Em uma era
informatizada e altamente competitiva, a vitória é almejada. Muitas vezes, a
palavra vitória ganha equivalentes como sucesso (termo associado ao conceito de
progresso, o qual surgiu no início da revolução industrial [1]) ou realização
pessoal (por sua vez, ligada à satisfação, objetivo de vida para a sociedade
hodierna, focada no prazer individual [2]). Entretanto, vitória extrapola o
sucesso e a realização. Podemos elencar figuras diversas para a vitória, desde
atletas em uma olimpíada até soldados voltando de uma guerra. Vitória pressupõe
desafio, luta, conquista, resultados e prêmios. Há uma conexão semântica entre
o substantivo vitória e o verbo vencer, como entre água e beber – em ambas as
ligações, o verbo indica o usufruto do substantivo. A concepção de vitória como
meta existencial é patenteada pela Literatura e visível na cultura popular, na
qual, por exemplo, expressões tais como “vencer na vida” ou “ser vitorioso”
assumem que há um objetivo a ser perseguido.
A busca pela
vitória não consiste em uma perspectiva exclusiva do Ocidente secularizado. A
Bíblia tem muito a dizer sobre vitória, em vários aspectos. Quando abrimos as
páginas do Novo Testamento, notamos um conjunto de textos que retratam o
cristão como alguém que vence o mundo. A frase formou a concepção de muitos
cristãos protestantes e pentecostais em sua aversão ao que consideravam
mundano. A compreensão do crente vencendo o mundo tornou-se metonímia da
própria vida cristã, em sua trajetória de renúncia e concepção de mundo
característica. Cantávamos “Fé é a vitória” nos cultos da pequena igreja que
frequentei. Tal como no velho hino, a chave para se angariar a vitória
espiritual, muitas vezes intangível no cotidiano, está na fé, confiança
absoluta que move o cristão em sua marcha espiritual.
É bem
verdade que assistimos atualmente à ascensão de um Cristianismo que enfatiza um
entendimento de vitória diverso daquele tratado acima. Com o surgimento do neopentecostalismo,
percebe-se que o termo vitória continua em voga; mas a vitória agora não é mais
um elemento espiritual subjetivo, relacionado à fé num sistema de crenças que
se opõem ao que considera mundano. Hoje a fé é um sentimento de posse, uma
atitude empreendedora motivada pela palavra de ordem que líderes carismáticos
proferem àqueles que buscam o sucesso avidamente. Como ressaltou certa
pesquisadora:
Muitos dos
que estão chegando para engrossar as estatísticas [relacionadas ao crescimento
dos evangélicos] animam-se com ensinamentos de um evangelho fácil, aprendendo
que seguir Jesus Cristo é andar sempre de cabeça erguida e ser um vitorioso.
Afinal, ele derrotou até a morte!
Com isso em
mente, segue-se a Cristo para ficar rico, pois somos filhos de um Rei,
herdeiros de toda sorte de privilégios. Segui-lo é sair da miséria, é conseguir
o emprego, a promoção ou então evitar o câncer, a paralisia, o desastre.
Ninguém quer diminuir. Todos querem crescer e, se possível, viver uma vida
hollywoodiana [3].
A fé garante
bens, a fé vence as dificuldades no casamento e proporciona saúde, cumprindo a
função de moeda de troca – quando a fé, materializada em sacrifícios pessoais,
em geral, envolvendo a doação de bens à igreja ou oferecendo quantias
financeiras em forma de pacto, cumpre sua parte, o crente sente-se confortável
para exigir de Deus as bênçãos às quais julga ter direito. Possuir fé garante o
sustento de uma forma de vida opulenta, pretendida pelos adoradores
contemporâneos, mas alcançada na prática apenas pelos líderes religiosos bem
sucedidos.
Estaria esta
nova proposta de um segmento cristão fazendo justiça à matéria bíblica, na qual
os cristãos (de todos os segmentos) afirmam basear sua fé? Em nome de uma
suposta busca pela vitória, instituições cristãs passam pelo escrutínio da
mídia e, mormente, assistimos reportagens destrincharem práticas cristãs,
questionáveis aos olhos de diversos setores da sociedade secular – sem mencionar
o desabono por parte de outros cristãos, igualmente indignados com o que
consideram um abuso da fé.
Em certo
sentido, os fatos apurados parecem indicar que muitos renomados líderes
espirituais, pregoeiros do sucesso, descuidam da ética em pelo menos dois
aspectos. Primeiramente, incentivam um comportamento moral raso, porque não
instruem suas respectivas comunidades sobre deveres morais, mas promovem com
avidez de mercado um evangelho mais preocupado em atrair o coração do que em
ocupar o cérebro; a instrução bíblico-doutrinária fornecida é mínima, enquanto
que a experiência pessoal místico-religiosa recebe endosso, chegando ao status
velado de prova de fé. Como diz o pesquisador Paulo Romeiro: “Em muitas igrejas
neopentecostais, a Bíblia perde espaço para a experiência. Ela assume um papel
secundário.” [4]
O clima
emocional que impera no culto não favorece à reflexão – ao contrário: propicia
a aceitação da mensagem proferida, muitas vezes focada na busca pelo sucesso
como um fim em si mesmo (o que é maquiado sob a afirmação de que isso seria “o
propósito de Deus para o crente”).
Além de não
promoverem a ética, os ministros neopentecostais não se caracterizam pelo
comportamento ético na forma como exercem sua liderança eclesiástica.
Constantemente, informações negativas sobre pastores, bispos e apóstolos são
veiculadas pelas principais mídias; escândalos financeiros, acusações do
Ministério Público, envolvimento em práticas políticas ilícitas, suposto
envolvimento com o crime organizado, aquisição de vultosos patrimônios, entre
outras sérias acusações, lançam dúvida sobre a conduta ética de tais líderes.
Gustavo
Rocha, ex-pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, em entrevista à revista
Época, declarou como desempenhava suas funções “ministeriais”, a partir de
quando recebeu uma igreja para cuidar:
Fiquei tranquilo [diante do encargo] porque eu já tinha
aprendido o trabalho. Ele [o Bispo Macedo] me ensinou o seguinte: como era uma
igreja pequena, primeiro eu tinha de fazer um atendimento corpo a corpo,
conversar com cada um dos membros da igreja, visitar a casa, participar da
vida. Eu levantava toda a vida da pessoa e determinava o dízimo. E eu ia
colocando na cabeça das pessoas. Elas chegavam para contar alguma coisa:
“Pastor, fui viajar e bati meu carro.” Eu dizia: “senhora está sendo fiel no
dízimo?”. Ela dizia que não. Então eu falava que era por isso que ela tinha
batido o carro. Óbvio que não tinha nada a ver, mas era uma questão de mexer
com o psicológico, para que ela pensasse que as coisas ruins aconteciam por
causa de um erro dela, e não por um erro da igreja ou um erro de Deus. Eu tinha
de fazer aquela pessoa acreditar que o dízimo dela era uma coisa sagrada.
Noventa por cento das pessoas que vão à igreja, e isso eu ouvi do bispo Macedo,
não vão para adorar a Deus. Vão para pedir, porque têm problemas no casamento,
nas finanças, de saúde. Então o bispo falava: “Você chega para a pessoa e diz:
Você está com problema financeiro, não está? Eu sei, eu estou vendo que sua
vida financeira não está boa”. É muito fácil. Por serem pessoas humildes, elas
estão mais propensas a certos problemas. [5]
No meio neopentecostal,
comumente se ouve a réplica de que tais acusações são infundadas, que ocorre
uma injusta perseguição semelhante a que os cristãos têm sofrido desde que
surgiram no mundo, e que o próprio diabo estaria movendo uma campanha contra o
“povo de Deus”. Cabem aqui algumas ressalvas: inúmeras denúncias e inquéritos
parecem apresentar evidência cumulativa da culpabilidade de alguns líderes
cristãos; a própria falta de transparência na gerência da parte desses
dirigentes dos recursos arrecadados parece depor contra sua alegada inocência.
No que se
refere à perseguição, é fato que o Cristianismo suportou dura perseguição,
primeiro dos judeus, depois dos romanos e até da própria cristandade medieval;
até nos dias, existem focos de perseguição a cristãos em países de maioria
muçulmana, como Iraque e Paquistão, além da China comunista. Em comum, tais
perseguições foram motivadas por ojeriza ao próprio credo cristão. No caso das
acusações às igrejas neopentecostais, elas se enquadram no âmbito criminal,
como lavagem de dinheiro, estelionatário, formação de quadrilhas, etc. Aqui nos
cumpre relembrar a admoestação do apóstolo: “Se algum de vocês sofre, que não
seja como assassino, ladrão, criminoso, ou como quem se intromete em negócios
alheios.” (1 Pe. 4:15, NVI). O sofrimento é esperado para o cristão (v.12), mas
existe diferença entre sofrer dignamente por causa da fé ou em função de estar
acusado de prática contrária ao caráter cristão.
Por último,
ao remeter ao diabo a causa final de todo o embaraço pelo qual passam, alguns neopentecostais
legitimam suas ações, querendo nos levar a crer que Deus está com eles, e por
essa razão se acham acuados pelos poderes do mal. Entretanto, deveríamos nos
questionar: há evidências de que suas práticas confirmam que seguem as
orientações éticas fornecidas pelo próprio Deus? Dessa forma, somos
reconduzidos ao ponto inicial, onde nos indagávamos se um confronto entre a
ética bíblica e a advogada por alguns segmentos do Cristianismo são concordes.
Deve-se
ressaltar que a religião cristã não é, em essência, materialista ou defensora
da ética utilitarista; uma das características do pensamento cristão mais
solenes é justamente seu desapego ao que considera mundano, e seu repúdio a
qualquer pensamento que restrinja a felicidade a uma realização temporal,
efêmera e material. Antes, o Cristianismo histórico se identificou, desde cedo,
com uma postura holística, a qual procura integrar a fé em diversos aspectos da
vida, promovendo equilíbrio saudável entre a espera pelo fim dos tempos e a
vida dinâmica em favor do melhoramento redentivo deste mundo. A ênfase recai no
aspecto tanto proposicional da Palavra inspirada por Deus, a qual apresenta um
caráter normativo para quem quer que se apresente como cristão, e no aspecto
relacional, com o Jesus de que fala a Palavra, uma figura histórica real e
atuante na vida daquele que crê.
Assim, a
ética cristã não pode deixar de confrontar-se com os reclamos de Jesus, tão
apropriadamente sintetizados nas palavras do escritor cristão C. S. Lewis:
Cristo diz: “Quero tudo o que é seu. Não quero uma parte de
seu tempo uma parte do seu dinheiro e uma parte do seu trabalho: quero você.
Não vim para atormentar o seu ser natural, vim para matá-lo. As meias medidas
não me bastam. Não quero cortar um ramo aqui e outro ali; quero abater a árvore
inteira. Não quero raspar, revestir ou obturar o dente; quero arrancá-lo.
Entregue-me todo o ser natural, não só os desejos que lhe parecem maus, mas
também os que se afiguram inocentes – o aparato inteiro. Em lugar dele,
dar-lhe-ei um ser novo. Na verdade, dar-lhe-ei a mim mesmo: o que é meu se
tornará seu.” [6]
Um
Cristianismo que reduza a entrega a posses, além de afigurar um engodo, que
explora a boa-fé alheia, é nulo, do ponto de vista da eficácia espiritual.
Afinal, quem entrega um carro para sua denominação, e por este ato, se sente um
vitorioso, se esquece de que a entrega requerida por Deus é de natureza muito
mais radical e profunda, chegando a envolver o ser completo. Tão somente uma
entrega assim cabal, levará o indivíduo e a comunidade da fé a serem a “cabeça”
e não a “cauda” (Dt 28).
[1] Embora
derivado do latim, o termo veio a aparecer em Língua Portuguesa apenas no
século XVII. Consultar Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, RJ:
Editora Lexikon Digital, 2007), 2a reimpressão da 2a
edição, 638.
[2] O termo
“realização” entrou na Língua Portuguesa em 1844, segundo Antônio Geraldo da
Cunha, idem, 665.
[3] Marília de
Camargo César, Feridos em nome de Deus
(São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2009), 2a impressão, 16.
[4] Paulo
Romeiro, Decepcionado com a graça:
esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal (São Paulo, SP: Mundo
Cristão, 2005), 121.
[5] Mariana
Sanches, “Aprendi a extorquir o povo,
depoimento de Gustavo Rocha”, Época,
21 de Setembro de 2009, 43.
[6] C. S. Lewis,
Cristianismo puro e simples (São
Paulo, SP: Martins Fontes, 2008), 2 ed., 259.
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