quarta-feira, 9 de abril de 2008

ESPERANÇA, PROPÓSITO E VIDA: A ENCÍCLICA “SPE SALVI” VISTA DE UMA PERSPECTIVA ADVENTISTA - parte 2

DESCONHECIMENTO DA ESPERANÇA

Ao tratar da vida eterna, Bento XVI menciona que a morte não é desejável, mas nos acomodamos a ela. O aspecto positivo da morte, para ele, é pôr um termo na vida que, caso se prolongasse indefinidamente seria algo “fastidioso e, em última análise, insuportável.” Nem mesmo a terra teria sido “criada com esta perspectiva” de uma vida imortal. A antítese entre a rejeição da eternidade e a luta para prolongar a vida levam o papa a concluir que não “sabemos realmente o que queremos; não conhecemos esta ‘vida verdadeira’; e, no entanto, sabemos que deve existir algo que não conhecemos e para isso nos sentimos impelidos.” Sem considerar o material bíblico sobre o tema, Bento XVI ensaia uma solução filosófica:

“A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria.”
[1]

Aqui o teólogo cede espaço ao poeta. Entretanto, por mais que o estilo seja tocante, é forçoso admitir que há sérios problemas na definição de vida eterna estritamente como “o instante repleto de satisfação”. A qualificação “eterna” diz respeito não só à condição da vida, como também à sua extensão. Se a vida eterna fosse menos do que literalmente eterna, teríamos de concordar que não haveria solução para o problema da morte, que, por sua vez, existe como conseqüência do pecado. Ora, se algum resquício do pecado sobrevivesse à concretização do plano redentor, Deus não seria Vitorioso no Grande Conflito. Porém, a promessa é de que “não haverá mais morte” (Apoc. 21:4).

A noção da vida eterna que católicos e muitos protestantes endossam revela-se contaminada pelo pensamento grego. Eternidade acaba sendo entendida como um tempo estático, do qual não se nota a passagem, ou mesmo como um dia contínuo. Essa concepção, se verdadeira, seria de fato “fastidiosa” e “insuportável”. No entanto, a Revelação aponta para outra direção.

Talvez mais do que outros livros do cânon bíblico, é em Isaías que encontramos evidências de quão concreta, ativa e estimulante será a vida eterna (Is 65: 21-23). O mesmo autor expressa que a adoração sabática se estenderá na Nova Terra (Is 66:23), o que sugere a continuidade do ciclo semanal durante toda vida imortal. A eternidade, assim, não é um tempo que não passa, mas um tempo que não se acaba. Sentiremos o tempo passar, mas continuaremos a aprender, a estudar, a produzir, a criar, a nos relacionar e a adorar, crescendo à semelhança do Senhor, sem sermos limitados pelos aspectos negativos do tempo – como a velhice e a morte. Poderia haver uma esperança de vida futura mais bela e significativa do que aquela que está presente na Bíblia?

Outro equívoco da esperança oferecida pela encíclica fica a cargo do dogma do purgatório; segundo Ratzinger, podemos encontrar referências à “condição intermédia”, na qual “almas não se encontram simplesmente numa espécie de custódia provisória, mas já padecem um castigo”. É o caso de nos perguntarmos quão antigas são as referências judaicas à essa “condição intermediária”. Por ocasião do período inter-testamentário, a influência do pensamento grego já se responsabilizara por disseminar entre os judeus a idéia de uma alma imortal que sofre castigos no outro mundo. Na Spe Salvi, se faz menção a esse “judaísmo antigo”, citando o livro apócrifo de 2Mac 12:38-45, do I século a.C.

Apelando às emoções para sustentar seu castelo de areia teológico, o papa descreve um amor que chega “até ao além”, que nos liga uns aos outros “para além das fronteiras da morte”, o que, segundo a sua opinião, constitui “uma convicção fundamental do cristianismo através de todos os séculos e ainda hoje permanece uma experiência reconfortante.”

À certa altura, o papa admite que a doutrina do purgatório “se desenvolveu aos poucos na Igreja ocidental”
[2], o que, se analisado à luz da História, mostrar-se-á antes como resultado da influência do paganismo do que como fruto de reflexão da matéria bíblica. A Escritura ensina que a morte é um fim temporário (Ec 3:19-20; 9:5,6, 10; Sl 115:17), diante da qual fecham-se as oportunidades e o juízo passa a ser decidido (Hb 9:27), culminando na execução da sentença através da ressurreição em dois momentos: primeiro a dos justos e, mil anos depois, dos injustos (Dn 12:2, Ap 20:4-6). Curiosamente, faltam dados bíblicos que afirmem ou aludam à existência de um purgatório.

Embora não tenhamos todos os detalhes relativos à vida na eternidade (1 Co 2:9), não estamos sem luz quanto à volta de Jesus e os assuntos futuros (1 Ts 5:1-4). Nossa esperança será sólida na medida em que estiver alicerçada sobre as bases bíblicas e livre de amalgamações com a filosofia meramente humana. Para os adventistas, o estudo das profecias, especialmente as que encontramos nos livros de Daniel e Apocalipse, tem mantido o foco de nossa esperança na pessoa de Jesus e naquilo que a revelação sobre os últimos acontecimentos descreve.

MEDIAÇÃO DA ESPERANÇA

O acesso à esperança se dá indiretamente, entendendo que o cristão teria necessidade, de acordo com Ratzinger, de ser orientado por “pessoas que souberam viver com retidão”; conquanto qualifique a Cristo como “luz” e “sol”, ele refere-se à Maria como “estrela da esperança”, “Arca da Aliança viva’, “mãe de todos aqueles que querem acreditar” em Jesus, a “Mãe da esperança”. A conclusão é toda ela uma oração à Maria.

Nem precisa dizer que esta esperança mediada não possui respaldo escriturístico; Paulo retrata a Jesus como “Autor e Consumador da fé”, em quem devemos colocar os nossos olhos enquanto participarmos da corrida espiritual (Hb 12:1 e 2). Não há, de fato, outro Salvador no Céu (At 4:12) ou Intercessor ao lado do Pai, que esteja à altura da função; Jesus é o único, porque morreu por nós, ressuscitou e assiste agora ao lado do trono de Deus (Ef 1:20,21; 2:6; Hb 4:14-16; 8:1 e 2; 9:15). Nesta via de acesso, aberta por Cristo, o catolicismo têm, durante os séculos de sua existência, colocado obstáculos, que impedem os sinceros de estar na presença direta de Deus. A intercessão dos santos é um obscurecimento da esperança cristã, jamais um complemento.

CONCLUSÃO

É produtivo discutir o papel da esperança na vivência cristã. Conforme as denominações envelhecem, seus membros de gerações mais recentes tendem a se esquecer dos valores primordiais do credo, assimilando uma vivência transigente com a época em que vivem. Nós adventistas corremos esse risco, que implica na obliteração de nossa identidade.

Ao mesmo tempo que as questões levantadas pelo papa Bento XVI no que tange à ao valor e a aplicação da esperança nos digam respeito, as soluções por ele apontadas são diametralmente opostas àquilo que entendemos ser a revelação de Deus para nossa geração, a qual costumamos nos referir como “a verdade presente”. Não dependemos da tradição medieval ou da crença nos santos. Para enfrentarmos os desafios do mundo pós-moderno temos de nos nutrir da Verdade bíblica, porque os desafios que o mundo põe aos cristãos devem ser vencidos pela esperança de nossa vocação (Ef 1:18).

Leia a primeira parte

[1] Idem.
[2] Ibidem

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