Malika.
Malika Oufikir.
Malika nasceu no Marrocos durante o reinado de Mohamed V, rei
que convenceu os pais da menina que lhe cedessem a guarda da filha: assim,
Malika passou a ser dama de companhia da princesa Lala Mina. Malika viveu um
sonho: morava nas dependências do palácio, tinha aulas de equitação, passava as
férias em outros tantos palácios reais, era fotografada pelas principais
revistas do mundo e convivia com celebridades – até chegou a ser presenteada
pelo próprio Walt Disney.
Quando
Mohamed foi sucedido por seu filho, Hassan II, o novo rei continuou sendo um
pai adotivo para Malika. A despeito disso, Malika quis voltar para a casa
paterna, o que de fato aconteceu em sua adolescência.
O
general Oufkir, pai da jovem, era um militar em ascensão: chegou a acumular os
cargos de ministro da defesa e chefe do estado-maior das forças aéreas reais.
Uma carreira tão prestigiosa daria a entender a confiança do rei Hassan no
general: ao contrário disso, porém, o abismo entre ambos apenas aumentava.
Tanto que, em 16 de Agosto de 1972, o rei sofreu um atentado aéreo. Oficiais de
alta patente acusaram o general Oufkir de encabeçar o complô. Oficialmente, o
pai de Malika suicidou-se. Para que o seu nome fosse apagado, sua família,
incluindo a esposa, Malika, seus cinco irmãos e outras duas mulheres amigas
apegadas a eles foram aprisionadas em condições desumanas.
Malika
viveu um pesadelo: desde a prisão domiciliar, a princípio, à reclusão nos
confins do deserto (fronteiriço com a Argélia), onde a família se desacostumou
com a vida luxuosa – “o deserto nos ensina a ficar nus”, como Malika
confessaria anos mais tarde. Sofreram com a areia, o calor, os escorpiões.
Depois foram conduzidos para Tamattaght, um palácio abandonado, seu lar por
quatro anos. Espirituosos, Malika e seus irmãos ainda tinham moral para se
divertir em meio ao encarceramento: compuseram e encenaram peças em árabe e
francês. Contudo, o pior ainda lhes faria uma desagradável surpresa.
A
família foi levada a Bir-Jdid, onde se tornaram “especialistas na arte de
aproveitar tudo”, tal o racionamento de alimentos a que eram submetidos, sendo
que ainda havia a contaminação por ratos, que invadiam as provisões. As celas
eram isoladas, não podiam se ver. Inúmeras foram as doenças e privações.
Finalmente, resolveram fugir.
Cavaram
um túnel – “o túnel de Maria” – com colheres, cabo de faca, tampa de uma lata
de sardinha e uma barra de ferro da cama. Em 19 de Abril de 1987 Malika
reencontrou-se com o céu, no final do túnel que ela e os irmãos cavaram. “Meu
Deus, que maravilha, a vida está ali, bem pertinho”. Ao saírem, Malika e os
irmãos comeram favas cruas de uma plantação próxima de onde se localizava o
presídio.
Foi
graças ao contado que fizeram com a rádio France Inter que obtiveram a ajuda de
um advogado francês, Bernard Dartevelle. A comunidade internacional foi
informada do caso da família Oufkir, aprisionada por 20 anos sem ter cometido
crime algum.
Em
quatro dias os irmãos estavam presos. Mas as condições mudaram, porque a
pressão internacional sobre Hassan II crescia. A liberdade plena veio apenas
quando Maria, irmã de Malika fugiu para a Espanha e depois se estabeleceu na
França, em 25 de Junho de 1996, após outros quatro anos em que a família foi
obrigada a morar em uma casa vigiada, convivendo com o preconceito de pessoas
de seu antigo círculo social, que temiam as represálias do sistema caso
reatassem os laços com os Oufkir. A fuga de Maria forçou o Marrocos a dar
passaportes livre a todos os seus irmãos. Malika foi para França, aonde vive
desde então com Eric, seu esposo desde 1998.
Fazendo
um balanço da tragédia que viveu, Malika afirma:
“[…]
perdi anos que nunca mais vou recuperar. Entro na vida no momento em que inicio
a velhice. É doloroso e injusto. Mas tenho hoje outra ideia de existência: não
dá para construí-la com artifícios, por mais atraentes que sejam. Nem a riqueza
nem a aparência têm hoje importância para mim. “A dor me fez renascer. Levei
tempo para morrer como Malika, filha mais velha do general Oufkir, filha dum
poder, de um passado. Ganhei uma identidade. Minha identidade. E isso não tem
preço.” [1]
Retirado do livro Paixão Cega. Para adquirir o volume no site da CPB, clique aqui.
[1]Malika Oufkir e Michele Fitoussi, Eu, Malika Oufkir, prisioneira do rei (São Paulo, SP: Companhia das letras, 2000). São citadas diretamente as páginas 193, 243 e 105.
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