Adaptado de devocional proferido na abertura do programa anual de capacitação de professores da Educação Infantil ao Ensino Fundamental I e professores de Informática, que atuam na rede de Escolas Adventistas em Santa Catarina, proferido no Centro Adventista de Treinamento e Recreação (CATRE), localizado no município de Governador Celso Ramos, SC, em 1º de Fevereiro de 2009.
O sol fazia mais verdes as folhas do jardim, onde rosas vistosas podiam ser apreciadas. Entrei pelo velho portão, com aquele entusiasmo que se tem aos seis anos. Meu tio João, na verdade, tio da minha mãe, estava acocorado em uma das bordas do jardim. A cena por si só aguçou minha curiosidade. Ao chegar mais perto, me deparei com aquele homem já idoso com um graveto na mão.
Ele estava manipulando vários tatuzinhos – Ligia oceanica, pequenos crustáceos que vivem em terra –, mantendo-os de ponta-cabeça e expostos ao sol. “O que o senhor está fazendo, tio?” Não me lembro do timbre da voz dele, sobre o qual todos dizem até hoje que era grave e melodioso (tio João teve de extrair as cordas vocais devido aos vícios do cigarro e da bebida, por isso me recordo dele já sem poder falar); no entanto, eu me lembro da resposta: “Ah!, eu estou ajudando estes bichinhos a tomar um ‘banho de sol’!”
Fiquei ainda mais empolgado quando meu tio me convidou para ajudá-lo na “boa-ação”. Ficamos os dois ali, revirando os tatuzinhos, enquanto a manhã ensolarada transcorria. Só um pouco antes do almoço voltei para casa, vizinha a do tio.
Em algum momento daquele dia, resolvi relatar o que eu e meu tio fizéramos em prol dos tatuzinhos. “Mãe, olha como tio João é bonzinho”, foram minhas palavras iniciais, antes de relatar-lhe tudo. Ao contrário do efeito desejado, minha mãe não apertou minhas mãos, parabenizou-me ou sentiu-se emocionada de alguma forma pelo bom coração de seu rebento. A mãe riu. Riu da minha inocência juvenil.
Fiquei sabendo que, ao colocar os tatuzinhos sob o sol, longe de ajudá-los a ficar bronzeados, eu os estava matando! Os pobres animais necessitam manter o corpo sempre úmido. Expostos ao sol, eles se ressecam e morrem. Os coitados até tentavam lutar pela vida, mas, usando o graveto, tio João e eu impedíamos que eles se enrolassem, buscando a proteção contra os raios da manhã.
Claro que a notícia de que fora cúmplice (ainda que não de forma intencional) em um genocídio daquela proporção me revoltou. Fiquei com raiva de meu tio na época – o que não deve ter durado muito, coisa de criança…
CRITICADOS PELA INGENUIDADE
Claro que os adultos se divertem com as perguntas das crianças e com seu raciocínio peculiar. Uma aluna do 5º ano, por exemplo, aprendendo sobre o sistema reprodutor, disse-me sobre suas descobertas a respeito do sexo: “Professor, e o senhor acredita que tem gente que faz isto?”. Tive que disfarçar meu riso.
O lado pejorativo da inocência é que você se sente tolo, desinformado, passado para trás. Inocência tornou-se um eufemismo para ignorância. Para os cristãos, o dilema surge pelo fato de que, no mundo contemporâneo, sua crença é definida como algo infantil, fantasioso [1]. Neste quadro, acreditar na Bíblia é considerado uma atitude da mais pura inocência.
Quase que semanalmente, você e eu somos bombardeados por matérias publicadas em revistas e jornais de circulação nacional, e também em sites [2], contendo críticas à historicidade, transmissão e autoridade da Bíblia, livro sagrado do Cristianismo.
Acaso seria a Bíblia apenas uma grande fábula, produto de uma cultura pré-moderna? Pode o Cristianismo sustentar-se em um mundo que o considera ingênuo, apresentando algum tipo de contra-argumentação racional para continuar mantendo sua crença na Bíblia? Ou os cristãos têm que realmente assumir o rótulo de serem ingênuos?
De certa forma, as críticas à Bíblia não são novidade. Em uma data tão recuada quanto o I séc. d.C., entre os primeiros cristãos havia pessoas questionando a autoridade bíblica. O apóstolo Pedro responde a estas objeções, referindo a validade da Bíblia, à qual restitui a seu lugar como Palavra divina, prescritiva sobre a vida de todo que se reconhece como filho de Deus. Guardada a distância histórica (e quanto à natureza das críticas), o que o apóstolo escreveu nos ajuda a responder os ataques modernos feitos à Revelação escrita do Senhor. Por esta causa, vamos ver o que Pedro ensina mais de perto.
MAIS DO QUE UM LIVRO
“Foi a respeito desta salvação que os profetas que falaram da graça destinada a vocês investigaram e examinaram, procurando saber o tempo e as circunstâncias para os quais apontava o Espírito de Cristo que neles estava, quando lhes predisse os sofrimentos de Cristo e as glórias que se seguiriam àqueles sofrimentos. A eles foi revelado que estavam ministrando, não para si próprios, mas para vocês, quando falavam das coisas que agora lhes foram anunciadas por meio daqueles que lhes pregaram o evangelho pelo Espírito Santo enviado dos céus; coisas que até os anjos anseiam observar.” 1 Pedro 1:10-11.
Para aproveitar melhor o que Pedro escreveu, vamos extrair cinco princípios vitais desta passagem:
I – A mensagem da Bíblia tem sua origem no Espírito Santo:
Pedro deixa explícita sua convicção em uma origem divina das Escrituras. Por duas vezes, no curto espaço de três versículos, o apóstolo cita a terceira Pessoa da Divindade – o Espírito Santo (vv. 11 e 12). A origem transcendental do Espírito ganha destaque (“Espírito Santo enviado do Céu”), ao mesmo tempo em que Sua atuação sobre os homens não fica de lado (“o Espírito que neles estava”). Não estamos diante da produção folclórica de um povo antigo; a Bíblia é a Revelação sobrenatural de um Deus que, embora acima de nós, vem até nós e age em nós.
Qual a base para se confiar na Bíblia? O efeito dos conceitos bíblicos indica uma inteligência superior. O impacto de tais conceitos trouxe mudanças positivas para o Ocidente, embora não seja justo atribuir tudo o que vemos em nossa sociedade (tanto os aspectos positivos, quanto os negativos) à influência da Bíblia.
O conceito de próximo é, sem dúvida, um excelente exemplo. O próximo não é apenas alguém situado na mesma geografia; ele possui os mesmos direitos. Da parábola do Bom Samaritano, apreendemos um sentido ativo para o termo, identificando alguém que se dispõe a ajudar. Enquanto nações vizinhas atribuíam valores diferentes a estrangeiros, Israel era ensinado a amar o estrangeiro (Lv. 19:33-34), que, em muitas situações, era tratado como os nativos da terra (Lv. 20:2; 24:16; 25:35-38; Nm. 9:14; 15:13, 15). A noção de que todos os homens são iguais não é tão lógica quanto parece. Em nações como a Índia, influenciada pela crença hindu, existem diferentes origens e valores para as castas que dividem a sociedade, ficando evidente a ausência da igualdade. Sem estabelecer como ponto de partida a igualdade entre os homens, a democracia não se teria sustento. De fato, as nações sem maioria cristã possuem democracias frágeis – quando as possuem.
Demos somente um exemplo de contribuição da Bíblia para a cultura ocidental. Dinesh D’Souza bate nesta tecla: “[…]não é preciso ser cristão, nem mesmo possuir qualquer crença, para reconhecer que a fé ocidental [cristã] fez muito para melhorar a vida humana e reduzir o sofrimento humano.” [3] Basta mencionarmos quantas escolas, universidades, editoras e hospitais começaram por iniciativa de grupos cristãos.
Muitas objeções são levantadas a esta altura. Uma delas tem que ver com os aspectos negativos do Cristianismo. Principalmente no que se refere ao reinado de horror medieval. Pessoalmente, não me vejo na obrigação de defender a Inquisição, porque entendo que este é um ataque não ao Cristianismo, mas ao Catolicismo propriamente dito; afinal, outros grupos cristãos foram alvo das práticas absurdamente intolerantes da igreja papal.
Sobre as cruzadas, cito um ateu: "[...] A Inquisição ou o terrorismo islâmico, para tomar esses dois exemplos, ilustram claramente a periculosidade das religiões, mas não dizem nada sobre a existência de Deus. Toda religião, por definição, é humana. O fato de todas terem sangue nas mãos poderia tornar alguém misantropo, mas não bastaria para justificar o ateísmo - o qual, historicamente, tampouco está isento de recriminações, especialmente no século XX, nem de crimes.
"Não é a fé que leva aos massacres. É o fanatismo, seja ele religioso ou político. É a intolerância. É o ódio. Pode ser perigoso crer em Deus. Vejam a noite de são Bartolomeu, as cruzadas, as guerras de religião, o jihad, os atentados de 11 de Setembro de 2001... Pode ser perigoso não crer. Vejam Stalin, Mao Tsé-tung ou Pol Pot... Quem vai calcular os mortos, de um lado e do outro, e o que eles poderiam significar? O horror é incalculável, com ou sem Deus. Isso nos ensina mais sobre a humanidade, infelizmente, do que sobre a religião." [4]
Apesar de discordar de algumas das afirmações acima, aceito a essência do argumento. As cruzadas só revelam o fanatismo católico-medieval. Claro que houveram outros fanáticos cristãos ao longo da História, bem como fanáticos de outros credos. Mas o ponto é que o Cristianismo bíblico, quando é seguido na pureza de seus princípios, gera inúmeros benefícios, entre eles a já mencionada defesa da liberdade pessoal e o nivelamento do valor da vida humana [5].
Além da influência cultural positiva, as profecias bíblicas são outra razão para confiarmos na Bíblia. A queda de nações como Assíria, Babilônia, Egito soaram fantásticas demais quando foram feitas. Mas a História revela que elas não falharam. A explicação mais crível para o acerto das profecias é a presciência divina. De fato, somos obrigados a reconhecer-nos diante de uma mente muito superior ao mero conhecimento acumulado pela experiência humana .
Não se esqueça de que vimos no capítulo anterior como a visão bíblica fornece a base estrutural para interpretarmos a totalidade da vida, respondendo à questões relacionadas às origens e moral, sem contar aspectos que tangem ao problema do mal, da morte e da esperança, os quais enfocaremos adiante. Respostas abrangentes e lógicas desse calibre só poderiam ter raiz em um Ser transcendente!
[1] Para José Jorge de Carvalho Brasília o “papel performativo da repetição do símbolo exposto”, caracterizada pela exploração maciça dos símbolos religiosos durante os cultos, favorece que os mesmos símbolos ocupem “o plano da associação automática” na mente dos adoradores; disto se originaria uma “cultura infantil”, termo empregado no sentido de “categoria filosófica”. A “cultura infantil” seria o exercício das fantasias, dos sonhos e dos jogos infantis, agregando uma “suspensão temporária da ordem racional e vigilante do mundo”. José Jorge de Carvalho, A religião como sistema simbólico: uma atualização teórica, série antropologia, 285, disponível em http://www.unb.br/ics/dan/Serie285empdf.pdf, pp. 3 e 4. A presença da irracionalidade mística ligado ao fenômeno religioso é incontestável; mas defendemos que, embora o Cristianismo bíblico empregue analogias, simbolismos, parábolas e outros casos de linguagem não-literal, não consiste a visão de mundo cristã em produção de mera fantasia autoinduzida; porém, o emprego, em muitos casos, de representações de realidades futuras ou transcendentes, não nega ou anula a realidade do mundo físico, como se dá no caso do misticismo (em todas as suas formas). O cristão é chamado para servir a Deus racionalmente (Rm. 12:1).
[2] Para alguns exemplos recentes de matérias contendo críticas à Bíblia e suas respectivas réplicas: (A) Marcos Nogueira, A Bíblia como ela é, em Revista Superinteressante, ed. 245, Novembro de 2007, pp. 96-99, Douglas Reis, Como viver biblicamente de verdade, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com ; (B) Leandro Narloch, O papa do Jesus Histórico, Superinterante, edição 250, Março 2008, seção superpapo, pp. 17-19, idem, Novas pérolas de Crossan na Superinteressante, disponível em duas partes em http://questaodeconfianca.blogspot.com ; (C) Agência de Notícias France Presse, Professor israelense afirma que Moisés agiu sob efeito de alucinógenos, disponível no site http://g1.globo.com , idem, Moisés, o toxicômano, disponível em http://questaodeconfianca.blogspot.com ; (D) Reinaldo José Lopes, CSI:Jesus, publicado em Revista Galileu, Setembro de 2008, nº 206, pp. 47-54, idem, Deus consciente ou mero sábio?, disponível em duas partes em http://questaodeconfianca.blogspot.com ; (E) José Francisco Botelho, Quem escreveu a Bíblia?, Superinteressante, edição 259, dezembro de 2008, pp. 60-69, idem, Quem escreveu [com tanta impropriedade sobre] a Bíblia?, disponível em duas partes em http://questaodeconfianca.blogspot.com .
[3] Dinesh D’Souza, A verdade sobre o Cristianismo: Por que a religião criada por Jesus é moderna, fascinante e inquestionável (Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2008), p. 88.
[4] André Comte-Sponville, O espírito do Ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus (São Paulo, SP: Martins Fontes: 2007), p. 77.
[5] Veja Peter van Bemmelen, A Bíblia: Como pode ela ser única? Diálogo Universitário, 1998, vol. 10, nº 3, 17-19, disponível também em http://dialogue.adventist.org.
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