segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

AS NARRATIVAS ESTRATIFICADAS




Certa vez, Harold Bloom disse: "Shakespeare lê você mais completamente do que provavelmente você o lê." O crítico literário americano estava expressando a incrível habilidade do bardo inglês de expor em suas peças a psique humana, de forma perceptível diferentemente, de acordo com a profundidade de cada leitor.
Para exemplificar melhor o que tenho em mente, talvez não devesse recorrer a Shakespeare; bastava falar dos desenhos animados. É patente que, de uns dez anos (ou mais) para cá, os produtores da Disney-Pixar e Dreamworks (apenas para citar duas das mais relevantes fábricas de fantasia) perceberam que além de entreter crianças, teriam de cativar os pais. Assim, os desenhos animado deixaram há muito de ser "coisa para crianças".
Tome Bee Movie - a abelinha como exemplo. As sequências bem boladas, o visual fantásticos e os personagens bonachões certamente entretém as crianças, mesmo as bem pequenas (de, digamos, uns quatro anos). Um adulto, assistindo ao mesmo filme, perceberá temáticas em outras camadas, estranhas à compreensão infantil. O filme se encaixa na atmosfera da cultura pós-moderna, com sua ética de unir seres diferentes dentro de um propósito comum, a emancipação dos oprimidos, a luta idealista para salvar a comunidade (fonte de identidade), etc.
Tanto em Shakespeare como nas animações, há estratos que nos permitem compreender a narrativa geral em diferentes graus de aprofundamento, sem prejuízo do tema principal. A presença desta característica, em obras diversas, sejam literárias, cinematográficas, plásticas ou de quaisquer outras naturezas, constitui o que me aprouve chamar de narrativas estraficadas (i.e., dividas em estratos, camadas, níveis de compreensão diferentes).
Quero propor que a Bíblia seja encarada como uma, aliás, como a principal narrativa estratificada. Nas Escrituras encontramos orientação para os simples e para os eruditos, e isto não apenas devido à diversidade presente nos livros que formam o cânon; mesmo um livro bíblico, tratado individualmente, apresenta os tais estratos.
Veja o material de Salmos, para fins de modelo do que apresentei antes. Há séculos, os salmos, poemas devocionais hebraicos musicados e amplamente usados na liturgia do santuário israelita, têm influenciado a devoção popular, pela sua linguagem que apela ao emocional. No entanto, as coisas não são simples como a primeira vista as percebemos.
Em cada salmo, há intrincados jogos literários, recursos sofisticados e uma teologia profunda, centralizada em Deus: ora na Sua atuação poderosa, protegendo Seu povo de guerras, honrando seu rei (caracterizado como ungido pelo próprio Deus e símbolo do Messias) ou legislando para ele regras justas, ora recebendo o devido reconhecimento por parte de Israel, que recorre a Ele nas crises pessoais ou nacionais, e O louva pelo Seu poder Criador e Redentivo.
Sobretudo, até nos multifacetados estratos vemos a condescendência divina: Sua verdade é compreensível e se acha moldada numa linguagem capaz de atingir os símplices, sem deixar de ser desafiante aos doutos.


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