Estacionou o caminhão, desceu, o corpo ainda rijo por causa das horas na autoestrada. A mulher o recebeu sem maiores demonstrações. Com uma cerveja na mão, abandonou-se aos afagos do sofá. Quase às vinte e duas, levantou-se, cochilara? Dormia agora na cama, o corpo levemente oval sobre o lençol. Três horas mais tarde, acordara com o choro. Revirou-se, resmungando qualquer coisa para a mulher. Isso ocorreu por duas vezes.
Finalmente, coçou os poucos fios da nuca e se assentou. A mulher nem o encarava. Perguntou-lhe que tinha. Percebeu somente ali que ela nem dormira. Pondo os chinelos trocados, dirigiu-se ao quarto vizinho. A menina chorava, desconsolada. Um tom assustado fremia sobre aqueles olhos da filhinha do papai. Sentou-se e quis saber se era doença ou manha. Não parecia nem um, nem outro.
“Samanta, ou você fala ou vou ser obrigado a pegar a vara.” O incentivo soía funcionar. Insistiu um pouco mais, com a mãe estacionada na porta do quarto da filha. Sem resposta imediata, caminhou até os fundos da casa. Sacou um facão e limpou alguns galhos secos da árvore do quintal. Voltou para o quarto com a tirinha de madeira.
Repetiu a ameaça. Samanta apenas chorava, com um grito contido, uma dor sem caminho para expressão. A essa altura, a mãe segurava sua mão, e suplicava ao pai com a boca tremente.
“Onório, vamos dormir, amanhã…”
O marido corpulento afastou a mulher com o braço, sem que ela lhe oferecesse maior resistência. Deu a mão à criança e levou-a até o quintal.
Bateu uma, duas, três vezes. Depois, se ajoelhou diante de Samanta e disse que queria saber a verdade.
“Papai, eu não posso contar; o senhor é muito bravo.”
Onório gelou. O que havia acontecido? Insistiu, dessa vez com uma brandura firme, deixando a vara no chão da área de serviço. A lua escorria sobre eles, permitindo que pai e filha vissem o brilho do olhar do outro.
Dona Marina inferia na sala o teor da conversa. Agitara-se, ora levantando e rodeando o tapete, ora quedando-se sobre o sofá, num aspecto de infartada. Ela própria possuía algumas suspeitas, mas nunca investigara nada. Por medo. Às vezes, a verdade é um parente que, sem convite, invade nossa casa, não age com bons modos e se recusa a sair. Por isso, feliz quem não lhe abre a porta.
Quinze minutos se passaram. Onório voltou como um tufão. Passou pelo quarto e remexeu as coisas. Marina sabia o que ele procurava. Queria impedí-lo. No entanto, a filha chegou, olhar de alívio e tristeza. Correu para a mãe como os navios tendem para os portos. Chorava baixinho, contagiando a mãe. Até que disse:
“Eu contei tudo para o papai.”
“Contou, contou o quê?”, perguntou afastando subitamente a filha de seu ombro e encarando-a com tal desespero que só lhe aumentou o desconsolo. “O que você disse ao seu pai?”
Onório vinha do quarto, expressão chocada e austera. “Estou saindo.” A mulher se levantou, arremessando a filha a um canto do sofá. “Onório, não vá fazer besteira…”. “Pois é bem isso que vou fazer.”
Ele saiu sem espaço para palavra. A mulher olhou o bolso traseiro e notou o volume. Derrotada, sentou-se no sofá com a filha. Toda a conversa lhes fugiu dos lábios. Eram somente duas almas enclausuradas em pensamentos aleatórios.
Onório dirigiu sem pausa. Parece que pressentira tudo quando estacionou o caminhão longe da garagem. Assim, pode tirar rapidamente o velho Corcel. Chegou até a casa de Chico, amigo da família. Pulou o portão e forçou a porta. Sabia em que quarto Chico estava, e mesmo assim a escuridão lhe confundiu. Seguiu pela esquerda. Abriu a porta. Viu o despertador marcando três horas. Seu vulto acordou o casal. A Vânia ligou o despertador. Diante dela e do marido, ambos sonolentos demais para estarem estarrecidos, estava Onório, arma em punho.
Ele mirou a cabeça de Chico. Gritou com violência. À medida em que os donos da casa entendiam que aquilo não se tratava de um sonho, o pânico aumentava. Onório agiu rapidamente. Arrancou Chico da cama e aplicou coronhadas e tabefes nele. Xingou o amigo e o forçou a seguí-lo. Ainda encontrou tempo para dizer para Vânia porque estava ali. Mas o fez de forma tão truncada que a mulher apenas ficou confusa, sem reação.
Chico apanhou bastante até chegar ao carro. “Safado”, “sem-vergonha”, “aproveitador” foram as expressões mais sutis que ele ouvia. Então, Onório sabia! O que dizer? Era difícil explicar. Ele dirigiu o Corcel segundo as orientações do sequestrador, que mantinha o revólver colado em sua têmpora. Muitas voltas depois, estacionaram.
Chico marejava. Tremia todo, sem esconder seu pavor. Pensava na família, na casa nova, na esposa grávida… com alguma dificuldade, olhou para o companheiro enfurecido. Havia pouco a dizer, mas resolveu encará-lo nos olhos. Com a voz amanhecida, conseguiu falar: “Onório, o que fiz foi por amor.”
Onório esqueceu-se da arma. Segurando Chico, passou a espancá-lo com brutalidade. “Seu… seu doente!” Quando terminou, o outro estava uivando, a mandíbula fraturada, e lesões assomando pela face. Sem dúvida, pelo menos uma costela fora quebrada. O revólver voltou a ser empunhado. O gatilho acionado, ao som da ladainha “por favor, não me mate, não, por favor”, Onório puxou o gatilho. Subiu no carro e voltou dirigindo.
Chegou em casa pelas cinco. As viaturas o esperavam. Alguns vizinhos desafiaram o sono para ver o porquê do movimento. Estacionou tranquilo. Ficou no carro, distante, alheio às vozes de policiais. Até erguer o braço, e ser escoltado. Em meio ao tumulto, afirmou: “Não matei o infeliz”. Algemaram-no. Antes de ir preso, voltou-se para Samanta, sem ver nela inocência ou alegria. Ele a deixava na hora de maior sofrimento. Porém, fizera aquilo por amor, repetia para si mesmo, até se dar conta de que já ouvira a frase naquela madrugada…
Um comentário:
Já falei por email mas vou repetir aqui:
Este é um dos melhores contos que já li.
Postar um comentário