sexta-feira, 17 de junho de 2011

DEPOIS DA HERANÇA, O GOLPE

Eustáquio chegou, olhos excitados com a novidade. Zeferino mal pode crer nas palavras atropeladas do colega: uma herança. Riam juntos. Eustáquio fazia planos mirabolantes, divertindo o amigo mais jovem.

“O que você acha de uma picape Mitsubish? Sempre quis dirigir uma, para impressionar aquelas meninas do colégio Francisco de Assis, que esnobam a gente…”

“Ah, seria uma boa. Elas iriam se arrepender, aquelas patricinhas. Umas metidas, isso sim!”

Riram mais um pouco e se despediram. Era tarde e os dois acordariam cedo na segunda. Zeferino quis contar para o mundo a sorte grande que o amigo tirara. Mas como Eustáquio era um rapaz cauteloso e de bom senso, solicitou-lhe que fizesse boca miúda.

Na tarde seguinte, Zeferino voltou do banco cansado. A nova função o estava exaurindo. Ainda sonhava em ser gerente; apenas percebia que o caminho era mais complicado do que imaginara! Deitou-se no sofá com um prato de bolachas e um copo de leite. Adormeceu antes do fim do filme que assistia sem interesse genuíno.

Nem chegou à noite, quando a campainha tocou. Zeferino saltou assustado, pensando ser sua mãe. Dona Francisca detestava quando seu menino (alcunha que ele detestava) sujava a sala com farelos de comida. Por isso, antes de aberta a porta, um prato e um copo foram parar às pressas sobre a pia da cozinha.

Zeferino quase perguntou se a mãe tinha deixado a chave na bolsa velha, quando se assustou ao girar a maçaneta. Eustáquio de novo? Convidou o amigo para entrar, tentando disfarçar o susto que a surpresa lhe trouxera. “Sabe a picape?”, “Qual picape, cara?”. Eustáquio permaneceu observando o dono da casa, na espera de que se lembrasse. “Claro, claro. Puxa! Que distração a minha. Decidiu mesmo levar a mitsubish para a sua garagem?”. “Sim, mas tive uma ideia. É bem divertida, você vai gostar de ouvir isso.”

Amanheceu um dia tranquilo. A concessionária Mitsubish da pacata cidade estava sem muito movimento. Os veículos eram vistosos e modernos, mas além do poder aquisitivo da média da população. Luís Cláudio, um dos vendedores da empresa japonesa, esperava próximo ao rol de entrada por algum cliente em potencial. Procurava conter-se, a fim de mascarar o nervosismo, elemento mais perceptível do que ele estava disposto a admitir.

Para a surpresa de Luís, um cavalheiro distinto surgiu, trajando um terno sóbrio, risca-de-giz. Como um urubu, o vendedor se aproximou do jovem, que pediu para ver uma picape. “Excelente”, disparou Luís Cláudio. “E o senhor tem alguma preferência quanto ao modelo?”, “Quero ver o que você tiver de melhor!”. Ambos começaram a percorrer o salão, passando pelos mais exóticos esportivos e carros de luxo. O jovem cliente olhava maravilhado aquelas máquinas, detendo-se às vezes diante de um modelo que lhe interessasse.

Quanto finalmente chegaram ao espaço onde as picapes estavam expostas, viram alguns modelos, mas o jovem já estava cansado de tanto tempo em pé. Luís Carlos deu-se conta do fato e levou o cliente a um local em que pudesse sentar-se. Ofereceu-lhe chá e biscoitos. Perguntou se queria mais alguma coisa, cercou-lhe de muitos mimos, tantos quanto pode. Enquanto bajulava o rapaz de terno, alguém se aproximou. Era outro moço. Esse trajava uma camiseta furada que fazia um par de mal gosto com sua calça jeans desbotada. Trazia à mão uma pasta de couro surrada. “Oi, você pode me atender?”.

O vendedor olhou o estranho de alto a baixo, sem dizer palavra. Como o jovem insistisse em ser atendido, retrucou: “Você não vê que estou ocupado, atendendo o senhor aqui?” Deu as costas para o maltrapilho e foi mostrar o catálogo de preços para o primeiro rapaz.

Enquanto seguia o atendimento, o homem de jeans surrado percorria a concessionária, em busca de quem o pudesse atender. Todos lhe viravam o rosto. Pareciam convencidos de que dele nada se podia esperar – afinal, se não possuía dinheiro para roupas adequadas, como esperar que tivesse condições para adquirir um ícone do mercado automobilístico?

Desanimado, o rapaz se dirigiu ao guichê de entrada. Perguntou à recepcionista quem era o vendedor com menos experiência. Apontaram-lhe uma moça sardenta na ala esquerda, que atendia por Rose. Sem aparentar ansiedade, ele caminhou até a vendedora. Perguntou-lhe como estava seu trabalho. “Ah, é bem difícil, né? Ainda sou nova e nem sempre encontro clientes que queiram mesmo comprar nossos carros”, disse Rose, com toda a sua sinceridade.

Caminharam até a picape que o estranho queria ver. Ele examinou o veículo e perguntou: “Qual é o valor?”. Rose lhe falou o preço como quem dá uma informação à toa. Quase caiu de costas quando ouviu seu interlocutor falar: “Fechado! Eu fico com ela.” A moça pensou, a princípio, que se tratava de um mal entendido – decerto, ele não prestara a atenção no valor que ela informou. Porém, antes que ela a corrigisse, viu a bolsa velha ser aberta e muitas notas sendo contadas. Estupefata, ela pensou jamais ver tanto dinheiro junto (em geral, seus clientes pagavam com cheques).

A loja parou para ver a cena. Luís Carlos mal pode crer em tudo aquilo. Antes que pudesse se recuperar, o vendedor recebeu outra revelação bombástica: Zeferino tirou o casaco do terno, aproximou-se dele e lhe falou ao ouvido: “Desculpe-me, mas meu horário de almoço já está acabando; como meu amigo já comprou o carro que ele queria, acho que irei aproveitar a carona e voltar para o trabalho…”

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