norman L. Geisler e William E. Nix, "Introdução Bíblica: como a Bíblia chegou até nós", (São Paulo, SP: Vida, 1997), p. 172, citado em Lee Strobel, opus. citado, p.85. Ese tão elevado "grau de pureza" se deve exclusivamente (do ponto de vista humano) ao escrupuloso trabalho dos massoretas, que copiavam manuscritos hebraicos à mão, seguindo regras estritas.
[11] Uma obra útil sobre a história da descoberta desses manuscritos se encontra em E.-M. Laperrousaz, "Os manuscritos do mar morto" (São Paulo, SP: Editora Cultrix, s/d).
[12] Para detalhes adicionais sobre o Novo Testamento, consultar Josh McDowell e Bill Wilson, "Ele andou entre nós: evidências do Jesus Histórico" (São Paulo, SP: Editora e distribuidora Candeia, 1999) Reimpressão da 1ª ed.

Um comentário:

Avelar Jr. disse...

Mas, também, o que se pode esperar de uma revista popular e sensacionalista, escrita por jornalistas e não por historiadores?

Eu li matérias da Revista História Viva, que é escrita por especialistas e estudiosos (da França, mormente, e traduzida para o português) no que escrevem, e ela me parece muito mais imparcial e séria. Mesmo quando o articulista discorda, por exemplo, da Bíblia, não tem um discurso ridicularizador e belicoso contra ela. E sempre salienta os dois lados da história, o que, além de obrigação, é ótimo!

Revista séria é outra coisa.