quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

TECIDO PROPOSITALMENTE


A túnica, de um tecido multicor, vinha dobrada de forma desajeitada, escondida nas mãos postas para trás, o que não se escondia era o forte odor de bicho sacrificado, fazendo com que se adivinhasse pelo olfato o tecido empapado em sangue, e aquilo ficava evidente à medida que seus passos trêmulos ganhavam a tenda, indo ao encontro ao velho, que assistia sem suspeitas um poente despido de presságios, Que foi?, parecia dizer primeiro com o olhar, depois com as palavras acorrentadas aos anos de peregrinação, e eles sabiam do peso que as cãs conferiam ao patriarca, e aquela sensação de estar diante de uma figura solene cresceu quando o idoso se ergueu num sobressalto, quase se podendo ouvir os estalos de seus ossos, retinindo com o esforço inusitado, a energia repentina que tomou seu corpo macilento, agora sim, que podiam dizer, além de palavras malensaiadas e receosas, que parecessem tolas e inverídicas?, até pelo fato de serem inventadas mesmo, que fariam?, ora, resolveram-se a seguir o plano, pois que não estavam nisto juntos?, foi nisso que mostraram primeiro a imagem, o tal tecido manchado com sangue, e o velho agigantado reduziu-se, mas não voltou à forma contemplativa em que o encontraram, descia, porém, a um estágio senil, como se o seu vigor se dissolvesse em conjunto com as últimas luzes daquela tarde até então corriqueira, o velho estava mais velho do que nunca, e a pergunta friamente proferida, que eles fizeram questão de repetir de forma calculadamente reticente, sem querer levantar dúvidas pelo excesso de informações desnecessárias, Seria isto de seu filho?, que dor acarretou sobre o homem idoso, como se seus olhos gritassem e sucumbissem numa carreira desenfreada de estertores, a comoção deles surgiu deste sofrimento paterno e, por alguns minutos em que o pai tentava inutilmente se conter, eles se esqueceram das causas do sumiço do caçula e aceitaram a própria história, sofrendo junto com o velho a perda de um ente da família, embora a sensação fosse volátil e o ciúme lhes ocorresse à semelhança de um sonho irrealizado de infância que sempre retorna, o pai, finalmente gritou, a rotina se petrificou, tudo se esgarçava enquanto a noite descia, mas não podiam voltar, não!, de que maneira diriam que o irmão não morrera, mas fora levado por uma caravana, achando-se, se bem o conheciam, trôpego e lacrimalmente desamparado em algum ponto do trajeto para o Egito?, seria demais admitir falta tão grave, pelo que, tornou-se preferível que cada um se apegasse ao pacto de silêncio, em nome de uma fraternidade que desconhecia a essência do sentimento fraterno, o próprio amor.

2 comentários:

Cyro Barretto disse...

Excelente! Amo este tipo de relato. Foi muito verdadeiro e comovente. Como deve ter sido duro para este pai receber esta notícia.

Fico imaginando o efeito colateral da decisão de Labão, que empurrou Lia para os braços deste homem.

Muitas vezes não temos idéia do pode acontecer, quando decidimos pelo engano.

Gostaria de saber se existem outros relatos semelhantes.

douglas reis disse...

Cyro,

Fico satisfeito por saber que o texto lhe proporcionou uma experiência agradável. Na verdade, produzo uma série, cujo objetivo é recontar histórias bíblicas dentro de uma abordagem mais literária. Muitos destes pequenos textos estão disponíveis no próprio blog, no marcador "Conto". Boa leitura!