O cientista Marcelo Gleiser: esse aí não joga no time de Dawkins
Duas
colunas publicadas na edição da Folha de São Paulo, neste último domingo,
chamaram a atenção: "O criacionismo
de Marina", de Marcelo Leite, e "A
primeira causa", de Marcelo Gleiser. [1] Quero ponderar o que cada
autor separadamente defende, ressaltando suas perspectivas peculiares, e isso a
despeito de os dois combaterem (declarada ou implicitamente) o mesmo
"adversário": o Criacionismo.
Marcelo
Leite foca seus questionamentos no envolvimento dúbio da ex-ministra Marina
Silva, pré-candidata à presidência, com o ensino do Criacionismo nas escolas.
Cita dois fatos que demonstram ambiguidade da parte de Marina: uma entrevista
ao site Éoqhá [2] e outra ao programa Roda Viva. Na primeira, ela apoiara
timidamente o Criacionismo; na segunda, Marina nega que o tenha feito.
Leite
então analisa alguns trechos da entrevista ao Éoqhá e dá seu veredito:
"Não é uma resposta aceitável, vinda de ministra de um Estado Laico.
Devemos fazer distinção, fundamental, entre ensino de ciências e ensino de
religião." A problemática do parágrafo nos leva a considerar dois pontos:
o entendimento de Estado Laico e a natureza do Criacionismo.
O
que é um Estado Laico? Certamente a expressão "laico" não adquire o
sentido de "irreligioso" ou "ateu". Em um Estado Laico não
se pode beneficiar uma religião em detrimento de outras, o que caracterizaria favoritismo.
Todos têm o direito de crer no que quiserem, isso é fato. Agora, cabe
refletirmos: ensinar, ou mesmo cogitar a possibilidade alternativa de se
ensinar o Criacionismo (como proposta científica) iria prejudicar a democracia
em quê? Desde que alunos tenham a possibilidade de avaliar modelos de origens
ou visões distintas da ciência, a democracia estaria salvaguarda - muito mais
do que ao se beneficiar um modelo em detrimento de outros.
Um
exemplo pode ser útil. Imagine que uma corrente de pensamento, a qual
defendesse a infidelidade de Capitu (do romance Dom Casmurro, de Machado de
Assis), se impusesse nos livros didáticos de Literatura. Entretanto, após a
aceitação generalizada dessa corrente, surgisse uma outra, advogando justamente
o oposto – a inocência de Capitu. Até aí, seria uma disputa justa entre formas
opostas de pensamento. Mas, e se os professores que advogassem a primeira
corrente conseguissem apoio e, através da sanção de uma lei, impedissem o
ensino do pensamento diferente? Seria isso democrático? Favoreceria os
educandos confiná-los ao acesso a uma forma de ver as coisas?
Quanto
ao segundo ponto, o que dizer de uma suposta "distinção fundamental"
entre ciência e religião? Trata-se de uma típica falácia Argumentum ad Nauseam (na qual algo que é repetido à exaustão
adquire foros de verdade). Criacionismo não é religião. Claramente, o
Criacionismo tem pressupostos calcados no Teísmo bíblico (e isso no Ocidente;
os muçulmanos também advogam um outro tipo de Criacionismo, o que não interessa
aos propósitos dessa discussão). Se pensarmos no Evolucionismo, poderemos notar
que sua matriz filosófica também norteia uma determinada praxis. Ambos os
modelos trabalham com inferências, levantamento de dados, avaliação, hipóteses,
construções de teorias, etc. As descobertas que fazem agregam conhecimento, mas
não mudam a orientação filosófica dos modelos. Nesse aspecto, Criacionismo e
Evolucionismo são similares. A prova é que os primeiros a empregarem o método
científico eram... criacionistas!
O
segundo Marcelo se preocupa com uma questão antiga: o argumento da primeira
causa, o qual remonta aos filósofos gregos e a Agostinho. Tudo tem uma causa, o
que pressupõe uma sucessão de causas concomitantes e sucessivas, desencadeadas
por uma causa primeira, ela própria incausada. Tal argumentação lógica tem
servido como inferência da ação criadora de Deus, encarado como a primeira
causa.
Marcelo
Gleiser trabalha no sentido de negar a necessidade de uma causa tal.
"[...] Esse é um debate ferrenho que, infelizmente, entrava o progresso
cultural." Deveríamos perguntar a Gleiser como ele justificaria essa
afirmação, se hoje é sabido que tais questionamentos, de natureza teológica e
filosófica, acabaram criando o pano de fundo para o desenvolvimento da ciência,
ainda durante a Idade Média e, mais tarde, para a revolução ocorrida a partir
do século XVII. Uma vez que Geisler fez a afirmação, que ele se encarregue do
ônus da prova.
À
frente, ele continua: "[...] A ciência não se propõe a responder a todas
as perguntas. E por um motivo simples: nós nem sabemos que perguntas são essas.
Dado que jamais teremos um conhecimento completo da realidade, jamais poderemos
construir uma narrativa científica completa."
Oposto
ao triunfalismo disfarçado de Marcelo Leite, que desqualifica o Criacionismo,
vociferando que só o Evolucionismo é ciência, o seu homônimo expõe a debilidade
da ciência, afirmando coisas que fariam Dawkins corar - de raiva! Em seu livro,
O Capelão do Diabo, Richard Dawkins
escreve um capítulo contra o relativismo na ciência, reivindicando a condiçãoda ciência como detentora do verdadeiro conhecimento. [3] Contudo, Gleiser
prefere a essa certeza máxima a "simplicidade do não-saber".
Curiosamente, os darwinistas acusam cristãos de fomentar a ignorância e de crerem
no que não podem explicar!
A
declaração final de Gleiser é tentadora, no sentido de favorecer uma leitura
que a ampliasse, tornando-a um severo juízo sobre a própria cosmovisão
evolucionista (embora, muito provavelmente, o autor não quisesse dar a entender
isso): "[...] prefiro continuar tentando [ao invés de admitir Deus como
causa primeira] e aceitar que, por ser humano, minha visão de mundo tem
limites."
Nas
duas colunas analisadas, percebe-se que velhos preconceitos impedem os autores
de encarar pressupostos com base religiosa apenas pela própria base religiosa.
Este tipo de falácia genética, infelizmente, tem marcado a nossa época,
impedindo uma averiguação racional de pressupostos cristãos. Esperemos que mais
consideração sobre causas e efeitos favoreçam o debate, substituindo o
preconceito, promotor de um não-debate, o qual a ninguém favorece.
[1] Ambos se encontram em Folha de São Paulo, ano 89, nº 29.397,
27 de Setembro de 2009, 3.
[2] Matheus Siqueira, Entrevista com a Ministra do Meio Ambiente
Marina Silva, disponível no Éoqhá.
[3] Richard Dawkins, O capelão do Diabo (São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2005), 36.
4 comentários:
Muito bom o seu texto!
bem elucidativo.
vemos que a contradição dos pressupostos anticriacionistas não é falta de vigor intelectual dos pensadores ateus. é preconceito mesmo. e o preconceito é filho direto da ignorância, do desconhecimento do outro, da desqualificação generalizante do pensamento do outro. e como sabemos, o preconceito e o conhecimento superficial tendem a obscurecer o raciocínio.
Só quem não conhece a obra do Gleiser para achar que ele não é ateu, ele joga no time do Dawkins sim, só é mais sutil, em seu ótimo livro CRIAÇÃO IMPERFEITA isto fica bem claro...
Um textinho pra complementar a visão do Gleiser. O Leite é um apressadinho, tem ejaculação intelectual precoce, coisas da adolescência.
"Richard Dawkins não é cientista, é um escritor da ciência" afirma Wilson.
http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2013/03/edward-o-wilson-evoluimos-gracas-luta-do-bem-contra-o-mal.html
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