Os apelos do papa Bento XVI em favor do entendimento entre ciência e fé vem tornando-se cada vez mais veementes. No último Janeiro, a mensagem do Vaticano era: “‘Por todos os cientistas e os homens de cultura, para que, por meio da sincera pesquisa da verdade, possam chegar a conhecer o único verdadeiro Deus’” [1].
De fato, não há incompatibilidade inerente entre o Cristianismo e a pesquisa científica; entretanto, a proposta de Roma admite uma dicotomia entre fato/valor, também chamada de natureza/graça [2], identificando que o Cristianismo se refira a uma esfera de verdade que tangencia outra esfera, regida pela ciência, a qual é braço direito de uma razão autônoma. Portanto, o Cristianismo se torna insuficiente para abranger toda a Verdade, e suas afirmações não poderiam pretender a isso.
O que isso significa? Que quando os Evangelhos, por exemplo, apresentam a ressurreição de Jesus, não se referem a um fato real, comprovável; apenas aludem simplesmente a uma verdade da ótica da fé, e nada mais [3]. As verdades da fé serviriam para constituir valores, servindo de referenciais no campo da ética. Um cientista jamais poderia comprovar a ressurreição, porque ela não seria mensurável em termos de evidências; logo, estaria fora do escopo da razão. Tal a perspectiva de Roma, assim como a de muitos cristão liberais.
Não obstante, o que começou como um ataque acadêmico à ortodoxia cristã se constitui hoje uma opinião crescente na mídia e na literatura popular. Em um livro de bolso audaciosamente intitulado “Explicando Deus numa corrida de táxi”, encontramos a mesma perspectiva retratada acima. Deus é apresentado não como uma verdade objetiva, mas uma nescessidade imaginativa: “Quando precisamos da ajuda que nossos amigos não podem oferecer, buscamos consolo numa ideia, e o nome que damos a essa ideia é Deus”.
E o que dizer da revelação divina através da Bíblia? “A história de Jesus foi contada e recontada tantas vezes que é difícil separar a realidade da ficção.” Os eventos da narrativa podem até ter ocorrido objetivamente dentro da História, mas talvez “simplemente não tenham ocorrido da forma como a Bíblia nos conta”, afinal, é “a Bíblia da Igreja, não de Deus.” Logo, não chega a admirar que o autor endosse os milagres como mera ilusão que depende de uma fé incapaz de sustentar-se pelas evidências, porque se “pudesse provar, não se trataria de fé.” [4]
O pensamento arguto de Schaeffer observou a ascendência do Naturalismo sobre o Cristianismo: “Nossa geração é opressivamente naturalista. Há uma dedicação quase completa ao conceito da uniformidade de causas naturais em um sistema fechado. É sua caraterística distinitiva. Se não tivermos cuidado, mesmo dizendo que somos cristãos bíblicos e sobrenaturalistas, deixaremos que entre em nós o naturalismo de nossa geração. Talvez penetre em nosso modo de pensar sem que o reconheçamos, como neblina ou fumaça que se infiltra por uma janela entreaberta. Logo que isso acontece, o cristão começa a perder o senso de realidade de sua vida cristã […] muito frequentemente a realidade se perde porque o ‘teto’está muito baixo sobre nossas cabeças. Está baixo demais. E o ‘teto’ que se fecha sobre nós está no modo de pensar naturalista.” Schaeffer ainda via a relação da espiritualidade “com a unidade da visão da Bíblia sobre o universo.” [5]
Se não recuperarmos a visão unificada presente na Bíblia, continuaremos aceitando a divisão fato/valor, restringindo nossa fé a um consolo ou conforto, sem identificação com a realidade palpável. Somente devolvendo ao Cristianismo o seu lugar como uma cosmovisão poderosa e unificada, o casamento entre fé e ciência se tornará possível. Ao mesmo tempo, teremos nas mãos as armas para combater a ideologia pós-moderna, profundamente dependente dos pressupostos naturalistas [6].
Muitos líderes cristãos imaginam que lidar com a mentalidade pós-moderna se restrinja ao uso do “evangelismo da amizade” e à criação de uma comunidade cristã acolhedora. Obviamente, esses aspectos são relevantes e precisam ser enfatizados. Mas a tarefa é muito mais ampla. Afinal, a igreja local pode atrair e conquistar os pós-modernos, sem modificar a crença básica deles. Eles acabariam aceitando o Cristianismo não porque lhes forneça a Verdade Absoluta (conceito contrário ao pensamento pós-moderno), mas como uma das verdades úteis, e passíveis de interpretações pessoais. Nesse caso, qual seria a vantagem de converter pós-modernos em pós-modernos cristãos?
Enquanto demoramos para agir, o teto tem se fechado sobre nossas cabeças…
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[1]Papa pede oração para superar fratura entre ciência e fé, disponível em http://www.zenit.org/article-23964?l=portuguese .
[2] Ver Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, O dualismo natureza graça e a influência do humanismo secular no pensamento social cristão, em Cláudio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Maurício José Silva Cunha (org.), Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade, razão e ordem social (Viçosa, MG: Ultimato, 2006), especialmente pp. 133-143. “Esse é o problema principal do dualismo moderno. Para afirmar sua liberdade absoluta, o homem moderno excluiu Deus. Para controlar a natureza em seu benefício, explicou a natureza como um mecanismo impessoal. Entretanto, o próprio homem é parte da natureza! Assim, o homem também passa a ser explicado a partir de leis naturais, como um produto do mecanismo evolucionário, negando-se, com isso a sua liberdade e dignidade. E o ideal da ciência, nascido do ideal da personalidade, torna-se a sua principal ameaça.”, p.130.
[3]Aqui vale citar o poeta e escritor Manoel de Abreu, que no ensaio A luta contra o universo (São Paulo, SP: Livraria José Olympio Editora, 1946) expressou-se sobre os milagres expostos em Marcos: “O fato dos referidos milagres terem sido apenas ilusão e sugestão, não importa, o que importa é terem existido como se fossem verdadeiros: foram pois admiráveis expressões de vida, em que o homem viveu e continua vivendo, plena e vitoriosamente.” p.36, grifos supridos.
[4]Paul Arden, Explicando Deus numa corrida de táxi (Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca, 2009), pp. 16, 27-28, 30, 32, 36.
[5]Francis A. Schaeffer, Verdadeira espiritualidade: uma vida cheia de belezas, que edifica e inspira (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2008), p.89-90.
[6]Para uma análise entre Pós-Modernidade e Naturalismo Filosófico, consultar Douglas Reis, Pós-Modernidade à luz de 2 Pedro 3, em http://outraleitura.com.br/web/artigo.php?artigo=30:Pos-modernidade_a_luz_de_2_Pedro_3 .
[2] Ver Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, O dualismo natureza graça e a influência do humanismo secular no pensamento social cristão, em Cláudio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Maurício José Silva Cunha (org.), Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade, razão e ordem social (Viçosa, MG: Ultimato, 2006), especialmente pp. 133-143. “Esse é o problema principal do dualismo moderno. Para afirmar sua liberdade absoluta, o homem moderno excluiu Deus. Para controlar a natureza em seu benefício, explicou a natureza como um mecanismo impessoal. Entretanto, o próprio homem é parte da natureza! Assim, o homem também passa a ser explicado a partir de leis naturais, como um produto do mecanismo evolucionário, negando-se, com isso a sua liberdade e dignidade. E o ideal da ciência, nascido do ideal da personalidade, torna-se a sua principal ameaça.”, p.130.
[3]Aqui vale citar o poeta e escritor Manoel de Abreu, que no ensaio A luta contra o universo (São Paulo, SP: Livraria José Olympio Editora, 1946) expressou-se sobre os milagres expostos em Marcos: “O fato dos referidos milagres terem sido apenas ilusão e sugestão, não importa, o que importa é terem existido como se fossem verdadeiros: foram pois admiráveis expressões de vida, em que o homem viveu e continua vivendo, plena e vitoriosamente.” p.36, grifos supridos.
[4]Paul Arden, Explicando Deus numa corrida de táxi (Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca, 2009), pp. 16, 27-28, 30, 32, 36.
[5]Francis A. Schaeffer, Verdadeira espiritualidade: uma vida cheia de belezas, que edifica e inspira (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2008), p.89-90.
[6]Para uma análise entre Pós-Modernidade e Naturalismo Filosófico, consultar Douglas Reis, Pós-Modernidade à luz de 2 Pedro 3, em http://outraleitura.com.br/web/artigo.php?artigo=30:Pos-modernidade_a_luz_de_2_Pedro_3 .
Um comentário:
Afinal, a igreja local pode atrair e conquistar os pós-modernos, sem modificar a crença básica deles. "Eles acabariam aceitando o Cristianismo não porque lhes forneça a Verdade Absoluta (conceito contrário ao pensamento pós-moderno), mas como uma das verdades úteis, e passíveis de interpretações pessoais. Nesse caso, qual seria a vantagem de converter pós-modernos em pós-modernos cristãos?"
Muito bom Douglas!
Felizmente podemos saber da existência de mentes que ainda questionam inteligentemente a visão pós-moderna da religiosidade que se perde no âmago do relativismo e da adaptação.
O dilema mais importante do cristianismo não é o evangelismo da psiquê pós-moderna, mas como evangelizá-lo sem tornar o postulado cristão
em uma extensão meramente religiosa do pós-modernismo do qual, ironicamente, está se tentando resgatá-lo!
Na atual leitura pós-moderna a Teodicéia adquiriu uma resposta relativista, quando pensada.
Contextualizar o cristianismo de uma forma firme, porém inteligente, comprometida, porém relevante, fiel às bases bíblicas, porém contemporânea. Eis o desafio!
Mais uma bela análise...
Louvado seja o SENHOR!
Evanildo Carvalho
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