Certa vez, Harold Bloom disse: "Shakespeare lê você mais
completamente do que provavelmente você o lê." O crítico literário
americano estava expressando a incrível habilidade do bardo inglês de expor em
suas peças a psique humana, de forma perceptível diferentemente, de acordo com
a profundidade de cada leitor.
Para exemplificar melhor o que tenho em mente, talvez não devesse
recorrer a Shakespeare; bastava falar dos desenhos animados. É patente que, de
uns dez anos (ou mais) para cá, os produtores da Disney-Pixar e Dreamworks
(apenas para citar duas das mais relevantes fábricas de fantasia) perceberam
que além de entreter crianças, teriam de cativar os pais. Assim, os desenhos
animado deixaram há muito de ser "coisa para crianças".
Tome Bee Movie - a abelinha
como exemplo. As sequências bem boladas, o visual fantásticos e os personagens
bonachões certamente entretém as crianças, mesmo as bem pequenas (de, digamos,
uns quatro anos). Um adulto, assistindo ao mesmo filme, perceberá temáticas em
outras camadas, estranhas à compreensão infantil. O filme se encaixa na
atmosfera da cultura pós-moderna, com sua ética de unir seres diferentes dentro
de um propósito comum, a emancipação dos oprimidos, a luta idealista para
salvar a comunidade (fonte de identidade), etc.
Tanto em Shakespeare como nas animações, há estratos que nos
permitem compreender a narrativa geral em diferentes graus de aprofundamento,
sem prejuízo do tema principal. A presença desta característica, em obras
diversas, sejam literárias, cinematográficas, plásticas ou de quaisquer outras
naturezas, constitui o que me aprouve chamar de narrativas
estraficadas (i.e.,
dividas em estratos, camadas, níveis de compreensão diferentes).
Quero propor que a Bíblia seja encarada como uma, aliás, como a
principal narrativa estratificada. Nas Escrituras encontramos orientação para
os simples e para os eruditos, e isto não apenas devido à diversidade presente
nos livros que formam o cânon; mesmo um livro bíblico, tratado individualmente,
apresenta os tais estratos.
Veja o material de Salmos, para fins de modelo do que apresentei
antes. Há séculos, os salmos, poemas devocionais hebraicos musicados e
amplamente usados na liturgia do santuário israelita, têm influenciado a
devoção popular, pela sua linguagem que apela ao emocional. No entanto, as
coisas não são simples como a primeira vista as percebemos.
Em cada salmo, há intrincados jogos literários, recursos
sofisticados e uma teologia profunda, centralizada em Deus: ora na Sua atuação
poderosa, protegendo Seu povo de guerras, honrando seu rei (caracterizado como
ungido pelo próprio Deus e símbolo do Messias) ou legislando para ele regras
justas, ora recebendo o devido reconhecimento por parte de Israel, que recorre
a Ele nas crises pessoais ou nacionais, e O louva pelo Seu poder Criador e
Redentivo.
Sobretudo, até nos multifacetados estratos vemos a condescendência
divina: Sua verdade é compreensível e se acha moldada numa linguagem capaz de
atingir os símplices, sem deixar de ser desafiante aos doutos.
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