quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

NOVAS PÉROLAS DE CROSSAN NA SUPERINTERESSANTE - parte 1

Aprendi com minha mãe diversos ditados populares. Um deles, bem conhecido, versa sobre “juntar a fome com a vontade de comer”. Foi justamente este dito que me veio à mente ao ler a entrevista do ex-padre e historiador John Dominic Crossan, professor emérito da Universidade DePaul, de Chicago (EUA), à revista Superinteressante.[1] Aliás, o que mais poderia se esperar de um encontro entre um teólogo liberal e uma revista que tem sucessivamente se dedicado a desacreditar tudo o que se relaciona à Bíblia?

A própria Super não esconde suas preferências teológicas ao afirmar que Crossan é o “maior especialista no mundo em estudar o Novo Testamento com olhar de historiador.”[2] Seria mais honesto dizer que Crossan é o mais conhecido historiador da escola liberal do Novo Testamento[3]. Entre os comentaristas tradicionais há nomes de peso, como os de Robert H. Gundry, Leon Morris, George E. Ladd, Bruce Metzenger e do falecido F. F. Bruce. A bem da verdade, poucos estudantes de teologia criteriosos colocariam as contribuições de Crossan em pé de igualdade as daqueles gigantes da cultura bíblica.

Como os demais estudiosos da alta-crítica liberal, Dominic Crossan não aceita o que nos evangelhos possua caráter sobrenatural, o que, na prática, faz com que ele descarte a historicidade de muitos textos bíblicos. Nas palavras do estudioso: ‘“Nosso esforço é o de separar o que, nos textos bíblicos, é fato histórico e o que é parábola religiosa.”’[4]

Ficamos imaginando de que forma Crossan faz essa distinção, sem levar ao total descrédito os evangelhos. Afinal, se aquelas primeiras testemunhas de Jesus declaram que se apóiaram em eventos factuais (Lucas 1:1-4; João 19:35; 21:24 e 25; I João 1:1), acreditar que teriam sido capazes de acrescentar algo de natureza fantasiosa ao seu relato as desqualificaria por completo como testemunhas. E se não pudermos aceitar como confiável o seu testemunho, então como ter certeza de qualquer coisa sobre Jesus ?

Felizmente, estudos sérios têm apontado uma data antiga para a composição dos primeiros evangelhos (Marcos estaria finalizado já na década de 50 do primeiro século, i.e., apenas 20 anos depois da morte de Jesus). Caso os discípulos acrescentassem algo inverídico em sua redação, seus contemporâneos, muitos dos quais conviveram com o Jesus histórico (e certamente se lembravam de suas palavras e feitos), poderiam apontar as incoerências e acréscimos na narrativa cristã sobre Jesus. Mas a História nos fala o contrário: cedo os primeiros cristãos estavam dispostos a morrerem martirizados pela certeza histórica de quem foi Cristo, do que Ele fizera, Seus milagres, Seu Sacrifício e de Sua ressurreição.

A datação próxima do evento é uma confirmação de sua veracidade – inclusive no que diz respeito aos milagres. Jesus não poderia ser quem afirma ser (João 14:6) caso não pudesse realizar o que os evangelhos Lhe atribuem. Em última estância, aceitar ou não seus milagres é uma questão de perspectiva com a qual se inicia o estudo.[5]

Em alguns casos, as aparentes contradições apontadas por Crossan são facilmente desfeitas. “Um exemplo: em Mateus, um anjo aparece para José, falando sobre o nascimento de Jesus. Já em Lucas, o anjo aparece para Maria.”[6] Comparando ambos os evangelhos, o quadro geral é o seguinte: depois de Maria ser avisada por um anjo, e achar-se grávida, José, ao invés de se vingar de uma provável traição, requerendo que sua ex-noiva fosse apedrejada por ser adúltera, preferiu se afastar dela (Mateus 1:19); para explicar a situação a José, o mesmo anjo que falara à Maria aparece a ele. Onde fica a contradição?

Outro problema que surge na interpretação de Crossan diz respeito aos fatos narrados pela Bíblia que ainda não receberam confirmação total da História. Para ele, por exemplo, uma vez que não há registros fora da Bíblia de que Herodes fosse um infanticida, deveríamos olhar o episódio sob outra ótica: “Dizer que Herodes matou as crianças em Belém para matar Jesus, como está em Mateus, é uma parábola. É afirmar que ele é o novo Moisés e Herodes é o novo faraó do Antigo Testamento.”[7]

Esse tipo de raciocínio de “duvidar até o último segundo”, abalou a reputação de muitos estudiosos críticos no passado, que endossaram opiniões contrárias à Bíblia, até que a Arqueologia os fizesse voltar atrás, reconhecendo seu erro. No demais, a História conta que Herodes I, o grande, era faminto pelo poder, e, em nome dele, assassinou a esposa Mariana, seus herdeiros Alexandre e Aristóbulus, depois enviou Antípater, outro filho, com Mariana II, à Roma, preso, entre outras execuções contra aqueles que o fizessem sentir-se ameaçado.[8] Se Herodes, em sua ânsia pelo poder, foi capaz de liquidar seus próprios filhos, por que não ordenaria que matassem os filhos alheios?

[1] Leandro Narloch, “O papa do Jesus Histórico”, Superinterante, edição 250, Março 2008, seção “superpapo”.
[2] Idem, p. 17.
[3] Virkler nos ajuda a compreender algo da motivação do estudioso de tendência liberal: “Onde nos séculos anteriores a autoria divina da Escritura fora aceita, agora o foco era sua autoria humana. Alguns autores diziam que várias partes da Escritura possuíam diversos graus de inspiração […]outros escritores, como Schleirmacher, foram além, negando totalmente o caráter sobrenatural da inspiração […]
Os racionalistas alegavam que tudo o que não estivesse conforme à ‘mentalidade instruída’ devia ser rejeitado […] Os milagres e outros exemplos de intervenção divina eram regularmente explicados de forma satisfatória como exemplos de passado pré-crítico […] Cada um desses pressupostos influenciou profundamente a credibilidade que os intérpretes davam ao texto bíblico, e, desse modo, teve importantes implicações para os métodos interpretativos. A pergunta dos eruditos já não era ‘Que é que Deus diz no texto?’, e, sim ‘Que é que o texto me diz a respeito do desenvolvimento da consciência religiosa deste primitivo culto hebraico?’”, em Henry A. Virkler, “Hermenêutica Avançada: princípios de interpretação bíblica”, (São Paulo, SP: Editora Vida, 1999), 9ª impressão, PP. 51 e 52.
[4] Leandro Narloch, p.17.
[5] Algumas destas questões são mais amplamente debatidas num livro enxuto e didático de Lee Strobel, recomendável para quem quiser se iniciar nas diversas perspectivas de estudo neo-testamentário. Ver Lee Strobel, “Em defesa de Cristo” (São Paulo, SP: Editora Vida Nova, 2001).
[6] Leandro Narloch, p. 18.
[7] Idem.
[8] Recontei estes fatos numa espécie de ensaio poético, em Douglas Reis, “Poderes”, disponível no seguinte endereço: http://whatgodfews.rediffiland.com/blogs/2007/06/06/PODERES.html.

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