Existe
lugar para o conceito bíblico de divindade na pós-modernidade? Esta pergunta se
relaciona com a ratio essendi do
Questão de Confiança, o próprio fundamento para as postagens aqui veiculadas; a
nossa proposta consiste em demonstrar argumentativamente que para a indagação
inicial a resposta é afirmativa. Mas, logicamente, eu não posso reivindicar a
exclusividade em lidar com esta preocupação. Na última edição da revista Veja,
por exemplo, um surpreendente artigo questionou o papel do Deus cristão – bem
como de seus declarados asseclas – em um universo de desigualdades tal qual se
acha no mundo contemporâneo.
“Que
Deus é esse?” [1], assinado por Reinaldo Azevedo,
inquire logo de início: “Qual é o lugar de Deus num mundo de iniquidades? Até
quando há de permitir tamanha luta entre o bem e o mal?” Azevedo é uma
referência na blogosfera e um dos
articulistas mais lúcidos do país. O tema escolhido é um dos mais altos, e o
autor faz eco a Tomás de Aquino – o filósofo cristão por excelência – quando
reflete que “se o Mal subsiste, então não pode haver um Deus, que só seria
compatível com o Bem perpétuo.” [2]
O
problema da natureza divina, definida como Bem absoluto, em face da
proliferação do Mal, recebe um tratamento interessante por parte de G. K.
Chestrton [3]: “[…] Se for verdade (como certamente é)
que o homem pode sentir uma felicidade extraordinária em esfolar um gato, então
o filósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções. Ou ele deve negar
a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou deve negar a presente união
entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos.” [4]
O
apóstolo Paulo fala incisivamente: “pois todos pecaram e estão destituídos da
glória de Deus” (Rm 3:23 NVI). O problema do mal não é um defeito de fabricação
atribuível ao Criador, porém um mau uso da capacidade volitiva, da
responsabilidade do próprio homem. O pecado surgiu como elemento estranho, e
seu advento teve um ar de intrusão indisfarçável que, embora não trouxesse uma
realidade irreversível, sua atuação cumulou por eras a existência humana de
sofrimento e destruição. Não foi Deus quem mudou ou venha mudando ao longo de
séculos de História. O Senhor mantém-se o Mesmo, porque Ele “não muda como
sombras inconstantes” (Tg 1:17, NVI). Quem mudou, em decorrência da escolha de
afastar-se de Deus fomos nós, a raça humana. No entanto, nem tudo está perdido:
o plano divino, que consiste em redenção gratuita através de Cristo é nossa
única esperança.
Reinaldo
de Azevedo, com inegável senso de propriedade, afirma ao se avizinhar a conclusão
do texto: “Este artigo não trata do mistério da fé, mas da força da esperança,
que é o cerne da mensagem cristã, como queria o apóstolo Paulo: ‘É na esperança
que somos salvos [Rm 8:24, citado talvez por causa da influência da encíclica Spe Salvi, de Bento XVI, que se inicia citando
este mesmo versículo].’ O que ganha quem se esforça para roubá-la do homem,
fale em nome da Razão, da Natureza ou de algum outro Ente maiúsculo qualquer? E
trato da esperança nos dois sentidos possíveis da palavra: o que tenta
despertar os homens para a fraternidade universal, com todas as suas
implicações morais, e o que acena para a vida eterna.” [5]
De
fato, a esperança cristã é bifocal: mobiliza o homem para aquela prática da
caridade que revolucionou a moralidade no Ocidente; ao mesmo tempo, com
destacou acertadamente o articulista, os cristãos sabem-se incapazes de
concertar o mundo – mas mantém a esperança naquele Deus que lhes afiançou a
criação de “novos céus e nova terra, onde habita a justiça.” (II Pe 3:13, NVI).
[1] Reinaldo
de Azevedo, “Que Deus é esse?”, Veja,
ed. 2092, ano 41, nº 51, 24 de Dezembro de 2008, especial, 95-96.
[2] Idem, 95.
[3] Reinaldo
de Azevedo, na p. 96 do artigo, também faz breve menção ao célebre apologista.
[4] G. K.
Chesterton, Ortoxia. São Paulo: Mundo
Cristão, 2008, 27 e 28.
[5] Reinaldo
de Azevedo, idem, 96.
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