terça-feira, 17 de dezembro de 2013

HEROÍSMO EM VÃO?

Jorge acordou sobre o plástico da cama, com o braço que ele mesmo havia costurado e sob o efeito do anestésico que tomara. A frequência da polícia informava que muitas viaturas seguiam para o hotel em que ele estava escondido. Finalmente, os federais seguiram suas migalhas: a cada carro localizado, eles tinham uma pista. Chegaram a uma região e, finalmente, um dos atendentes de hotel informara receber um hóspede com sua descrição física. Os detetives pediram reforços e em poucos minutos, Jorge se veria cercado.
Levantou-se de súbito, com o braço dormente. Lavou o rosto e pôs a dentadura postiça, a peruca roxa. Da sua caixa de emergências, ainda buscou uma “prótese de adiposidade” – espécie de almofada anatômica que ele prendia à cintura para que aparentasse ser mais gordo. Em poucos minutos e com roupas escuras, tornara-se outro homem, bem diferente daquele que fizera o check-in às pressas, com a urgência de extrair as balas do braço.
Jorge limpou o quarto, embrulhando a roupa antiga e vestígios pessoais no plástico com o qual forrara o quarto. Colocou em uma sacola grande – a mesma com a qual entrou, mas que, uma vez colocada do avesso, parecia outra.
Desceu as escadas assoviando um pagode, enquanto ouvia os policiais do saguão se reunindo para invadir seu apartamento. A confusão era tamanha que nem deram atenção ao senhor idoso e corpulento que descia, sem saber que ali estava quem eles buscavam.
Em um beco há poucos metros do hotel, pôs gasolina na sacola com o plástico e a viu queimar, apagando tudo que poderia levar a ele.  Logo estaria no metrô. O braço doía enquanto Jorge dava seu último olhar, esperando não ter sido seguido.
Assentado no banco do metrô, ele se lembrava de como aquela loucura de invadir escritórios de políticos corruptos e pressionar traficantes começara, há uns vinte anos. Jorge era um policial idealista, com bom preparo físico e um senso de justiça aguçado. Cansou de ver injustiças. A lei parecia uma colcha de retalhos e suas brechas eram sabiamente explorados por criminosos sempre mais espertos do que os policiais.
O metrô interrompeu seu som aveludado parando em uma estação movimentada. Jorge abriu os olhos – dormira por três ou quatro estações. Desceria na próxima. Ao seu redor, poucas pessoas: uma senhora obesa, de pele clara e olhos de um azul esperançoso. Ao seu lado, um sujeito magro, com cara de universitário, ouvia som tão alto em seu fone que parecia incomodar todos. Ao fundo, outra menina, presa na leitura de um livro. O cabelo tingido de vermelho caía por sobre sua testa cheia de espinhas.
Jorge andou três quarteirões até chegar em casa. Sua rua fora uma das mais perigosas do bairro. Seu trabalho intenso afastou os traficantes e trombadinhas. Aquele era seu motivo de orgulho. Após fechar o portão, o senhor de meia idade se dirigiu à oficina. Em uma espécie de porão secreto, cujo acesso se dava por uma escada de madeira localizada abaixo de um sofá aposentado, Jorge cumpriu o ritual de toda noite.
Ele sempre entrava, usando lentes ultra-violetas. Afinal, o local tinha de permanecer escuro para não ser notado. Jorge conferia as chamadas da ploícia e acompanhava por meio de um computador gasto os noticiários. Chegou bem a tempo de ver a reportagem sobre a luta do Colante Negro com vendedores de carros roubados. A repórter se perguntava se o herói sobrevivera ao confronto com traficantes armados, informando que fontes extraoficiais indicavam que a polícia estivera ao encalço do vigilante a noite toda.
Jorge engolia a última xícara de café enquanto pesava sua atuação. Sentia-se mais lento e em desvantagem em face do armamento pesado dos criminosos. Pensara em recrutar alguém, para ser treinado e assumir o uniforme do Colante Negro, nome que a mídia lhe dera há tanto tempo que não podia mais protestar (ele sempre quis que o chamasse de Morcego Destemido, o que faria com que duas companhias de Histórias em quadrinhos o processassem!).
A cada dia, Jorge sentia estar fazendo pouca diferença. Não dava conta de enfrentar tantas coisas erradas e ajudar a todos os que sofriam com as injustiças. Antes de subir, ele conferiu, como fazia habitualmente, um quadro de seus maiores feitos. As gravuras, em tinta que poderia ser detectada apenas com sua lente especial, falavam de quando ele resgatou o prefeito (há cinco anos), salvou doze tripulantes de um naufrágio (há dezessete anos), recuperou informações sigilosas de uma multinacional (há doze anos) e tantas outras coisas.
No chuveiro, Jorge não parava de pensar em quantos tiros tomara nessa noite por pura imprudência. A polícia quase o capturou. Era sempre assim: toda vez que mudava o comissário, o novo oficial decretava caça ao Colante Negro. Isso até aprender que os homens da lei precisavam dele e a parceria se formar. Agora um policial prestes a se aposentar e realizando funções administrativas, Jorge tinha mais tempo para salvar a cidade – e menos energia também.
Deitado ao lado da esposa, pensou em como explicaria para ela os curativos no braço. Aquilo ainda doía. A velhice parecia desmotivar o mascarado. Por quanto tempo mais conseguiria viver daquele jeito? Por mais que tentasse, nenhuma solução humana lhe surgia à mente para vencer o que estava de errado na sociedade. Jamais se imaginou pensando isso, mas aquilo era luta perdida.

Acordou pela manhã ao som de um programa evangélico que a esposa sempre ouvia. A leitura de Apocalipse 21 capturou sua atenção…

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