Eu me encontrava em uma cidade do Rio
Grande do Sul, realizando meu estágio em evangelismo. Naquele dia, um membro de
igreja se ofereceu para me acompanhar na visitação aos simpatizantes de nossa
denominação. Logo na primeira casa em que entramos, enfrentei uma situação que
me pegou completamente despreparado!
Meu acompanhante, um senhor de
meia-idade, tinha um relacionamento familiar complicado, com poucas
oportunidades para falar e ser ouvido (como vim a descobrir posteriormente).
Por este fator, não demorou muito para que ele começasse a falar
incontrolavelmente por quase vinte minutos! Aquele homem bondoso, mas pouco
estudado, certamente estava munido das melhores intenções.
O que realmente me chamou a atenção foi
uma das “provas” usadas por ele para convencer a pessoa que estávamos
visitando: o cumprimento de Daniel 8. Para o senhor adventista que estava
comigo, Daniel oito se cumpriu quando um avião do grupo terrorista da Al Qaeda
(o bode voador) quebrou as duas torres do World Trade Center (os dois chifres
do carneiro). O ano era 2001 e o maior atentado da História tivera lugar a
menos de dois meses!
Aquela interpretação curiosa da profecia
foi muito difundida nos meios evangélicos; talvez por isso, alguns dos próprios
membros adventistas, por falta de informação, a tenham adotado, embora não seja
a forma adventista de ver o cumprimento de Daniel 8. E aqui é preciso dizer que
uma interpretação só é válida quando faz com que se “encaixem” todos os
detalhes encontrados em um determinado texto (esta regra simples pode ser
aplicada a praticamente qualquer interpretação de qualquer livro). Este
conceito está presente na velha máxima, segundo a qual “A Bíblia é sua própria
intérprete”. Então, cabe a pergunta: como interpretar Daniel 8 à luz da própria
Bíblia?
No capítulo 8, vemos imediatamente dois
animais: um carneiro invencível, com dois chifres, sendo que um era maior do
que o outro (Dn 8:3-4); o outro animal, um bode com um chifre notável, era tão
rápido que nem sequer tocava no chão (Dn 8:5-7). Poderíamos “quebrar a cabeça”,
na tentativa de adivinhar de que a profecia está tratando. A boa notícia,
porém, é que o capítulo 8 se explica sozinho. O carneiro é identificado com o
reino da Medo-Pérsia (Dn 8:20), que já estava em ascensão nesta época e viria a
se tornar o próximo grande império, de acordo com a sequência que vimos nos
capítulos 2 e 7. Babilônia, o primeiro destes impérios, não aparece
representada por nenhum símbolo, provavelmente porque já se achava em declínio.
O segundo animal é o poder grego (Dn
8:21-22). Novamente a principal liderança grega, personificada por Alexandre, o
Grande, dá lugar a uma liderança múltipla (o grande chifre cai, sendo
substituído por quatro chifres – os quatro generais que sucederam Alexandre
após sua morte, você se lembra?). Já deu para perceber que o conflito retratado
no capítulo 8 de Daniel não envolve os EUA e os terroristas islâmicos; estamos
diante de um conflito muito mais antigo…
Mas não é só isso. Surgiria ainda um
terceiro poder. E, mais uma vez, temos de prestar atenção nos detalhes, para
interpretar corretamente a Bíblia. Vamos ler os versículos 8 e 9 da profecia:
“O bode [que já sabemos que se refere à Grécia] se engrandeceu sobremaneira;
estando, porém, na sua maior força, aquele grande chifre foi quebrado [a morte
de Alexandre, o grande], e surgiram no seu lugar quatro também notáveis [os
quatro generais que dividiram o império grego entre si], para os quatro ventos
do céu [isto é, para todas as regiões da Terra]. De um deles saiu um chifre
pequeno, o qual cresceu muito para o sul, para o oriente e para a terra
formosa.”
A pergunta é: de onde vem o chifre
pequeno? O texto diz que o chifre pequeno sai “de um deles”. Do modo como a
frase se acha em nossas Bíblias, temos duas possibilidades: 1) o pequeno chifre
sai de um dos quatro chifres ou 2) O pequeno chifre sai de um dos quatro
ventos. Antes de prosseguirmos, alguém poderia perguntar: saber de onde vem o
chifre pequeno faz alguma diferença?
Faz, sim! Veja as consequências das duas
interpretações: Se eu aceito que o pequeno chifre sai de um dos quatro chifres
(interpretação número 1), tenho que admitir que o pequeno chifre é parte do
império grego, já que os quatro chifres nada mais representam do que os quatro
generais de Alexandre, ou seja, a continuidade do império Greco-Macedônico.
De fato, os evangélicos em geral aceitam
esta interpretação. Quem seria então o chifre pequeno para muitos cristãos? Um
rei medíocre da dinastia dos selêucidas (originária de Seleuco, um dos quatro
generais de Alexandre) chamado Antíoco Epifânio. Ocorre, porém, que Epifânio
não cumpre todas as exigências da profecia. A prosperidade por um longo tempo
(Dn 8:12) não descreve seu reinado de altos e baixos. Outro argumento contrário
a esta interpretação é que o próprio Jesus, reportando-se a esta profecia,
alegou que a “abominação desoladora” ainda iria acontecer e Epifânio reinou de
175 a 164 a.C. Como Jesus poderia se enganar tanto em relação a interpretação
de Daniel capítulo 8?
Resta pensarmos na segunda alternativa
(interpretação número 2): o pequeno chifre sai de um dos quatro ventos. Mas
seria esta interpretação adequada ou apenas “menos ruim” do que a primeira?
Pare e pense: os quatro ventos simbolizam as quatro regiões da Terra. Assim,
podemos concluir que o chifre pequeno surge de um dos quatro pontos cardeais.
Logo, ele é um poder novo, distinto de Roma. Isto combina com o que já vimos em
Daniel 2 e 7. A mesma sequência de impérios mundiais aparece em todos os
capítulos estudados (com a omissão justificada de Babilônia). O poder romano
(que se segue à Grécia, tanto em Daniel 2, 7, como no capítulo 8), em sua fase
papal, corresponde às características que a profecia atribui ao chifre pequeno,
o qual iria 1) engrandecer-se (Dn 8:10), 2) substituir o sacrifício de Cristo
(v. 11, 25), 3) ter sucesso em sua oposição à Verdade (v.12, 24) e 4) perseguir
o povo de Deus (v. 24).
Como endosso a esta segunda
interpretação, há um dado importante: as línguas escritas apresentam a ideia
básica de concordância de gêneros. Ninguém diz: “Minha tia é bonito”, por
exemplo. Masculino concorda com masculino e feminino com feminino. Esta
constatação óbvia nos ajuda a entender melhor o que Daniel escreveu. Em
Português, tanto “chifres” como “ventos” são palavras masculinas, o que torna a
expressão “de um deles” dúbia. Mas na língua original, a palavra correspondente
a “chifres” é feminina, enquanto as demais são masculinas, o que não deixa
dúvidas quanto ao fato de que o chifre pequeno surge de um dos quatro ventos
(C. Mervin Maxwell, “Uma nova era segundo as profecias de Daniel”, p. 158).
À semelhança do que ocorre em Daniel 7,
vemos que a ação de um pode maléfico desperta uma reação divina. E isto nos
leva a um diálogo singular em Daniel 8. Dois anjos estão conversando. Um deles
pergunta sobre a duração do sucesso de Roma papal em se opor a Deus e Seu povo.
Até quando o mal prosperaria? “Até duas mil trezentas tardes e manhãs, e o
santuário será purificado”, responde o segundo anjo.
Não se trata apenas de chifres, animais
exóticos, anjos e perseguições; estamos diante do desdobramento do grande
conflito. Verdades ignoradas por muito tempo seriam revitalizadas. Um Deus
justo acionaria Seu julgamento para condenar o poder romano e reivindicar a
causa de Seus seguidores fiéis. Daniel 8 revela a luta entre o bem e o mal. A
batalha é muito mais antiga do que muitos podem entender em uma leitura
superficial do texto. E o mais importante, dentro desta batalha, é que você
escolha de que lado vai lutar.
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