sábado, 1 de novembro de 2008

CULTURA SINFÔNICA



A primeira vez que pude ouvir Wintley Phipps cantar foi durante a NET 96, a pioneira programação de evangelismo via satélite empreendida pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. Lembro-me que a voz grave, o vibrato caprichado e a técnica exímia de Phipps causaram uma impressão favorável na minha mente adolescente. Somente anos mais tarde, já na faculdade de Teologia, pude ouvir o cantor num fita VHS (lembra-se delas?), cantando Nigro Spirituals com um conhecimento de causa. Phipps explicava que todos os Spirituals poderiam ser tocados apenas com as black notes, as notas pretas do piano; em seguida, cantava uma daquelas canções marcantes a uma seleta audiência (sentado para ouvi-lo estava, entre outros, o Pr. Mark Finley, o grande orador que dirigiu a NET 96).
O respeito em torno de Wintley Phipps no meio evangélico americano é espantoso. Ele é presença cativa em DVS produzidos por Bill Gaither – participou solando o hino It's well with my soul (Sou feliz com Jesus, HA 230) em How great thou art (2008). Os mais antigos irão se lembrar de sua participação no musical Savior, ao lado de Steve Green, Larnelle Harris, e grande elenco.
Phipps também produziu neste ano um DVD solo. Intitulado Spirituals: A Symphonic Celebration (de agora em diante SSC), mais uma vez vemos neste trabalho o intérprete voltando às origens da música negra evangélica.
Gravado em um cenário que remonta às fazendas de algodão, aonde os escravos viviam e trabalhavam, SSC conta como os antigos spirituals cumpriam a condição de tanto dar vazão às emoções reprimidas de um povo (em sorrow songs como Nobody Knows The Trouble I've Seen), como transmitir códigos com rotas de fuga para os negros (a exemplo de Steal Away, cujo refrão reza algo como: "Fuja/Fuja/Fuja para Cristo", o que vale um comentário irônico do próprio Phipps).
Sobretudo, SSC se impõe pela força do intérprete. Desde o cantor lírico Paul Robeson, não se via um cantor esbanjar tal vigor e versatilidade, aliados a técnica depurada. Wintley Phipps sabe usar sua voz aveludada, com graves nítidos e bem pronunciados, em nada a dever aos melhores baixos solistas. Assim ele introduz dramaticamente Motherless Child (que contém aquele que, para mim, é um dos versos que melhor expressa desalento na Literatura recente "Às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe"). Surpreendentemente, Phipps alterna interpretações minimalistas e intimistas com trechos grandiloquentes, atingindo notas mais próprias a um barítono lírico.
Em alguns casos, Phipps chega a introduzir ritmos negros modernos em suas interpretações, dando, por exemplo, uma pitada de funk (não confundir com o genérico carioca) a Wade in the Water e acrescentando acordes jazzísticos a Gospel Train. No geral, porém, a orquestração mantém um razoável equilíbrio entre as raízes negras e a interpretação requintada do cantor, a qual varia entre a forma caracteristicamente negra de cantar com sua formação erudita.
Sem dúvida, entre os baixos solistas, como os legendários Duanne Hamilton e Jim MacDonald (emergentes do Heritage Singers), Phipps é que possui timbre mais macio e maior extensão vocal, o que lhe dá sobejas vantagens quanto à forma de expressar as emoções contidas nos spirituals. Sabiamente, os antigos hinos negros são aproveitados em seu plano espiritual, sem se esquecer de que eram primariamente parte de um fenômeno cultural.
No Brasil, os nigro-spirituals são conhecidos quase que exclusivamente via Wayne Hooper (o compositor de Oh, que esperança, HA 469), que fez os arranjos de dezenas daqueles cânticos ao longo de décadas, sendo que os King's Heralds gravaram originalmente as canções, posteriormente traduzidas e emuladas pelos nossos Arautos do Rei (desde 1962, com o lançamento do LP Hei de estar na Alvorada, um legítimo spiritual).

Sobretudo, SSC é uma lição de como podemos aproveitar diversas tradições culturais para somar com a cultura evangélica, o que se torna ainda mais relevante em uma época na qual os músicos cristãos apenas reproduzem e reutilizam o que a cultura de massa lhes oferece, sem que haja claros critérios de seleção ou parâmetros seguros para nortear a produção musical.

Leia mais:

Sobre a influência da música gospel negra em cantores brasileiros:

Sobre influências seculares na música evangélica:

Sobre critérios filosóficos para a música cristã:
A música sacra dentro da cosmovisão adventista: interpretando e aplicando conceitos de Ellen White (parte 1 parte 2 parte 3 parte 4)

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