Quem esperava um show de tecnologia de ponta a ponta, satisfez-se apenas parcialmente. A abertura, bastante simples, trouxe cenas em pergaminho sobre a vida de Sansão, lembrando outras produções da emissora. A novidade em relação às novelas da Record, geralmente semelhantes em temática às da Rede Globo [1], consagrada concorrente, é o fulcro religioso. Novidade porque, para uma emissora mantida pela Igreja Universal do Reino de Deus, denominação neo-pentecostal das mais influente, a Record é contrassensualmente laica! Recentemente, a partir da minissérie A história de Ester, é que a emissora de Edir Macedo vem investindo em adaptações de temas bíblicos.
Filisteus: uma ameaça?
No capítulo de estreia de Sansão e Dalila, o telespectador mais informado pode notar a dupla influência que, tudo indica, norteará a minissérie: de um lado, a tentativa louvável (ainda que nem sempre livre de equívocos culturais) de romancear o texto bíblico; do outro, a mentalidade característica da Igreja Universal sutilmente se insinuando, com direito à apologia da teologia da prosperidade e à "síndrome do fiel perseguido". Analisemos isso mais de perto.
Logo nos primeiros minutos, a opressão filisteia aparece no vídeo de forma acintosa. Os inimigos de Israel são violentos, assaltando vilas do povo de Deus e cometendo assassinatos bárbaros. Apesar de, historicamente, o período dito dos Juízes ter sido de guerras entre Israel e seus vizinhos, estudiosos apontam que a convivência entre israelitas e filisteus não era tão hostil quanto supõe a minissérie.
“A ameaça filisteia foi a de maior monta porque era insidiosa, em alguma de suas fases”, escreve o especialista Arthur E. Cundall. “Não havia a agressividade direta e cruel dos moabitas, cananeus, midianitas e amonitas: ela fora substituída pela infiltração, através do casamento misto e do comércio. O domínio filisteu sobre os povos conquistados não parecia ser oneroso, neste estágio primitivo [sic]”, conclui. [2]
Acréscimos: para o bem e para o mal
Exageros à parte, outro fator interessante que pode passar despercebido é a disposição da mãe de Sansão. Enquanto no relato bíblico a mãe do futuro Juiz de Israel é somente denominada “mulher de Manoá”, na minissérie ela recebe um nome, Zinah. Além disso, em uma cena que preludia o nascimento de Sansão, Zinah ouve de uma vizinha a seguinte alfinetada: “Se o Deus dos hebreus permitiu que você fosse uma mulher estéril, quem sabe outros deuses não a transformem em uma mulher de verdade.” Bastante ressentida, Zinah declara ao marido: “[…] da minha fé, eu não abro mão”. Quando o Anjo do Senhor lhe aparece, ele a saúda: “Tua fé me trouxe aqui”.
Os detalhes acrescentados à história fazem forte paralelo com a história de Ana, outra mulher estéril que, após orar, é ouvida por Deus e concebe Samuel. Entrementes, a ênfase no fiel oprimido que recebe recompensa por sua fidelidade insinua uma das mensagens teológicas mais características da Igreja Universal: a confissão positiva. Esse conceito leva o fiel a se indignar com sua situação de vida e exigir de Deus a vitória para dificuldades financeiras, familiares, etc. Em seguida, ela passa a pactuar com Deus, disponibilizando seus bens para a “Obra do Senhor”, até alcançar as bênçãos divinas. Essa barganha espiritual pressupõe que toda dificuldade na vida possa ser resolvida e que o crente fiel terá todo o tipo de bênçãos que desejar. As Escrituras não enfatizam que o nascimento de Sansão fosse uma recompensa à fé de seus pais, ou mesmo que Deus prometa nos livrar de toda dificuldade. Até o exemplo de Ana é mais uma demonstração de graça da parte de Deus (que favorece além dos méritos individuais) do que evidência de compensação.
Há na trama da Record alguns outros detalhes menores, que contrariam frontalmente a narração bíblica. Sansão é retratado forte desde a infância, quando sua força aparece em conexão com a presença do Espírito Santo, que a concedia em momentos específicos. Para garantir exteriormente essa conexão, Sansão seguia um voto chamado nazireado, que, simplificadamente, consistia de três partes: (1) abstinência de uva e seus derivados, (2) ausência de contatos com animais e seres humanos já falecidos e (3) proibição de cortar o cabelo. Na minissérie, apenas o último e mais conhecido particular é ressaltado. Ainda assim, a mãe de Sansão resume acertadamente o segredo da força de Sansão (aspecto que fazia parte da “chamada” da produção): “A fonte de sua força: a fé no Senhor nosso Deus”.
Usando de liberdade poética, constrói-se um drama familiar envolvendo Dalila. Muito do que foi mostrado no primeiro episódio sugere uma direção perigosa: justificar o comportamento da personagem. A Bíblia trata de Dalila de forma sucinta, a despeito da mítica associação entre as duas personagens históricas. Nada indica que ela fosse bem intencionada ou mera “vítima das circunstâncias”.
Entre a telinha e as páginas
Em geral, o retrato de Sansão (interpretado por Fernando Pavão) parece bem coerente. Infelizmente, por outro lado, as personagens muitas vezes agem e se expressam como contemporâneos, não como gente do séc. XII a.C. (o que parece ser, grosso modo, um fato corriqueiro em produções de época na mídia televisiva brasileira). As ressalvas que Sansão deveria levantar entre seu povo, não ficam de fora. Um de seus irmãos afirma para Manoá que o jovem estava “mais próximo de seus inimigos do que nós”; e, em seguida, arremata: “O Deus dos hebreus estaria muito frustrado se houvesse realmente escolhido Sansão como juiz da tribo de Dã”. Por ocasião do interesse de Sansão por uma filisteia de Timna, sua mãe lhe censura: “Deus te deu a força, um dia te dará o entendimento”.
Ninguém espera de uma adaptação televisiva perfeição estética e conteúdo absolutamente fidedigno, o que seria uma utopia. Ainda é cedo para aquilatar o grau de fidelidade ao registro bíblico que se assistirá em Sansão e Dalila. Entre a telinha e as páginas da Bíblia, muita simplificação, desentendimento, adaptação e imaginação influem na construção de um enredo. Contudo, a minissérie já cumpriu o papel de chamar o telespectador refletir sobre a narrativa bíblica, patrimônio cultural que influenciou outras manifestações artísticas no Ocidente. Além disso, o texto sagrado, acima de avaliações estéticas, é relevante em sua mensagem espiritual, expressa de forma concisa e sugestiva. Sem dúvida, uma fonte de verdadeira força tantos séculos depois [3]!
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Veja ainda: Sansão, a outra história
O herói que não vencia
[2] Arthur E. Cundall e Leon Morris, Juízes e Rute – Introdução e comentário ( São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Vida Nova, 2006) 2ª reimpressão, p. 148.
[3] Um trabalho recente que trata da história de Sansão em pormenores é Douglas Reis, Paixão Cega: o herói que precisou perder a visão para enxergar (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010).
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