Sua sombra encobria um exército trêmulo.
Durante dias, o desafio vindo das tropas inimigas ecoava nos pesadelos dos
soldados israelitas. Naquela manhã, o murmúrio da chegada do campeão passou de
fileira em fileira. O boato virou um alvoroço. As lanças, que até então
estiveram no chão, foram alçadas, como bandeiras de vitória. Os inimigos
demoraram, mas souberam. Depois viram. Os soldados de Israel cederam espaço ao
recém-chegado. “Ele matou um leão com as mãos!”, comenta alguém. “Contaram que
ele carregou o muro de uma cidade”, diz outro. “Soube que mil homens não foram
páreo para ele”, acrescenta um filisteu, em tom de medo. Os filisteus logo
viram a figura viril de Sansão aparecer do outro lado do ringue. Do lado pagão
estava o desafiante. Para ele, o café da manhã consistia em mingau e soldados
hebreus. Seus quase três metros de altura, herança genética de uma raça que
habitara Canaã, impunham respeito. Seu nome era lendário: Golias. Faça sua
aposta, a luta vai começar!
“Ei, espere um pouco!”, você protesta, “que
história é essa de Sansão enfrentando Golias?” Tudo bem, eu sei. Esse
fantástico confronto não está em nenhum lugar da Bíblia ou da História. Se
fosse possível assisti-lo, eu estaria na primeira fila, com um saquinho de
pipocas e um copo de suco. Mas esta grande luta não aconteceu, talvez, porque
os dois possíveis adversários viveram em épocas diferentes. Durante o período
em que Sansão julgou Israel, provavelmente nasceu o profeta Samuel. E, apenas
em idade avançada, Samuel ungiu o jovem Davi para se tornar rei de Israel.
Portanto, entre Sansão e Golias há um intervalo considerável de tempo.
Agora, leia o que realmente aconteceu. As
lanças que, até então, estiveram no chão, continuaram no chão. Os inimigos
demoraram, mas souberam. Depois viram e riram! Os soldados abriram espaço para
o novato, que não parecia grande coisa. “Ele disse que matou um leão com o
cajado de pastor!”, ironizou alguém. “Este pivete magricelas?”, espanta-se
outro. “O futuro de nosso exército, nas mãos de um fracote?!”, mais um
questiona com sarcasmo. Os filisteus logo viram o jovenzinho Davi aparecer do
outro lado do ringue.
O contraste entre Golias e Sansão talvez não
fosse tão grande. Dois guerreiros afamados. Máquinas de luta. Seus inimigos os
temiam. Agora pense em Davi. Imagine seu rostinho sardento queimar diante dos
músculos do gigante ofegante e furioso. Quem era o garoto perto de Golias? Davi
e Sansão. Ambos enfrentaram os filisteus. Dois guerreiros com habilidades
poéticas. Dois líderes em Israel. Também dois homens fracos diante de mulheres.
Muitos pontos em comum. No entanto, Davi tem um diferencial: sua confiança em
Deus. Sua integridade em servir. Davi, o homem segundo o coração de Deus. O rei
mais amado de Israel não era extraordinariamente forte, mas liderou exércitos.
Ele dominou os povos vizinhos de Israel, inclusive os filisteus. Quem diria que
um garoto ruivinho chegaria tão longe!
Infelizmente, Sansão não chegou tão longe
quanto poderia. Seu coração foi servo dos seus olhos (Jó 31:7). Ele teve a
conduta ditada por paixões irrefletidas, apesar de ser o escolhido para
representar a vontade do Senhor naquela época e lugar. Suas fraquezas nos dizem
muito acerca de um Deus bondoso o suficiente para selecionar mesmo os
imperfeitos para Seu serviço. Mas não apenas isso. O fato de Deus não ter
impedido as más escolhas de Sansão, testemunha poderosamente sobre a liberdade
que Ele nos dá. O supermercado em que eu e minha esposa costumamos fazer
compras tem um slogan interessante: “O melhor presente é poder escolher”. Você
pode estar certo de que recebeu o melhor presente do Pai.
É preciso acrescentar que o dom da escolha é
maravilhoso em si, mas o seu uso irresponsável sempre acarreta riscos. Assim
como Sansão, que resistiu à vontade de Deus e colheu os frutos amargos do
descompromisso, nós, hoje, temos a liberdade para aceitar ou rejeitar o que o
Senhor nos propõe. A bênção e a maldição, que estão diante de nós, são
condicionais ao exercício do livre-arbítrio.
Aliás, compensa refletir também sobre a
natureza de nossa vocação. Não fomos chamados para exercer o nazireado ou
vencer exércitos estrangeiros com lanças ou espadas: “nossa luta não é contra o
sangue e a carne” (Ef 6:12, ARA). Porém, em certo sentido, também somos
chamados a libertar um povo. Nossos irmãos e irmãs sofrem escravizados não
pelos filisteus, mas por correntes de pensamento contrárias às Escrituras.
Muitos cristãos parecem não perceber que o cristianismo tem que influenciar o
trabalho, os relacionamentos e a maneira de encarar a cultura. Vivem como os
não cristãos. Nossa missão é influenciar a sociedade com uma mensagem de
libertação. Para tanto, essa verdade precisa ser real para aqueles que
pretendem compartilhá-la. Os ouvintes da mensagem desejam ver nossa
integridade. Por isso, é inadmissível ter uma postura no fim de semana, quando
estamos na igreja, e assumir outra na segunda-feira, quando voltamos à rotina
semanal. Do campus ao templo, do sofá ao escritório, a verdade de Deus não
muda. Desta forma, o desafio é viver coerentemente nossa vocação espiritual,
sabendo dar a razão de nossa fé em toda situação e sob qualquer pressão.
O pensamento atual é cada vez mais hostil à
religião cristã tradicional. Em grande parte, os questionamentos envolvem a
aceitação de uma verdade universal, transcendente. Para a sociedade
pós-moderna, verdade é algo individual: você faz a sua, eu faço a minha.
Crenças religiosas são aceitas ou descartadas de acordo com a conveniência do
indivíduo. Nessa linha, a aceitação da Bíblia como Palavra inspirada sofre
muita resistência. Por isso, apresentar as verdades bíblicas hoje, não tem o
mesmo impacto de décadas atrás. Um universitário de classe média, por exemplo,
que já ouviu de seus professores sobre o evolucionismo, está familiarizado com
as especulações filosóficas, e já experimentou de várias manifestações
religiosas, terá dificuldade de aceitar o ensino bíblico como verdade absoluta
(Jo 14:6; 17:17). Para alcançar esse público é preciso se aproximar
amistosamente. Por meio de diálogos inteligentes, o cristão pode levar um
secularizado a questionar seus pressupostos e manter sua mente aberta para uma
apresentação racional do cristianismo. Vale lembrar que apesar de os princípios
serem eternos, a mensagem deve ser contextualizada de forma relevante para
alguém do século XXI.
Davi venceu os desafios de sua época. E como
ele, a Bíblia registra comoventes relatos de pessoas que andaram na contramão
de seu tempo. Em meio à crença em vários deuses, José testemunhou a respeito de
apenas um Deus que tinha poder sobre o Egito. Ao continuar adorando Jeová na
Babilônia, Daniel mostrou que o Deus do povo escravizado não era mais fraco do
que as divindades pagãs. Num tempo em que muitos queriam que os pagãos
conversos ao cristianismo fossem circuncidados, Paulo defendeu que a entrada do
crente na igreja de Cristo se dá unicamente pelo batismo. São muitos os que,
como Davi, José, Daniel e Paulo, compreenderam e viveram os princípios bíblicos
em seu tempo.
Seria ridículo que alguém, sob o pretexto de
viver conforme a Bíblia, andasse por aí vestido com roupas dos tempos bíblicos,
deixasse a barba imensa e segurando um cajado fosse acompanhado por uma ovelha.
Mas foi exatamente o que o jornalista A. J. Jacobs fez, quando por um ano se
dispôs a praticar literalmente, segundo ele, as setecentas regras de conduta
que a Bíblia possui. Em seu livro The
Year of Living Biblically (O ano em que vivi biblicamente), Jacobs conta
como foi comer gafanhotos, apedrejar adúlteros (com pedregulhos, por
brincadeira), reprimir seus impulsos sexuais (concentrando o pensamento em sua
mãe), escravizar seu secretário (não o remunerando em seu estágio), entre outras
peripécias.
É óbvio que a intenção de Jacobs foi satirizar
os cristãos. Deus não exigiu que adotemos o estilo de vida judaico do período
do Antigo Testamento, nem mesmo os costumes dos cristãos do primeiro século.
Viver conforme a Bíblia é extrair dos princípios bíblicos sua aplicação para
hoje. A crítica de Jacobs aos fundamentalistas cristãos, que levam ao pé da
letra alguns textos bíblicos fora de seu contexto, mostra que é preciso
conhecer o mínimo de interpretação bíblica e buscar a orientação do Espírito
Santo, para não escorregar para o fanatismo ou esquisitices [1].
A negligência em passar tempo de qualidade com
Deus para desenvolver uma visão correta sobre o que significa viver o
cristianismo em nosso tempo, pode nos levar, tardiamente, como Sansão, a ver
que rejeitamos maior revelação do Senhor para viver à luz da nossa velinha. O
resultado, a história do nosso herói já mostrou: rebeldia é sinônimo de vida
atormentada (Is 50:10, 11).
Mas, para mim e você, ainda existe tempo de
ajustar o foco de nossa visão. Já escrevi em outro lugar sobre o texto de
Romanos 12:2, que nos ensina três importantes passos para esse processo: (1)
rejeitar as visões distorcidas deste mundo, que são contrárias à verdade
bíblica; (2) renovar a mente por meio da assimilação da mensagem bíblica; e (3)
experimentar e comprovar os benefícios de seguir a vontade de Deus nas
situações cotidianas.
Depois de revisar o texto de Romanos em sua
Bíblia, procure enxergar esses mesmos três ensinamentos no trecho abaixo:
“Quanto à antiga maneira de viver, vocês foram ensinados a despir-se do velho
homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem renovados no modo de
pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em
justiça e em santidade provenientes da verdade” (Ef 4:22-24). A cada dia,
diversas pressões assediarão nosso poder de escolha. A dependência de Deus fará
de cada decisão uma honra para Ele, quer em assuntos grandes ou pequenos. Basta
desenvolver o que lamentavelmente faltou para Sansão: a visão correta.
Retirado do livro Paixão Cega. Para
adquirir o volume no site da CPB, clique aqui.
[1]
No Brasil, as ideias de Jacobs tiveram repercussão, através de duas matérias
publicadas em revistas que, rotineiramente, questionam a historicidade da
Bíblia e a relevância de sua mensagem. Veja Marcos Nogueira, “A Bíblia como ela
é”, Superinteressante, novembro de 2007, p. 96-99, e Cláudio Julio Tognolli,
“Dá para viver segundo a Bíblia hoje?”, Galileu, janeiro de 2008. Ambas as
matérias foram respondidas, respectivamente, por Douglas Reis, “Como viver
biblicamente de verdade?”, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com,
e por Michelson Borges, “Festival de baboseiras na Galileu”, disponível em www.criacionismo.com.br.
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