O ônibus tremia pelas curvas acentuadas enquanto voltávamos. Fazia um frio cru. A reunião espiritual terminara. A última noite subindo o morro. Mas era agradável falar àquelas pessoas, vê-las dispostas a ouvir do Salvador. A localização insensata da igreja – no alto do morro da biquinha – era, sem dúvida, um desafio para aquela comunidade simples, que tinha de ir a pé prestar culto ao Senhor.
O ônibus seguia vazio, o que adensava a sensação de frio. Eu, que nem chegara aos dezoito, ia acompanhado do diretor do grupo onde falara. Ele, um homem de riso fácil, calvície insinuada e baixa estatura. Havia colportado por muitos anos, tinha experiência. O sossego era o cotidiano da viagem.
Em determinado ponto, subira um rapaz magro, de fisionomia pouco marcante. Ele passou pela catraca, pagou a passagem e se conduziu à parte traseira do veículo. A partir daí, de forma a princípio banal, iniciou-se uma intrincada discussão entre este último passageiro e o cobrador.
Sentado próximo ao funcionário, pude ouvi-lo afirmar que o troco fora dado corretamente. O passageiro, aumentando o volume de voz, apontava um suposto erro na quantia. A exasperação mútua assomava pelo recinto. Finalmente, revoltado com a discordância, o passageiro cometeu seu mais sério erro: girou a catraca. Ao fazê-lo, era como se diversas pessoas tivessem passado por ali.
Diante do ocorrido, o cobrador não teve dúvidas: eu vi quando ele praticamente saltou de seu assento e partiu para cima do homem com quem discutira há pouco. O rapaz foi encurralado na janela do lado esquerdo (o do motorista). O cobrador batia em seu estômago. Eram socos sonoros, retinindo nos ouvidos dos demais passageiros, estupefatos àquelas alturas.
Estávamos em frente à cachoeira da macumba, local que deve seu nome às práticas da religião afro. Não demorou muito: o motorista parou o carro Saiu afoito de seu lugar e pulou a catraca (com agilidade surpreendente para alguém tão corpulento!). Senti um alívio momentâneo – aquela loucura terminaria, pensei. Pelo contrário! O motorista uniu-se ao seu colega e agora ambos batiam no passageiro.
Por um momento, o dilema se me afigurou: deveria dizer alguma coisa, eu que pregara sobre Jesus a semana inteira? Deveria incentivar os demais passageiros a impedir o pior? Deveria evacuar o veículo? No tumulto do meu interior, acabei não fazendo coisa alguma.
Mas alguém fez. Um homem se apresentou e deu algum dinheiro ao cobrador. Não sei precisar se ele pagou toda a dívida do passageiro agredido; mas ele e o rapaz saíram juntos, sob o rugido do motorista, que advertia o homem que girara a catraca a não mais fazer uso daquela linha de ônibus. A viagem seguiu.
O lado cômico da história ocorreu quando uma senhora à minha frente perguntou a mim e ao senhor que me acompanhara se não poderíamos lhe emprestar alguns centavos. Ela precisava completar o valor da passagem. O medo em sua fala deixou patente que ela temia que lhe acontecesse algo semelhante ao que todos acabáramos de testemunhar.
Ainda me lembro visualmente dos fatos, passados tantos anos. Sinto ainda aquela impotência, o medo a sensação de injustiça e abuso. De uma banalidade, tanta violência. Será que algo mudou no mundo ?
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