Os
artistas preferem nos induzir ao pensamento de que a produção artística depende
de um tipo de inspiração irracional, baseada em intuição e habilidade
sensorial. Note a mensagem destes decassílabos com seus enjambemants característicos, escritos pelo poeta surrealista Jorge
de Lima
Não procureis qualquer nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.
Mas a afirmação da arte como atividade mística, própria àqueles
que vivem “no âmbito intranquilo/ em que se agitam seres ignorados” não é
exclusiva da poética. Artistas plásticos, músicos, escultores, coreógrafos,
entre outros, reivindicam a categoria de visionários, quase que tomados por um
sentimento criativo fora de seu próprio controle. Dentro desta perspectiva, a
função artística passa a desempenha um papel religioso, com uma função
redentora – redimir o mundo através de uma mensagem estética. [1] A arte, como
produto da Inspiração autônoma, isenta o artista da responsabilidade moral
daquilo que produziu, sendo que a própria arte fica posicionada acima dos
julgamentos éticos.
No
entanto, as expressões artísticas estão veiculadas à cultura, ao temperamento e
à visão de mundo do artista. A iniciativa pós-moderno de desvincular a Arte do
mundo, tornando-a virtualmente um mundo à parte, é motivada pelo desejo de se
libertar da visão mecanicista do mundo, que se tornou dominante a partir do
Iluminismo. A arte é apenas um tipo de discurso, para transmitir ideologias,
gostos e opiniões. [2] Acredito que através do meio artístico cristãos genuínos
podem (e devem) apresentar sua compreensão da realidade de um modo impactante.
Uma perturbadora demonstração de como a Arte não é algo neutro é a
controversa decisão do curador da 28ª Bienal de São Paulo, Ivo Mesquita, de
optar por deixar vago os 12 m² do 2º andar (chamado de “pavilhão Ciccillo
Matarazzo”). Segundo Mesquita, “O espaço vazio é um gesto simbólico, no sentido
de abrir um debate. O que deveria estar cheio está vazio, está vazio para
instalar um outro tipo de experiência do espaço, para instaurar um processo de
reflexão.” [3]
Num mundo em que o vazio está diante do horizonte devido à falta
de um parâmetro seguro para validar a conduta ética humana, a arte não tem nada
para dizer – e por isso, o melhor que se tem a fazer é apresentar a mudez de
paredes vazias. O desespero moderno só não é mais deprimente do que o silêncio
daqueles que, possuindo a verdade, preferem guardá-la para si mesmos.
[1] “Kandinsky, Marc, Schoenberg, Taut, Steiner ou Klee [criadores
máximos da arte moderna] criaram uma arte de conteúdos espirituais explícitos e
defenderam uma intuição poética ligada a valores ideais transcendentes à
racionalidade civilizatória. Franz Marc afirmou expressamente que a arte
moderna devia assumir aquela mesma dimensão espiritual que as religiões haviam
refletido em outras culturas. […]”, Eduardo Subirats, A cultura como espetáculo (São Paulo, SP: Nobel, 1989), 22. Ver
também Francis Schaeffer, A morte da
Razão (São Paulo, SP: Aliança Bíblica Universitária do Brasil; São José dos
Campos, SP: Editora Fiel da Missão Evangélica Literária, 1989), 5ª ed, p. 59.
[2] Falando sobre a música, por exemplo, afirma certo autor: “A música
é uma forma de discurso tão antiga quanto a raça humana, um
meio no qual as ideias acerca de nós mesmos e dos outros são articuladas em
formas sonoras.
[…] O
discurso modifica continuamente a forma simbólica em que aparece. Tomemos por
um momento a extensão e a evolução diária das línguas, evidenciada pela rápida
revisão dos dicionários. E o discurso pode aparecer em novas e saudáveis
combinações de formas simbólicas, como cinema, televisão e publicação na
internet. Discurso é um termo genérico, útil para toda troca significativa.
Engloba o trivial e o profundo, o óbvio e o recôndito, o novo e o velho, o
complexo e o simples, o técnico e o vernáculo.
[…]
Como discurso, a música significativamente promove e enriquece nossa
compreensão sobre nós mesmos e o mundo.” Keith Swanwick, Ensinando música musicalmente (São Paulo, SP: Moderna, 2003), 18.
Grifos da autora. Heron Moura chega à conclusão semelhante no que diz respeito
à poesia: “[…] O poema é linguagem, e obedece às mesmas leis da mente que
moldou e manipula a linguagem. O ilogicismo no poema é um sonho […] O poema é
linguagem humana, demasiado humana. E o logicismo inveterado do homem aparece também
no poema.” Heron Moura, “Baudelaire era
um robô?”, in Diário Catarinense,
Sábado 19 de Abril, ano 22, nº 8.033, Caderno Cultura, 3.
Um comentário:
palavras acertadas, douglas!
o educador musical inglês keith swanwick (tenho o livro citado e o aprecio bastante) concordaria que os discursos são moldados pela visão de mundo, as práticas musicais moldadas pela cosmovisão de cada comunidade.
pena a arte ter dado tanto espaço ao marchands, aos curadores e aos charlatões.
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