Jorge acordou sobre o plástico da cama, com o braço
que ele mesmo havia costurado e sob o efeito do anestésico que tomara. A frequência
da polícia informava que muitas viaturas seguiam para o hotel em que ele estava
escondido. Finalmente, os federais seguiram suas migalhas: a cada carro
localizado, eles tinham uma pista. Chegaram a uma região e, finalmente, um dos
atendentes de hotel informara receber um hóspede com sua descrição física. Os detetives
pediram reforços e em poucos minutos, Jorge se veria cercado.
Levantou-se de súbito, com o braço dormente. Lavou
o rosto e pôs a dentadura postiça, a peruca roxa. Da sua caixa de emergências,
ainda buscou uma “prótese de adiposidade” – espécie de almofada anatômica que
ele prendia à cintura para que aparentasse ser mais gordo. Em poucos minutos e
com roupas escuras, tornara-se outro homem, bem diferente daquele que fizera o
check-in às pressas, com a urgência de extrair as balas do braço.
Jorge limpou o quarto, embrulhando a roupa antiga e
vestígios pessoais no plástico com o qual forrara o quarto. Colocou em uma
sacola grande – a mesma com a qual entrou, mas que, uma vez colocada do avesso,
parecia outra.
Desceu as escadas assoviando um pagode, enquanto
ouvia os policiais do saguão se reunindo para invadir seu apartamento. A confusão
era tamanha que nem deram atenção ao senhor idoso e corpulento que descia, sem
saber que ali estava quem eles buscavam.
Em um beco há poucos metros do hotel, pôs gasolina
na sacola com o plástico e a viu queimar, apagando tudo que poderia levar a
ele. Logo estaria no metrô. O braço doía
enquanto Jorge dava seu último olhar, esperando não ter sido seguido.
Assentado no banco do metrô, ele se lembrava de
como aquela loucura de invadir escritórios de políticos corruptos e pressionar
traficantes começara, há uns vinte anos. Jorge era um policial idealista, com
bom preparo físico e um senso de justiça aguçado. Cansou de ver injustiças. A lei
parecia uma colcha de retalhos e suas brechas eram sabiamente explorados por
criminosos sempre mais espertos do que os policiais.
O metrô interrompeu seu som aveludado parando em
uma estação movimentada. Jorge abriu os olhos – dormira por três ou quatro
estações. Desceria na próxima. Ao seu redor, poucas pessoas: uma senhora obesa,
de pele clara e olhos de um azul esperançoso. Ao seu lado, um sujeito magro,
com cara de universitário, ouvia som tão alto em seu fone que parecia incomodar
todos. Ao fundo, outra menina, presa na leitura de um livro. O cabelo tingido
de vermelho caía por sobre sua testa cheia de espinhas.
Jorge andou três quarteirões até chegar em casa. Sua
rua fora uma das mais perigosas do bairro. Seu trabalho intenso afastou os
traficantes e trombadinhas. Aquele era seu motivo de orgulho. Após fechar o
portão, o senhor de meia idade se dirigiu à oficina. Em uma espécie de porão
secreto, cujo acesso se dava por uma escada de madeira localizada abaixo de um
sofá aposentado, Jorge cumpriu o ritual de toda noite.
Ele sempre entrava, usando lentes ultra-violetas. Afinal,
o local tinha de permanecer escuro para não ser notado. Jorge conferia as
chamadas da ploícia e acompanhava por meio de um computador gasto os
noticiários. Chegou bem a tempo de ver a reportagem sobre a luta do Colante
Negro com vendedores de carros roubados. A repórter se perguntava se o herói
sobrevivera ao confronto com traficantes armados, informando que fontes
extraoficiais indicavam que a polícia estivera ao encalço do vigilante a noite
toda.
Jorge engolia a última xícara de café enquanto
pesava sua atuação. Sentia-se mais lento e em desvantagem em face do armamento
pesado dos criminosos. Pensara em recrutar alguém, para ser treinado e assumir
o uniforme do Colante Negro, nome que a mídia lhe dera há tanto tempo que não
podia mais protestar (ele sempre quis que o chamasse de Morcego Destemido, o
que faria com que duas companhias de Histórias em quadrinhos o processassem!).
A cada dia, Jorge sentia estar fazendo pouca
diferença. Não dava conta de enfrentar tantas coisas erradas e ajudar a todos
os que sofriam com as injustiças. Antes de subir, ele conferiu, como fazia
habitualmente, um quadro de seus maiores feitos. As gravuras, em tinta que
poderia ser detectada apenas com sua lente especial, falavam de quando ele
resgatou o prefeito (há cinco anos), salvou doze tripulantes de um naufrágio
(há dezessete anos), recuperou informações sigilosas de uma multinacional (há
doze anos) e tantas outras coisas.
No chuveiro, Jorge não parava de pensar em quantos
tiros tomara nessa noite por pura imprudência. A polícia quase o capturou. Era sempre
assim: toda vez que mudava o comissário, o novo oficial decretava caça ao
Colante Negro. Isso até aprender que os homens da lei precisavam dele e a
parceria se formar. Agora um policial prestes a se aposentar e realizando funções
administrativas, Jorge tinha mais tempo para salvar a cidade – e menos energia
também.
Deitado ao lado da esposa, pensou em como explicaria
para ela os curativos no braço. Aquilo ainda doía. A velhice parecia desmotivar
o mascarado. Por quanto tempo mais conseguiria viver daquele jeito? Por mais
que tentasse, nenhuma solução humana lhe surgia à mente para vencer o que
estava de errado na sociedade. Jamais se imaginou pensando isso, mas aquilo era
luta perdida.
Acordou pela manhã ao som de um programa evangélico
que a esposa sempre ouvia. A leitura de Apocalipse 21 capturou sua atenção…
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